A investigação global “Sistema Perenco” conduzida pela InfoAmazonia e seus parceiros internacionais revela o aspecto sistêmico das práticas extrativistas abusivas da segunda maior operadora francesa de petróleo e gás em todo o mundo: a Perenco.

“Ouça, conheço as questões ambientais da Perenco e elas não me mantêm desperto à noite”, diz um dos engenheiros do grupo ao nosso pedido de entrevista sobre os alegados casos de poluição repetidos pela Perenco no Gabão. 

Mas as “questões” da empresa não se limitam apenas a esse país. De fato, as licenças de petróleo e gás da Perenco abrangem 74 áreas protegidas em todo o mundo. Essas são as conclusões de uma investigação conduzida durante quase um ano pela InfoAmazonia, em parceria com o consórcio internacional de jornalistas investigativos ambientais EIF, InfoCongo e Convoca

No total, 9 dos 14 países onde a empresa franco-britânica opera são afetados por essas problemáticas sobreposições — e, em alguns casos, “irregulares ou mesmo ilegais” — entre as concessões de petróleo e as áreas protegidas.

Queima de gás nas dependências da Perenco nos Camarões. Foto: InfoCongo

No Peru, nos Camarões e no Gabão, nosso consórcio também conseguiu revelar a existência de mais de cem registros de poluição anteriormente desconhecidos, que serão publicados nos próximos episódios desta série investigativa.

Enquanto em 2022 a COP15 sobre a biodiversidade decidiu, com um compromisso dos países-membros, proteger 30% da terra e do mar do planeta até 2030, nossas descobertas questionam o destino dos parques e das reservas nacionais existentes.

O estado atual desses lugares de grande valor em termos de biodiversidade não parece fazer recuar empresas como a Perenco, nem seus acionistas, a família Perrodo, a 15ª família mais rica da França, segundo a revista Challenges.

Dê zoom no mapa para ver as sobreposições das concessões da Perenco sobre áreas protegidas em todos os países.

74 áreas protegidas expostas às licenças da Perenco em 9 países

A Perenco está “empenhada em minimizar qualquer pressão sobre a biodiversidade e em contribuir para a sua recuperação”, garante a empresa por meio de um porta-voz, que acrescenta ainda que o grupo “define planos de ação para cada uma das suas divisões, em particular para os locais situados em áreas protegidas”.

Apesar de tal compromisso, a empresa não pôde nos fornecer uma lista completa das áreas protegidas em questão, seu número total e os países afetados — com exceção da Guatemala, onde “o trabalho realizado pela Perenco para proteger a flora e a fauna é visível, com grande parte da Laguna del Tigre tendo sido devastada por agricultores e ocupantes ilegais”, ainda segundo o porta-voz da empresa. 

Em abril passado, no entanto, a Reporterre francesa revelou diversos casos de “poluição e perseguição” nessa zona úmida de água doce, “a maior do país, composta por rios, mais de 300 pequenas lagoas tropicais, savanas e pântanos”.

No total, conseguimos descobrir que as licenças operadas ou detidas pela Perenco estão localizadas em pelo menos 74 áreas protegidas, espalhadas por 9 dos 14 países onde opera — ou seja, mais de dois terços – na América Latina, África e Europa.

O mesmo número de locais em risco para a biodiversidade mundial já na iminência de uma “sexta extinção em massa”. Um fenômeno indissociável do aquecimento global, do qual a combustão de combustíveis fósseis continua sendo hoje o principal motor.

Dois fenômenos indissociáveis, mas co-dependentes, uma vez que a perda de biodiversidade por si só “agrava os efeitos da mudança climática”, como recordou há um ano o Conselho Científico de Biodiversidade da COP aos seus 196 Estados-membros. Estados-membros, como a Guatemala, a Tunísia e a Venezuela — e, de fato, todos os países onde a Perenco opera dentro das áreas protegidas, seja em florestas de mangues, como na República Democrática do Congo, seja em reservas naturais — mais de uma dezena apenas na Colômbia, onde a Mongabay revelou que a empresa tinha sido multada por “27 casos” de “danos à população, à fauna e à flora”. 

Mas as áreas de atividade da empresa incluem também territórios ancestrais comprometidos com a criação da reserva indígena Napo-Tigre, no coração da Amazônia peruana. Essa área, que visa proteger tribos indígenas isoladas, é objeto de um braço de ferro jurídico há quase 19 anos sobre a suposta presença de povos indígenas que nunca tiveram qualquer contato com a civilização moderna — o que a Perenco nega, apesar de evidências fotográficas

Qual esperança existe de aumentar o número de áreas protegidas no mundo todo até 2030, se o estado atual das grandes zonas úmidas, de florestas com elevado potencial de sequestro de carbono e de outros santuários naturais não impedem as empresas de extrair gás e petróleo nessas áreas? E, sobretudo, como se explica isso?

As leis em vigor nos países afetados são um bom ponto de partida. Revê-las significa compreender que a lei tem muitas vezes razões que o clima ignora.

Regulamentos permissivos e locais ‘irregulares

Quando questionada sobre as áreas protegidas onde opera, a Perenco afirma que “cumpre todos os regulamentos locais e as melhores normas internacionais onde quer que opere e que possui todas as autorizações necessárias nesses países”.

É o caso do Reino Unido, onde se situa metade das concessões problemáticas da empresa. Aqui, os estudos de impacto ambiental fornecidos pela Perenco terão convencido as autoridades britânicas a emitir várias licenças petrolíferas cobrindo quase trinta áreas protegidas. Essas incluem os litorais de Dorset e de East Devon, um patrimônio mundial da UNESCO.

Um sistema de atribuição de licenças semelhante ao colombiano — e igualmente permissivo, uma vez que, também no Reino Unido, esses estudos não conseguiram evitar 73 derrames acidentais ocorridos em áreas protegidas entre 2013 e 2023, como revelou recentemente a ONG Unhearted, afiliada ao Greenpeace.

Mas em cada país prevalece o seu próprio quadro regulamentar quando se trata de áreas protegidas. E o que é válido no Reino Unido ou na Colômbia não o é necessariamente em outros lugares. Nos Camarões e no Gabão, por exemplo, as regulamentações sobre áreas protegidas são mais restritivas. Pelo menos em teoria.

Dependências da Perenco no Gabão. Foto: InfoCongo

Nos Camarões, qualquer “atividade industrial” e de “extração de materiais” é proibida nos parques nacionais desde 1995. O Parque Nacional de Ndongere é um desses. É uma área marinha protegida e constituída por uma vasta floresta tropical de mangue, conhecida por ser “um sumidouro único de carbono”, segundo a NASA, e localizada perto de um sítio RAMSAR, reconhecido como “zona úmida de importância, o estuário do Rio del Rey”. É aqui que a Perenco explora pelo menos 4 concessões de hidrocarbonetos. 

Questionada sobre essas conclusões, a Perenco reconhece que opera dentro de áreas protegidas “em alguns casos em que foi declarado o estatuto de área protegida após o início da exploração de hidrocarbonetos”. 

Descobrimos, no entanto, que dois dos blocos em questão tinham sido atribuídos à Perenco após a classificação dessas áreas protegidas, contrariamente à declaração da empresa e ao que consta no site da empresa nacional de petróleo e gás de Camarões. Confrontados com essas constatações adicionais, nem as autoridades camaronesas, nem a empresa fizeram quaisquer comentários sobre a legalidade dessas concessões. 

Nenhum dos pesquisadores contatados pelo nosso parceiro regional InfoCongo quis responder aos nossos pedidos de entrevista, todos considerando o assunto como “uma questão política excessivamente sensível”.

No Gabão, porém, o deputado independente Pierre Philippe Akendengué já não hesita em denunciar a empresa para a qual trabalhou durante 18 anos como engenheiro. “As pessoas sofrem muito com as atividades da Perenco no Gabão para eu me manter calado”, disse. Lá, a Perenco opera em 12 áreas protegidas: reservas aquáticas, parques marinhos e zonas-tampão, como revela hoje o Mediapart.

O deputado eleito, que iniciou um processo contra a Perenco por “poluição ambiental” em 2021 e que foi posteriormente destituído em 2021, condena a falta de transparência da multinacional em relação aos regulamentos locais.

“Tudo foi feito em um manto de sigilo”, afirma. “Ninguém teve acesso a nada, incluindo as autorizações necessárias, que muito provavelmente nunca existiram”.

A lei gabonesa exige, de fato, a publicação de um decreto ministerial autorizando o desenvolvimento de licenças extrativistas dentro de áreas protegidas, bem como a produção de um estudo voltado a um comitê científico desde 2007.

Porém, esses decretos não foram encontrados nos arquivos do Diário Oficial do país, nem os estudos em questão, os quais as autoridades gabonesas não puderam nos fornecer. 

Além disso, a regulamentação local menciona também a possibilidade de exploração “mineradora ou petrolífera após a desclassificação de todo ou parte” de um parque nacional – o que não é o caso de nenhuma das áreas protegidas onde a Perenco opera, que até hoje continuam classificadas como tal.

Segundo o advogado gabonês Gomes Ntchango, a presença dessas licenças em áreas protegidas que não foram desclassificadas torna a exploração “irregular” e “todas as “atividades de produção, proibidas”, acrescenta. 

Mais do que um debate jurídico, a sobreposição entre as licenças petrolíferas e áreas classificadas pela sua rica biodiversidade já está tendo um impacto significativo no país. Segundo o delator franco-gabonês Bernard Rekoula, a situação é “catastrófica tanto para a biodiversidade de um litoral rico em floresta de mangue como para as populações locais”.

O ambientalista, inicialmente um produtor audiovisual, documentou numerosos incidentes de poluição atribuídos à Perenco em 2021 e 2022, antes de ser forçado a buscar asilo na França, após receber várias ameaças de prisão e agressão física. 

“Vazamentos de petróleo, queima irregular de gás e dissimulação de resíduos” – uma série de poluições denunciadas pelo delator, todas semelhantes àquelas pelas quais as ONG Sherpa e Friends of the Earth decidiram processar a Perenco por “danos ambientais” na República Democrática do Congo em 2022.

‘Prejuízo ecológico’ e processos judiciais em curso

Este foi um procedimento sem precedentes, lançado para “reconhecer a responsabilidade civil da empresa francesa e buscar uma indenização pelos danos ambientais na República Democrática do Congo (RDC)”, como explica Théa Bonfour, responsável pelo contencioso e pela defesa da Sherpa.

Na RDC, a Perenco também opera no coração de um Parque Marinho dos Manguezais, onde vários registros de poluição documentados de 2013 até hoje constituem o cerne do caso apresentado pelas duas associações.

Segundo a representante da Sherpa, “o fato de os poços estarem localizados em áreas protegidas mostra que as atividades petrolíferas provavelmente terão um grande impacto sobre o meio ambiente em muitos dos países onde o grupo opera”.

“No caso de poluição repetida ou de poluição em alguma escala nas áreas em questão, pode surgir a questão do dano ecológico”, comenta ainda sobre as 74 áreas sobre as quais a Perenco opera.

Contatada sobre esse processo em curso, a Perenco declarou “não poder comentar uma situação jurídica em andamento”. Mas, segundo o meio de comunicação francês Challenges, esse não é o único processo em curso contra a empresa, que é também objeto de várias investigações por parte da Procuradoria Financeira Nacional francesa, especialmente por “corrupção de funcionários públicos estrangeiros” na África.

Contudo, no que diz respeito às suas atividades de queima de gás, a Perenco declarou que seu objetivo era “zerar a rotina de queima até 2030, exceto em situações emergenciais e conforme os termos contratuais e os direitos de mineração”.  A empresa acrescentou ainda que seus métodos de extração “cumprem as normas internacionais e não apresentam quaisquer problemas para a saúde das populações locais”, quando questionada sobre a RDC.

Essa posição contraria os casos de “diarreia, doenças respiratórias e contaminação por benzeno” documentados conjuntamente pela Disclose, Investigate Europe e EIF em uma investigação publicada há um ano. 

Sobre a questão do impacto ambiental e na saúde, o grupo prefere responder pela vertente social. O porta-voz da Perenco acrescentou ainda que o conhecimento e a experiência do grupo lhe permitem “direcionar as necessidades relevantes de cada país específico e atuar como um parceiro responsável, empenhado e sustentável. A Perenco investe em programas de construção e reabilitação de estruturas como hospitais, escolas, estradas ou infraestruturas energéticas, com o objetivo de ampliar o campo de oportunidades para os mais vulneráveis e lhes permitir o acesso a melhores condições de vida”.

Quando questionada sobre a sua contabilidade interna das licenças que operam em áreas protegidas e sobre a legalidade das suas concessões nos Camarões e no Gabão à luz da legislação em vigor, a Perenco não quis fornecer uma resposta mais detalhada.

O caso da Perenco, longe de ser isolado, tem um aspecto sistêmico na indústria dos combustíveis fósseis. Em maio passado, um estudo publicado pela associação britânica LINGO (“Leave it in the Ground”) já revelara que cerca de 3.000 locais de extração de combustíveis fósseis estão atualmente espalhados em mais de 800 áreas protegidas em todo o mundo. Esses números alarmantes incluem a Total, a Shell e a sua congênere italiana, a ENI. 

* Tradução para o português por Jerusa Pereira/InfoAmazonia


Esta investigação foi apoiada pelo Journalismfund Europe.

Sobre o autor
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Alexandre Brutelle

Diretor do EIF, um consórcio internacional de investigação ambiental, desde 2020, e gerente dos projetos "Investigate" da ONG alemã CiFAR. Foi repórter no exterior de 2014 a 2016, na Ucrânia e Turquia....

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Dorian Cabrol

Jornalista freelancer francês que trabalha principalmente para meio investigativo local chamada Mediacités. Participou de projetos de investigação transnacionais entre Europa e África Ocidental apoiados...

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Madeleine Ngeunga

Premiada jornalista investigativa dos Camarões. Seu trabalho se concentra em gestão e políticas florestais, agronegócio e apropriação de terras, direitos indígenas, conflitos de uso da terra, mudanças...

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Juliana Mori

Juliana Mori é jornalista especializada em produções audiovisuais e visualização de dados geoespaciais. Cofundadora e diretora editorial da InfoAmazonia. Graduada em jornalismo pela Pontifícia Universidade...

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