A ditadura militar estabeleceu diversas bases, operações militares e grandes empreendimentos no Alto Rio Negro, que levou ao deslocamento de comunidades indígenas e à violação de seus direitos
O Alto Rio Negro é uma região localizada no noroeste do estado do Amazonas, próximo à fronteira com a Colômbia e a Venezuela. Durante a ditadura militar, que durou de 1964 a 1985, a região foi fortemente militarizada devido à sua localização estratégica e ao interesse do governo em controlar a região amazônica.
Tendo seus objetivos em vista, o Regime Militar estabeleceu diversas bases, operações militares e grandes empreendimentos na região, o que levou ao deslocamento de comunidades indígenas e à violação de seus direitos.
Para o Conselho Nacional de Segurança (CNS), não havia a menor possibilidade de se permitir demarcações em regiões transfronteiriças. Conforme registrou o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), o CNS propunha criar colônias agrícolas. E aprimeira delas foi instalada exatamente no Alto Rio Negro.
Durante o período do regime militar de 64, as principais exceções aos direitos territoriais reconhecidos constitucionalmente foram as produzidas pelo próprio Estatuto do Índio de 1973. Conforme a jurista Rosane Lacerda, doutora em Direito, Estado e Constituição da Universidade de Brasília (UnB), hoje professora adjunta da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), os militares teceram uma fachada de legalidade, mas com o intuito de violar direitos.
“O Estatuto do Índio permitia ao Presidente da República emitir decretos de intervenção para remover os indígenas de suas terras a fim de realizar obras públicas ou de exploração mineral, tudo em nome do critério segurança e desenvolvimento nacionais. Foi assim que surgiram as rodovias Transamazônica e Perimetral Norte, a Hidrelétrica de Balbina, e tantas outras que custaram a vida e a integridade territorial de muitos povos indígenas naquele período”, explica Rosane.
Nas colônias agrícolas, os indígenas conviviam com a presença de militares organizados em batalhões, e ao redor dos batalhões vilas de não-indígenas eram erguidas. Viviam nelas as pessoas que chegavam pelo chamado da ditadura militar a ocupar a região, habitada apenas pelo ambiente selvagem, e vendida como a ser domada pela nação. Se tratava de uma invasão.
O ano de 1970 foi um marco importante para a história recente da Amazônia brasileira. A ditadura anunciou publicamente o Plano de Integração Nacional (PIN), programa de obras de infra-estrutura com o objetivo de integrar geopoliticamente a região ao resto do país, com efeitos também na região do Alto Rio Negro.
Entre 1972 e 1975, de acordo com o arquivo do Povos Indígenas do Brasil, seus primeiros efeitos apareceram com a instalação de postos da Fundação Nacional do Índio (Funai) e a chegada de militares do Batalhão de Engenharia e Construção e trabalhadores de empresas contratadas para a abertura da BR-307 (ligação entre São Gabriel e Cucuí) e de um trecho da rodovia Perimetral Norte (BR-210), hoje abandonada.
As escolas também eram usadas para educar crianças longe da língua tradicional servindo como espaço para a integração dos indígenas à sociedade envolvente, como era projeto dos militares: assim as terras estariam liberadas, pois se não há índio não há necessidade de garantias territoriais.
Este período caracterizado por violações de direitos humanos continua gerando consequências ao Alto Rio Negro, onde as comunidades indígenas lutam por seus direitos, inclusive ao território, e pelo reconhecimento de sua autonomia e cultura tendo a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), fundada em 1987, como principal organização política coletiva.
A Forin precisou enfrentar outra consequência da presença da ditadura militar no Alto Rio Negro e adjacências: a exploração desumana do trabalho indígena, muitas vezes análogo à escravidão, como visto na prática do aviamento (servidão por meio da dívida). A prática se deu inclusive por empresas de mineração que abriam estradas e mineravam na região.
A presença militar segue criando conflito para as comunidades ainda hoje. Um exemplo denunciado em 2019 aqui na InfoAmazonia, foi a extração de granito usado na reforma da pista do aeroporto militar em Iauaretê. Localizada a partir de dados levantados pelo Amazônia Minada, a mina clandestina de brita para construção da obra foi aberta ilegalmente pelos militares dentro da terra indígena e criou transtornos às aldeias.
Deslize o slider para ver transformação do local explorado sem autorização da ANM pelos militares no distrito de Iauaretê, dentro da TI Alto Rio Negro.Pluralidade populacional e ambiental ameaçada
A terra indígena Alto Rio Negro abrange uma área de aproximadamente 79 mil quilômetros quadrados e abriga 20 povos indígenas, além de três em situação de isolamento voluntário, entre os municípios de São Gabriel da Cachoeira e Japurá. São mais de 30 mil indígenas conforme os números da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai).
Fora a TI Alto Rio Negro, homologada em 1998, existem mais sete terras indígenas: quatro delas homologadas e contíguas, duas ainda a identificar e uma em processo de identificação. Há ainda no Alto Rio Negro um Parque Nacional e 90% da população da região é composta por indígenas.
O rio Negro, um dos maiores afluentes do rio Amazonas, entrecorta toda a região com suas águas escuras concentrando altos níveis de matéria orgânica dissolvida nas florestas circundantes, ameaçadas pela invasão de madeireiros, grileiros, garimpo, pesca e caça ilegais.
A região também é conhecida por sua biodiversidade, com uma vasta gama de espécies vegetais e animais, incluindo muitas espécies endêmicas da região amazônica. O Alto Rio Negro é considerado um dos mais importantes centros de diversidade biológica do mundo e foi designado como Reserva da Biosfera pela UNESCO.
Apesar de sua importância ecológica e cultural, a região enfrenta uma série de desafios, incluindo desmatamento, mudança climática e invasão de indústrias extrativas, que ameaçam os meios de subsistência e os direitos das comunidades indígenas que a chamam de lar.
Na contramão, há uma parcela de pioneirismo na resistência a tal quadro. Como exemplo estão as organizações indígenas femininas surgidas na década de 1980, com a criação das Associações de Mulheres Indígenas do Alto Rio Negro (Amarn) e do Distrito de Taracuá, Rio Uaupés e Tiquié (Amitrut).
Novas dinâmicas de território e manejo
O incentivo da ditadura à colonização da região do Alto Rio Negro teve um efeito duplo ao criar deslocamentos de povos indígenas pela localidade, dispersando-os através da entrada do PIN nos territórios indígenas, e de populações que chegaram ao Alto Rio Negro vindas de todas as partes para trabalhar e se estabelecer, essencialmente.
De acordo com pesquisas realizadas por Ludivine Eloy e Cristiane Lasmar, no estudo Urbanização e transformação dos sistemas indígenas de manejo de recursos naturais: o caso do Alto Rio Negro, é possível observar mudanças profundas na região devido à urbanização intensa e acelerada de algumas localidades e aos processos migratórios ocorridos nas últimas décadas.
“Nossos dados foram obtidos por meio de pesquisas etnográficas e agroeconômicas, associadas ao Sistema de Informação Geográficas para análise de população, direitos fundiários e paisagens na área periurbana de São Gabriel da Cachoeira, a principal cidade da região”, explicam as pesquisadoras.
Os estudos constataram que as comunidades indígenas utilizam um território tradicional, onde se articulam diversos tipos de direitos fundiários sobre os recursos naturais, desde o uso individual exclusivo até a propriedade comum. Já na região periurbana, conforme a pesquisa aprofunda, a propriedade privada da terra tornou- se dominante.
“Por causa da escassez crescente dos recursos naturais ao redor da cidade, as famílias migrantes negociam seus direitos fundiários no âmbito de uma rede social extensa, criando assim uma estratégia multilocal. Esta pode ser entendida como manifestação da adaptabilidade dos sistemas tradicionais de manejo dos recursos naturais”, analisa o estudo.
Na publicação da pesquisa, as autoras apresentam o estudo de caso de Maria, que mora no Bairro da Praia, em São Gabriel, e possui um terreno de 3000 m de largura, na beira do rio, de frente para a cidade. “É um terreno que herdou do avô. O título fundiário data do início do século, e o domínio da família sobre a área não foi questionada pela criação da Terra Indígena (Alto Rio Negro)”, inicia.
Em meados de 2010, Maria e seu marido autorizaram a uma família Baniwa, oriunda no Alto Içana, a abrir suas roças e fundar sua comunidade no terreno. Segundo Maria contou às pesquisadoras: “Eu pago para eles abrirem roça para mim.(…) podem fazer roça onde querem (…) quando a gente vem visitá-los, eles costumam oferecer farinha e frutas para nós (…). A beira, do outro lado do rio, não pertence aos índios. Além do limite dos terrenos, aí começa a Terra Indígena”.
Perimetral Norte
A Perimetral Norte, consruída como a BR-210, é um projeto de infraestrutura rodoviária que conectaria várias cidades e comunidades na região do Alto Rio Negro, no estado brasileiro do Amazonas.
O traçado proposto para a Perimetral Norte seguiria o limite norte da região do Alto Rio Negro, ligando os municípios de Santa Isabel do Rio Negro, Barcelos e São Gabriel da Cachoeira, entre outros.
A estrada também passou por várias terras indígenas e áreas protegidas, incluindo a Terra Indígena Yanomami, uma das maiores reservas indígenas do Brasil. A construção da Perimetral Norte entre o município de Caracaraí, na primeira metade da década de 1970, levou à morte de dezenas de Yawarip, subgrupo Yanomami. Os sobreviventes mendigavam à beira da estrada.
Em conseqüência, a população Yanomami dos vales dos rios Ajarani e Catrimani acabou devastada, sendo que quatro aldeias do Ajarani perderam 22% de sua população, entre 1973 a 1975, e quatro outras do Alto Catrimani perderam metade de sua gente em epidemias de sarampo em 1978 (Fundação Nacional de Saúde, 1991).
Concomitantemente, instalam-se projetos de colonização no Ajarani e Apiaú tendo como consequência a pauperização e estabelecimento de portas de entrada de doenças com alta letalidade nas aldeias.
As preocupações se desdobraram com o desmatamento, o aumento do acesso à mineração e extração ilegal de madeira e o potencial da estrada para perturbar o tecido social e cultural das comunidades indígenas.
Hoje, o governo brasileiro tem parte do projeto engavetado. A ideia é que ela cruze a Amazônia de ponta à ponta. Por sua vez, as organizações indígenas seguem denunciando o que a Perimetral Norte causou sem a realização de consultas com as comunidades indígenas para tratar de suas preocupações.
Esta reportagem faz parte da série ‘Memória Interétnica’, com conteúdos que retomam casos de violações contra indígenas documentados por Centro de Referência Virtual Indígena e Cartografia de Ataques contra Indígenas, conectando-os aos temas da atualidade. O projeto é uma realização do Instituto de Políticas Relacionais em parceria com o Armazém Memória e tem apoio da Embaixada Real da Noruega em Brasília.