Projeto Climas realizou entrevistas com moradores da Terra Indígena Santo Antônio, no Alto Solimões, para registrar as impressões dos moradores em relação ao ambiente em que vivem. De acordo com a pesquisa, 80% dos participantes observaram mudanças recentes nos próprios territórios, como igarapés mais secos, intensificação do calor e dificuldade para trabalhar no roçado devido ao clima.
Durante dois meses, Myriam Metchituna, do povo Tikuna, do Amazonas, percorreu três comunidades indígenas no município de Benjamin Constant, no Alto Solimões. Seu objetivo era perguntar aos seus parentes como eles sentem os efeitos das mudanças climáticas. “Isso é coisa do apocalipse, Deus está voltando”, escutou de uma senhora religiosa. Foi quando ela percebeu que o trabalho seria maior. Começou a ensinar sobre o aquecimento global, seus causadores e efeitos. “Quando eu começava a falar elas ficavam impressionadas. São pessoas que sabem um pouco, mas não nesses termos”, explica.
Durante um ano, a pesquisadora foi bolsista do projeto Climas, desenvolvido nas comunidades Filadélfia, Porto Cordeirinho e Santo Antônio, na Terra Indígena Santo Antônio, localizada a 119 km de distância de Manaus. O projeto é executado pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) e pelo Instituto de Natureza e Cultura (INC/UFAM).
Ao longo do trabalho, Myriam e outras bolsistas fizeram 90 entrevistas, 30 em cada uma das comunidades. Cada entrevistado reagiu a 20 afirmações com respostas que variavam de “discordo totalmente” a “concordo totalmente”. Entre as frases apresentadas, estavam: os igarapés que nunca secavam no verão agora estão secando; a variedade de árvores não é mais a mesma; a colheita está sendo feita fora de época; está mais difícil saber quando vai chover; tenho que ir mais longe para pescar.
De acordo com a pesquisa, 80% dos entrevistados identificaram alterações recentes no ambiente em que sempre viveram seja nos períodos de vazante, de cheia, nas plantações e no solo. Na comunidade Porto Cordeirinho, 82% concordaram totalmente ou em parte com as afirmações. O aumento do calor é um dos impactos que eles identificam. Para as comunidades, a terra para plantio está mais quente e está cada vez mais difícil trabalhar no roçado.
Efeitos ligados à crise do clima?
O pesquisador Gabriel Borba, mestre em biologia e um dos autores da pesquisa, afirma que as mudanças estão ligadas à crise climática. De acordo com ele, os efeitos são as chuvas, as temperaturas, as cheias e as vazantes.
“A percepção das comunidades indígenas corrobora com os efeitos de eventos climáticos extremos identificados em pesquisas científicas. Os principais efeitos do aquecimento global na Amazônia são identificados nas mudanças nos padrões de chuvas e temperatura, principalmente das cheias e secas do rio Alto Solimões na região do nosso estudo”, disse.
“Foram relatadas mudanças na dinâmica de pesca e de rochas. Dado a falta de chuva e as altas temperaturas, o período de trabalho é alterado e até reduzido. Também a preferência pela produção de alimentos que são mais resistentes a altas temperaturas e escassez de água, resultando em perdas no cultivo e na diversificação da produção”, completou.
Borba trabalha com comunidades locais do Amazonas desde 2017, quando desenvolveu sua pesquisa de mestrado sobre o impacto da mudança das chuvas na vida dos peixes na Amazônia Central. Ele diz que a ciência precisa voltar a valorizar o método de observação.
“A primeira impressão que eu tive é que a gente está falando a mesma coisa, com nomes distintos e formas distintas, mas o produto final não tende a divergir. O que é diferente é o aprendizado com a vivência, com a observação. Isso já foi uma construção mais valorizada pela ciência e hoje o conhecimento tradicional se mantém. Nós perdemos isso. O nosso modelo econômico deixou a nossa dinâmica mais rápida e perdemos isso”, diz.
O pesquisador avalia que os indígenas continuam mantendo o conhecimento tradicional. Ele diz que tenta praticar isso nas próprias pesquisas. “As populações amazônicas têm uma enorme capacidade de observar, descrever e prever padrões, que se solidificam a partir das suas experiências cotidianas com a natureza. Isso foge do escopo que a academia traz. Essa desconstrução é o que eu quero mudar e trazer um pouco para o meu mundo também. A relação com a floresta e como a gente observa isso de maneira objetiva e direta”, diz.
A experiência de reconhecer os conhecimentos obtidos e observados pelas populações indígenas é uma das conclusões do projeto Climas e também uma cobrança global. Em todo mundo, lideranças indígenas pedem maior participação nas discussões sobre mudanças climáticas. Neste ano, a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, é a chefe da delegação brasileira na COP 28.
“Os povos indígenas, constantemente ameaçados de perderem seus territórios e suas conexões sagradas e permeados pelo conhecimento tradicional, estão entre os principais grupos vitimados. Populações negras, comunidades locais, mulheres, jovens e crianças e as camadas mais pobres dos países estão também entre as mais impactadas”, disse a ministra, na Mesa Ministerial de Alto Nível Sobre Transição Justa, neste domingo (3).
Vulnerabilidade indígena
Em menos de três anos, o Rio Negro viveu dois eventos extremos históricos: a cheia em 2021, que fez o nível chegar a 30,02 metros, e a vazante deste ano, quando ficou em 12 metros. O pesquisador José Marengo explicou, em entrevista à InfoAmazonia, que o Amazonas enfrenta hoje dois desafios: a vulnerabilidade climática, ligada ao El Niño, e os efeitos da crise climática, que gera o aumento da temperatura média global.
“O que acontece na Amazônia é que existe um número grande de pessoas vulneráveis, os ribeirinhos e indígenas dependem do rio para ir para as escolas, para levar seus produtos para as feiras, para viver. Não só quando existe a cheia e o rio inunda, mas quando existe a seca e as queimadas, a fumaça muitas vezes chega até as cidades. Então, isso atinge os grupos vulneráveis, as crianças, os idosos, as pessoas com doenças. E claro, a floresta e a biodiversidade. Os botos estão morrendo com o calor, então, a Amazônia é vulnerável”, disse.
Gabriel Borba conta que as localidades da pesquisa foram escolhidas pensando nessa vulnerabilidade. O critério foi procurar as populações que já sentem os efeitos, como os povos indígenas que trabalham com agricultura. Por isso, 59% dos entrevistados vivem do roçado. “Os efeitos das mudanças climáticas sofridos por eles são consequência da falta dessa coexistência com a natureza de maneira harmônica. As populações indígenas têm práticas de preservação da floresta e mesmo assim passam pelos impactos causados por outros”, diz o pesquisador.
Na pesquisa, também houve quem discordasse das afirmações. Na comunidade Porto Cordeirinho, 18% dos entrevistados discordaram totalmente ou se mantiveram neutros; na Filadélfia, 12%. Dentre seus perfis, os pesquisadores encontraram um padrão: são pessoas mais jovens, com até 35 anos, que mantêm ligação de trabalho com as áreas urbanas.
“A forma de trabalho é um fator que contribui para essas respostas de discordância e neutralidade. Os participantes que tiveram suas vivências desde criança no meio urbano não identificam através das percepções sobre as mudanças ambientais em seus territórios. Essa parcela de entrevistados acredita que as mudanças no ambiente local são naturais e não observam algum tipo de anomalia no clima”, explica o documento da pesquisa.
Saber tradicional
Antes de realizar as entrevistas, Myriam precisou estudar sobre ações governamentais contra as mudanças climáticas e empoderamento feminino e indígena, entre outros assuntos. Essa formação fez parte do projeto e tinha como intenção o fortalecimento do conhecimento de 50 mulheres indígenas da base comunitária. “Eu já trabalhava com resgate da nossa cultura alimentar, já conhecia sobre o tema das mudanças climáticas, mas eu não sabia como ocorria aqui na minha região”, conta a pesquisadora.
A mestranda Neize Laura de Lima Deveza, do povo Kaixana, natural do município de Tonantins, no Amazonas, também foi uma das bolsistas. O conhecimento adquirido influenciou seu projeto de mestrado. Formada em Letras, hoje ela é pesquisadora em Saúde Coletiva na Amazônia, pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), onde relaciona o combate às endemias com a falta de políticas ambientais no estado. “Eu fiquei maravilhada com a pesquisa. Hoje, o meu olhar mudou e entendo muito mais os danos que causamos ao meio ambiente. O que eu estudo é reflexo do projeto Climas”, diz.
Ela diz que os conhecimentos tradicionais devem ser fortalecidos, porque são saberes que permanecem e se multiplicam no território. “É fundamental para manter a culturalidade da nossa comunidade. Então, é fundamental que se passe de geração em geração as tradições, os costumes. E o conhecimento ambiental tem que ser passado assim também”, afirma.
O pesquisador Gabriel Borba conta que no início das suas pesquisas, ele tentava aprender a partir das referências bibliográficas que coletava, mas isso nem sempre era ideal. “Eu aprendi muito mais em contexto no qual eu consegui assimilar aquela informação de maneira mais prática conversando e escutando essas populações. A gente tem uma relação direta e uma capacidade de observar, descrever, registrar. Faz sentido para eles e faz sentido pra gente também”, diz.
O projeto iniciou um período de divulgação dos resultados, com devolutivas nas comunidades, nas universidades e nas redes sociais. Os pesquisadores estão expondo banners com os dados levantados pela pesquisa e participando de palestras sobre justiça climática. Em setembro, a equipe esteve no Congresso Internacional Mundos Indígenas, América, na Colômbia. Ainda será produzida uma cartilha com os conceitos de mudanças climáticas e as conclusões obtidas.