Comunidades indígenas, afrodescendentes e outras comunidades tradicionais estão envolvidas na escalada de violência do tráfico de drogas no “corredor da cocaína” da Amazônia.
Por Sam Cowie
Maria fala com carinho da pacífica comunidade rural onde cresceu. Quando criança, ela se lembra que brincava na floresta e no rio com as outras crianças, colhendo frutos frescos de açaí e procurando sementes sob árvores altas. Não tinha “brinquedos industrializados”, diz ela. Era “tudo natureza.”
Mas, nos últimos anos, com a chegada de um grupo de traficantes de drogas, essa realidade mudou para uma de disparos noturnos, batidas policiais e conversas sobre assassinatos. No final do ano passado, depois que um jovem veio à sua casa e a ameaçou, Maria* decidiu que tinha que ir embora.
“Ele disse que, se eu denunciasse eles e os tirasse de lá, eu sangraria — toda a minha família sangraria”, lembra.
O homem que ameaçou Maria suspeitou, corretamente, que ela tinha informado as autoridades locais sobre as atividades do grupo criminoso. Temendo pela sua vida, ela fugiu da comunidade chamada Sítio Cupuaçu, que abriga cerca de 350 famílias, em Barcarena, uma cidade portuária e hoje importante centro industrial perto de onde o Rio Amazonas encontra o Oceano Atlântico, no Estado do Pará.
“Estávamos aterrorizados”, diz ela. “As pessoas que nasceram e foram criadas aqui, nunca ouvimos falar desse negócio de drogas”. A sua comunidade é um dos vários quilombos da região.
Maria diz que as pessoas que invadem sua comunidade afirmam ter “permissão” do líder local do Comando Vermelho (CV), uma facção cuja base fica a mais de 3.000 quilômetros, no Rio de Janeiro. Nos últimos cinco anos, porém, eles se estabeleceram como o grupo dominante do narcotráfico no Pará.
A quadrilha usou a comunidade como ponto de distribuição e armazenamento de drogas como cocaína, crack e maconha, enterrando quantidades maiores no solo, em caso de batidas policiais.
Além da venda de drogas, o CV também se envolveu, em menor escala, em grilagem de terras — desmatando para dividir terrenos em lotes para vender — e na construção ilegal, destruindo os ricos habitats naturais da comunidade.
“Árvores que tinham centenas de anos, eles as cortam”, diz Maria, mostrando no seu celular fotos de árvores caídas. “Os animais foram embora. É muito triste”, atesta.
Porto de Barcarena desponta como opção para o tráfico
Localização privilegiada, próximo à Amazônia e no Norte do Brasil, muito próximo à saída para o Atlântico, permite movimentação rápida de mercadorias
Os traficantes trazem cocaína para o Pará —
QUE TEM MAIS DE CINCO VEZES O TAMANHO DO REINO UNIDO
— por rios, estradas e voos clandestinos, que proliferaram com o aumento do garimpo ilegal no Pará e em toda a Amazônia brasileira nos últimos anos.
As duas maiores facções do tráfico do país, o CV e o seu rival mais poderoso, o Primeiro Comando da Capital (PCC), com sede em São Paulo, expandiram o seu alcance dentro do estado, dizem os especialistas. Alguns dos maiores traficantes independentes do Brasil, como o “Major Carvalho”, um ex-policial militar acusado de dirigir uma grande rede brasileira de tráfico de drogas, e Karine Campos, conhecida como a “Rainha do Pó”, também operaram lá, segundo reportagens locais.
Uma vez dentro do Pará, os criminosos dividem as cargas de cocaína para enviar para os mercados domésticos no estado ou em todo o país, ou para a Europa usando as amplas estruturas portuárias do Brasil, incluindo a Vila do Conde, no Pará, a cerca de 20 quilômetros da casa de Maria.
LOCALIZAÇÃO PRIVILEGIADA PARA AS EXPORTAÇÕES
A localização privilegiada do porto de Vila do Conde, a apenas 120 quilômetros do Oceano Atlântico, é ideal para os exportadores que enviam mercadorias para a Europa, China e Estados Unidos. Em 2021, passaram pelo porto quase 17 milhões de toneladas de carga como soja, alumínio, bauxita, adubo e milho.
É um dos chamados portos do “Arco Norte” que ganhou destaque no Brasil ao longo da última década, que encurtam as distâncias marítimas para os principais mercados e, portanto, reduzem os custos logísticos, desafiando o domínio tradicional do Porto de Santos, em São Paulo. Mas as organizações criminosas também capitalizaram.
Dados da Receita Federal obtidos pelo Amazon Underworld por meio da Lei de Acesso à Informação mostram que
O VOLUME DE COCAÍNA APREENDIDO NA VILA DO CONDE AUMENTOU DE 1.462 QUILOS EM 2019 PARA 1.870 QUILOS EM 2021
embora especialistas tenham alertado que as apreensões por si só podem não refletir o quadro real
Em 2020, policiais militares em Barcarena apreenderam mais de duas toneladas de cocaína em uma propriedade rural próxima ao porto depois de trocar tiros com homens armados que fugiram para a floresta próxima. Na época, foi a maior apreensão de cocaína da história do Pará.
Depois, em novembro de 2022, as autoridades federais apreenderam quase três toneladas de cocaína escondidas dentro de sacos de farelo de soja num contêiner no porto, com destino a Portugal. Foi uma das maiores apreensões individuais de cocaína já registradas em um porto brasileiro.
As autoridades também apreenderam cocaína escondida em carregamentos de madeira, açaí e manganês — um mineral que tem sido cada vez mais cobiçado e extraído ilegalmente no sul do Pará nos últimos anos por grupos do crime organizado — prontos para serem exportados para portos europeus em Portugal e na Holanda.
Enquanto o Porto de Santos, em São Paulo, continua a ser o principal ponto de saída da cocaína para a Europa, as inspeções aumentaram nos últimos anos, obrigando os grupos criminosos a procurarem outras possibilidades, de acordo com o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC).
As apreensões na Vila do Conde refletem parte de uma reconfiguração das rotas de droga e dos pontos de saída da cocaína que passa pelo Brasil a caminho da Europa, bem como a crescente importância da Amazônia como um ponto de trânsito internacional de drogas.
Na última década, segundo especialistas, o volume de cocaína e outras drogas que passam pela Amazônia brasileira, seja para os mercados locais ou para exportação, aumentou drasticamente, com níveis recordes de produção nos vizinhos do Brasil, a Colômbia, o Peru e a Bolívia.
Quase 2.000 toneladas de cocaína são produzidas anualmente em Colômbia, Peru e Bolívia.
METADE DISSO PASSA PELO BRASIL
Das quase 2 mil toneladas de cocaína produzidas anualmente, pouco mais da metade passa pelo Brasil, sendo cerca de 40% pela região amazônica, de acordo com Renato Sérgio de Lima, chefe do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
“O ponto de virada foi em 2016”, ele diz, com o assassinato por metralhadora antiaérea de Jorge Rafaat, que controlava o fornecimento de drogas na fronteira do Brasil com o Paraguai, pelo PCC, que então assumiu a rota. “O Comando Vermelho precisou se adaptar e foi forçado a encontrar novas rotas, reativando antigos contatos que tinha com os traficantes colombianos.”
Embora a Amazônia brasileira sempre tenha sido violenta, diz Lima, a violência explodiu em 2017. A região oferece várias vantagens aos traficantes de drogas. “Tem menos fiscalização e controle, mão de obra muito barata e explorada, e a possibilidade de explorar vários setores da economia de uma forma muito mais fácil do que as grandes cidades”, diz Lima. Ele acrescenta: “é muito mais simples lá porque tem menos supervisão [do Estado], por isso é muito fácil lavar dinheiro.”
CRIMINOSOS DRIBLAM A POLÍCIA
Em janeiro, o Amazon Underworld se juntou a policiais militares locais em Barcarena em uma operação para reprimir o tráfico de drogas e outros crimes. Os oficiais disseram que, nos últimos anos, a cidade viu um aumento no número de integrantes de facções libertados da prisão que se dirigem para lá para criar núcleos locais das organizações.
Barcarena tem vários quilombos rurais tradicionais, como aquele do qual Maria fugiu, onde os oficiais dizem que criminosos de fora da cidade procuraram se estabelecer.
No dia anterior à operação, os oficiais disseram que eles haviam invadido um acampamento montado por traficantes na floresta, próximo à Praia de Itupanema, em Barcarena. Nos bairros mais pobres da cidade, pichações do Comando Vermelho estão por toda parte.
Durante a operação, agentes armados invadiram uma casa de madeira simples e prenderam um homem acusado de estupro, que tinha fugido de outra cidade do Pará. No fim, no entanto, a ação não resultou em detenções por crimes relacionados a drogas.
Uma pessoa presente na operação, que pediu anonimato, disse que, com a ação em andamento, os membros das quadrilhas enviariam mensagens alertando que a polícia estava na área e, portanto, ficariam escondidos. Em abril, policiais de Barcarena prenderam um homem de 34 anos procurado por homicídio. Durante a operação, eles também apreenderam R$ 68 mil em dinheiro, bem como cocaína, crack, uma espingarda calibre 12, uma metralhadora calibre 40, duas pistolas 9mm e .40 e dois veículos.
A polícia alega que o homem, cuja identidade não foi revelada, planejou ataques contra as autoridades de segurança durante uma onda de violência orquestrada por líderes do Comando Vermelho no ano passado, na qual pelo menos sete policiais foram mortos. Pouco depois, em julho, foram detidos 10 policiais militares em Belém, capital do Pará, sob a acusação de sequestro e extorsão de traficantes de drogas.
TRAFICANTES SE ESPALHAM PARA ALÉM DAS CIDADES
Hoje inscrita num programa local que oferece proteção e assistência a ativistas ameaçados no Pará, Maria lamenta a destruição da beleza natural da sua comunidade e do seu tecido social.
“Era tão boa”, diz Maria sobre a comunidade. “Sempre tivemos problemas com grileiros tentando reivindicar nossas terras, mas eles sempre recuavam quando mostrávamos nossos títulos de terra.”
Ela diz que a quadrilha também cooptou alguns membros e jovens da comunidade com pequenos presentes e promessas de dinheiro fácil. Seu primo, que era chefe da associação de residentes locais, também fugiu da comunidade depois que a quadrilha o ameaçou com uma arma, em sua casa.
Somos boas pessoas e desejamos criar bem os nossos filhos. Agora, a melhor maneira de criarmos nossos filhos é mandá-los para fora da comunidade
— Maria, residente do quilombo Sítio Cupuaçu
Em 2019, um policial foi morto na comunidade e um dos que foram presos mais tarde, por conta de sua ligação com o homicídio, já tinha sido acusado de tráfico internacional de drogas. No ano passado, dois membros do Comando Vermelho também foram mortos no local, numa operação que aconteceu durante a onda de ataques a policiais.
Maria disse que o jovem que a ameaçou em sua casa é o segundo no comando da área e ele realiza vendas de construções clandestinas. Ela disse que a mãe dele é da comunidade.
Os criminosos removeram a placa que identifica a comunidade, para não afastar os compradores, e uma das ameaças que Maria recebeu veio depois que ela disse para um potencial comprador que a área era um quilombo, e que a sua compra poderia ser, posteriormente, revogada, uma vez que essas terras poderão se beneficiar de proteção do governo no futuro.
A pessoa que veio para sua casa tinha um revólver calibre 38, diz ela. Embora eles não tenham matado nenhum membro da comunidade, ela acrescenta: “eles estão sempre se matando entre si. Quando a polícia vem, eles desaparecem”, diz ela.
A dinâmica das “invasões”, como são conhecidas as ocupações ilegais de terras geridas por grupos do crime organizado, é obscura.
A região metropolitana de Belém tem uma das piores condições de moradia a preços acessíveis do Brasil, um país em eterna crise habitacional, portanto não há falta de gente disposta a realizar ocupações. Um morador de uma invasão do Comando Vermelho em Ananindeua, na região metropolitana de Belém, diz que os líderes do bando decidem quais terras podem ser invadidas e por quem.
A tática serve para dominar e expandir ainda mais as fronteiras urbanas em uma região onde os únicos rivais armados do Comando Vermelho são a polícia e as milícias policiais. Qualquer pessoa que viole as regras, alugando ou vendendo sem autorização, por exemplo, enfrenta um “tribunal” que pode resultar no seu assassinato ou expulsão da invasão, sem ser indenizada.
De acordo com Aiala Colares Couto, pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e especialista em crime organizado, o crescente movimento criminoso em Barcarena segue um padrão estadual.
Muitos líderes criminosos, conhecidos como “torres”, recentemente libertados da prisão ou procurados pelas autoridades, vão para locais mais remotos, fora das capitais dos estados e centros das cidades, para evitar serem encontrados pela polícia.
“Quando chegam, precisam manter uma relação com o tráfico de drogas, porque eles precisam se sustentar economicamente”, ele diz.
Couto diz que o CV em Barcarena procuraria, quase que certamente, expandir a sua influência na região portuária, tal como o PCC fez há anos no Porto de Santos, em São Paulo, onde hoje exerce uma influência significativa.
Ele disse que o CV se espalhou rapidamente no Pará, recrutando membros dentro do sistema prisional do estado, depois que presos locais do estado foram confinados com membros do CV em prisões federais em outras partes do Brasil.
Os integrantes do CV do Pará também têm fugido cada vez mais para o Rio de Janeiro. Leonardo Costa Araújo, um líder da quadrilha conhecido como Leo 41, foi morto em março numa operação policial que deixou 13 mortos no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, na região metropolitana do Rio.
O PCC também opera no Pará, sobretudo na logística do tráfico de drogas, especialmente no sul do estado. Recentemente, as autoridades invadiram propriedades ligadas a supostos advogados do grupo nas cidades de Marabá e Castanhal. Grupos menores, bem como vários grupos de milícias envolvendo policiais, também operam no estado.
O que vemos é o crescente esmagamento das comunidades tradicionais de Barcarena, tanto pela criminalidade como pela indústria pesada, e a destruição dos seus modos de vida tradicionais
— Cícero Pedrosa, jornalista e antropólogo que estudou a história dos quilombos de Barcarena
Além do aumento da criminalidade, vários grandes desastres industriais desde 2010 danificaram seriamente os habitats locais dos quais as comunidades tradicionais dependiam.
Em 2015, um cargueiro libanês, que ia para a Venezuela com 5.000 vacas e 700 toneladas de petróleo, afundou no porto da Vila do Conde, matando a maior parte do gado e despejando parte do petróleo no rio. Os estudos constataram que o acidente reduziu seriamente os estoques pesqueiros, prejudicando os meios de subsistência locais.
Três anos depois, os moradores denunciaram aos promotores porque suspeitavam que o vazamento tóxico da maior fundição de alumínio do mundo, de propriedade da empresa Norsk Hydro, financiada pela Noruega, havia envenenado ainda mais os rios locais, uma alegação mais tarde confirmada por estudos. Pouco depois, o líder do quilombo, Paulo Nascimento, foi assassinado. Advogados e ativistas associaram seu assassinato à denúncia, mas a empresa negou envolvimento.
“O que vemos é o crescente esmagamento das comunidades tradicionais de Barcarena, tanto pela criminalidade como pela indústria pesada, e a destruição dos seus modos de vida tradicionais”, afirma Cícero Pedrosa, jornalista e antropólogo que estudou a história dos quilombos de Barcarena. “Como essas famílias podem ter uma vida saudável lá?”
LAVAGEM DE DINHEIRO ATRAVÉS DE CRIMES AMBIENTAIS
Embora Barcarena tenha emergido como um importante centro de tráfico de drogas nos últimos anos, o CV se expandiu ainda mais para o vasto interior do estado, onde a violência aumentou. Hoje, o estado abriga sete dos 30 municípios que mais assassinam no Brasil.
Jacareacanga, um centro de atividade de mineração ilegal e onde está localizada a terra indígena Munduruku, registrou impressionantes 199 homicídios por 100.000 habitantes em 2021, a segunda maior taxa do Brasil e nove vezes a média nacional de 22 por 100.000.
Outros municípios entre os 30 primeiros, incluindo Floresta do Araguaia, Cumaru do Norte, Anapu, Senador José Porfírio, Novo Progresso e Bannach, também sofrem com as elevadas taxas de crime ambiental e de conflitos fundiários.
Hoje em dia, os traficantes de drogas no Pará e em toda a Amazônia procuram cada vez mais reinvestir ou lavar os lucros ilícitos através de crimes ambientais, como a mineração, a grilagem de terras, a pesca e a caça ilegal, que normalmente acarretam penas menores do que os crimes relacionados com as drogas.
Uma operação policial de 2021 denominada “Narcos Gold” confirmou que os criminosos utilizavam minas de ouro no Pará como pistas de pouso para aviões que transportavam drogas e como fachada para lavagem de dinheiro.
O principal alvo da operação, Heverton “Grota” Soares, possuía 18 licenças de exploração para mineração no Pará, que ele usava como fachada para o tráfico de drogas. Ele é investigado por tráfico, organização criminosa, lavagem de dinheiro e homicídio, além de ter ligações com o PCC, de acordo com reportagens locais.
TRANSPORTE FLUVIAL, RODOVIÁRIO E AÉREO
O Pará não produz cocaína nem faz fronteira com países produtores. De acordo com o Secretário de Segurança Pública e Defesa Social do Estado, Ualame Machado, a maior parte da cocaína e de outras drogas que entram no Pará, especialmente os carregamentos com destino ao porto de Barcarena, vem da tríplice fronteira com o Peru e a Colômbia, pelo Amazonas, estado vizinho, e chegam por via fluvial.
O “skunk”, uma forma de maconha de alta qualidade produzida na Colômbia, é vendido no Brasil por cinco vezes o preço das variedades tradicionais e mais fracas da erva do Paraguai e permite que grupos criminosos que já usam a rota do Rio Amazonas aumentem seus lucros, diz ele.
Recentemente, proliferaram relatos de tais carregamentos dirigidos diretamente para os maiores mercados de drogas do Brasil: São Paulo e Rio de Janeiro.
Machado mencionou uma apreensão, em janeiro, de 1,6 tonelada de cocaína e skunk escondidos sob 12 toneladas de peixe pirarucu, em um navio perto de Óbidos, no Baixo Amazonas, uma região chave para a entrada de drogas no Pará. De Óbidos, as drogas podem ser colocadas em caminhões e transportadas por terra, especialmente pelas rodovias BR-163 e a Transamazônica. De lá, “você pode entregar para todo o Brasil”, incluindo o porto de Vila do Conde, diz Machado.
“É muito mais lucrativo e muito menos arriscado para eles usarem o porto de Barcarena”, diz ele. “E, ao mesmo tempo, a logística é muito mais fácil, porque você não precisa atravessar todo o país para chegar em Santos”. A cocaína boliviana, que passa pelo Mato Grosso, também entra no sul do Pará por estrada e por avião, diz ele.
Nos últimos anos, o aumento do garimpo ilegal, impulsionaoa pelos preços altos do ouro, aumentou o número de pequenos voos de avião, diz Gustavo Geiser, perito da Polícia Federal do Brasil. “E como esses caras já estão fazendo algo ilegal”, acrescenta, entregar cocaína “não é um grande passo para eles.”
Recentemente, o paraense Felipe Pacheco, um piloto de garimpo de Novo Progresso (PA), um notório foco de crimes ambientais como mineração selvagem e extração ilegal de madeira, foi pego transportando quase meia tonelada de cocaína em seu avião no estado do Mato Grosso. Ele foi encontrado morto na prisão dias depois, e sua família acredita que ele foi assassinado.
O Pará abriga os quatro municípios com maior número de pistas de pouso: Itaituba (255), São Félix Do Xingu (86), Altamira (83) e Jacareacanga (53).
São Félix Do Xingu (86),
Altamira (83)
e Jacareacanga (53).
Um dos pilotos de narcotráfico mais experientes do Brasil, Silvio Berri Júnior, que trabalhou para o líder do Comando Vermelho Fernandinho Beira-Mar, possuía um pedido de exploração de ouro no Pará e foi preso em 2020 por suspeita de trabalhar para o megatraficante Major Carvalho.
Machado diz que o Pará serve também como uma base importante para os traficantes que transportam drogas por via aérea para outras regiões do Brasil, já que o vasto estado é frequentemente usado para paradas de reabastecimento. Os territórios indígenas do Pará, como os dos Kayapo e Munduruku, que sofrem algumas das piores destruições da mineração ilegal na Amazônia brasileira, também servem como pontos de logística para voos de drogas, disse Machado.
“Esses lugares são convenientes [para os traficantes de drogas] porque estão fora do caminho do público”, acrescenta. “Não tem carros de polícia patrulhando lá. São remotos e isolados.”
Nas cidades e garimpos em todo o Pará, a cocaína e o crack custam muito mais do que o preço médio de rua — são comuns as trocas de um grama de ouro por um grama de cocaína.
O TRÁFICO DE DROGAS É ‘IMPOSSÍVEL’ SEM CORRUPÇÃO
Machado diz que esforços estão sendo realizados para impedir o escoamento de cocaína para o Pará, incluindo a construção de bases fluviais da Polícia Civil na região de Óbidos e Abaetetuba, dois municípios-chave na rota da droga no Rio Amazonas, bem como a recente construção de uma base em Breves, no Arquipélago de Marajó, perto da foz do Amazonas.
A área metropolitana de Belém, onde fica o porto de Vila do Conde, é constituída por cerca de 40 ilhas, muitas das quais abrigam portos “clandestinos” onde as drogas podem ser descarregadas. A própria Barcarena é uma ilha. As remessas de drogas passam por comunidades ribeirinhas e quilombolas, diz Machado, e as autoridades frequentemente encontram esconderijos enterrados no solo, dentro e ao redor da cidade.
Grandes quantidades de drogas são distribuídas em quantidades menores em propriedades rurais ou armazéns, que são mais baratos e mais protegidos por estarem isolados. “Mas para entrar no porto da Vila do Conde tem que ser profissionalizado”, diz.
Exportadores legítimos podem, sem saber, ter seus contêineres invadidos e carregados por quadrilhas criminosas especializadas que trabalham nos portos, uma técnica conhecida como “rip on/rip off”, quando os lacres oficiais são quebrados e depois reaplicados.
Mas os embarques “profissionalizados” de drogas, como as 2,75 toneladas de cocaína encontradas escondidas no farelo de soja em 2022, muitas vezes exigem a ajuda de funcionários públicos corruptos, dizem especialistas.
Em julho de 2022, o tenente da Polícia Militar do Estado, Aderaldo Freitas, foi detido em Portugal, suspeito de ter conspirado para que 320 quilos de cocaína fossem enviados para Portugal pelo porto da Vila do Conde em contêineres de frutos de açaí. Marco Antonio Faria, um empresário de Barcarena, foi também detido quando recebeu a carga em Lisboa.
Armando Brasil, promotor de Justiça Militar do estado, que solicitou oficialmente o afastamento de Freitas do serviço, diz que o tráfico internacional de drogas seria “impossível” sem agentes públicos corruptos. Ele disse que o tenente da polícia devia estar em serviço no Pará quando foi detido em Portugal.
Tem momentos que a polícia corrupta sabe que as drogas estão sendo guardadas em algum lugar, mas não diz nada, apenas extorque.
– Armando Brasil, Promotor de Justiça Militar do estado do Pará
Brasil descreveu um quadro complexo de armazéns usados na área de Barcarena para guardar cocaína, muitas vezes com a permissão tácita da polícia local corrupta, e empresas de fachada criadas apenas para dar um ar de legitimidade ao tráfico de drogas.
“É uma instituição para defender a ordem pública e a moralidade”, diz ele sobre a polícia, “mas infelizmente há alguns que entram para roubar e para extorquir, para o próprio benefício.”
‘NÃO TEMOS MAIS NADA’
Investigações citadas em reportagens locais indicam que Freitas, o policial militar preso em Portugal, trabalhou para o mais poderoso traficante de drogas de Portugal, Ruben “Xuxas” Oliveira, e Carvalho, o ex-major da Polícia Militar de Mato Grosso do Sul, então considerado o maior traficante de drogas independente do Brasil.
Agentes da Interpol prenderam Carvalho, também apelidado de “Escobar do Brasil”, em um hotel de luxo em Budapeste, na Hungria, em junho de 2022. Desde 2017, de acordo com reportagens locais citando investigações federais, Carvalho enviou pelo menos 45 toneladas de cocaína para a Europa.
Karine Campos, a “Rainha do Pó”, colega do Major Carvalho e hoje considerada a maior chefe do tráfico do Brasil, também é acusada de liderar um grupo de traficantes internacionais de drogas que usaram o porto da Vila do Conde para enviar cocaína para a Europa. Atualmente, ela está foragida, condenada a 17 anos de prisão por tráfico de drogas, juntamente com seu marido, Marcelo Ferreira.
Enquanto isso, de volta a Barcarena, um pescador atraca um barco de madeira frágil em Itupanema, próximo ao porto da Vila do Conde, no momento em que começa uma intensa tempestade. À distância, imensos navios de carga carregados com contêineres de aço, cheios de toneladas de commodities destinadas aos mercados internacionais, ficam ancorados enquanto a tempestade cai.
Maria entende pouco sobre a dinâmica do tráfico internacional de cocaína, mas conhece os danos causados à comunidade florestal perto de onde ela nasceu e cresceu. “Não temos mais nada”, diz ela. “Se um dia conseguirmos recuperar esta terra, teremos de começar tudo de novo.”
*Os nomes foram alterados.
O Amazon Underworld é uma investigação conjunta da InfoAmazonia (Brasil), Armando.Info (Venezuela) e La Liga Contra el Silencio (Colômbia). O trabalho é realizado com o apoio da Rainforest Investigations Network do Pulitzer Center e financiado pela Open Society Foundations, pelo Foreign, Commonwealth & Development Office do Reino Unido e pela International Union for Conservation of Nature (IUCN NL).