Assessora especial da Organização das Nações Unidas visitou aldeias no Mato Grosso do Sul e testemunhou cenário de violência extrema, fruto de mais de um século de violações e esbulhos
“O nosso território está ameaçado”, discursa Leila Rocha, da Terra Indígena (TI) Yvy Katu, em Japorã (MS), resumindo o diálogo que teve na última semana com Alice Nderitu, a assessora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para a prevenção do genocídio. “Não somos invasores para sermos tratados dessa maneira”, pontua, em entrevista à Infoamazônia, a liderança que acompanhou de perto a mais recente missão da ONU nos territórios dos Kaiowa e Guarani em Mato Grosso do Sul.
Em sua declaração final sobre a visita ao Brasil, a assessora da ONU testemunhou: “A maioria dos indígenas foi expulsa de suas terras tradicionais, na maior parte dos casos de forma violenta. Alguns vivem às margens das rodovias em condições degradantes e desumanas”. No documento, publicado no último dia 12, Nderitu manifestou ter ficado “chocada com a extrema pobreza das comunidade” e afirmou que os violentos ataques contra os Kaiowa e Guarani podem ser identificados como atentados à Convenção sobre a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, de 1948, e cobra que as denúncias sejam devidamente investigadas.
Em mais de um século de esbulho de suas terras, essa população de 65 mil pessoas – a maior fora da Amazônia e a segunda do país –, convive de modo continuado com a violência e o medo que marcaram seu passado de expulsões. Só em 2023, ao menos três comunidades foram alvo de despejos extrajudiciais após retomarem seus territórios – Laranjeira Ñanderu e Kurupi em março, Yvu Vera em abril. Entre 2003 e 2014, um em cada dois casos de assassinatos de indígenas no Brasil aconteceu em Mato Grosso do Sul, segundo dossiê da Cartografia dos Ataques Contra Indígenas (Caci) que identificou a situação como “um genocídio em curso”.
“O [caso] Guarani Kaiowá é um extremo de violência e de esbulho do território – e requer uma solução urgentíssima do governo federal”, avalia Eliel Benites, que é professor kaiowa e diretor do Departamento de Memória e Línguas Indígenas do Ministério dos Povos Indígenas (MPI). Mas apesar das movimentações recentes do governo federal para dar respostas à situação territorial dos Kaiowa e Guarani – como a visita de uma comitiva liderada pelo MPI à região em março último – nenhuma terra deste povo foi incluída entre as áreas identificadas pela Funai ou homologadas pela presidência da República no último dia 28 de abril.
Remoções forçadas, retomadas incessantes
A falta de respostas do Estado brasileiro frente à situação dos Kaiowa e Guarani contrasta com o destaque dado, em 2014, pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) ao caso – que foi um dos primeiros a ser abordado pelo relatório, com detalhamento do processo de expulsão e remoção forçada de diferentes comunidades para reservas indígenas.
“Somos um povo despejado, injustiçado, agredido, torturado, sem terra e sem mais retorno às terras tradicionais”, explica o antropólogo kaiowa Tonico Benites, que escreveu sua pesquisa de doutorado sobre processo de recuperação territorial das comunidades de seu povo a partir dos anos 1970, por meio dos jeroky guasu (grandes rezas) e aty guasu (grandes reuniões que organizam a luta do povo Kaiowa e Guarani). Um dos casos detalhados pela CNV foi o de sua própria terra, a TI Jaguapiré, que em 1985 foi alvo de um violento despejo com a participação de agentes de segurança pública.
Na ocasião, além da violência física, casas e roças foram incendiadas e parte da população foi removida forçosamente para a Reserva Indígena (RI) Sassoró: “Nós ficamos só olhando e o fazendeiro entrou e vasculhou tudo. E depois o fazendeiro pegou a minha mãe pela cintura e jogou ela na carroceria do caminhão e as crianças chorando. Até hoje fico triste quando lembro disso”, testemunha aos prantos a anciã Roberta Ximenes, em entrevista ao documentário “Tempo de Guavira” (2022), de Pedro Biava, que registrou narrativas desse tempo das expulsões em mais de 40 territórios.
Há exatos 44 anos, em maio de 1979, a manchete do jornal Folha de S. Paulo destacava outro caso emblemático de remoção forçada: o de Rancho Jakaré, comunidade que foi retirada duas vezes de seu território, sobreposto a terras ocupadas pela Cia. Matte Larangeira – a quem o Estado havia concedido extensas porções de terras no sul de Mato Grosso do Sul já no século XIX. Na segunda expulsão, em 1978, a própria Funai associada a fazendeiros, operacionalizou a remoção dos indígenas para a RI Kadiwéu, a cerca de 600 km de distância dali. O caso, intensamente documentado na imprensa, foi também relatado à CNV por Ricardo Kaiowa, cujo depoimento em vídeo conta que as famílias foram levadas em gaiolas cobertas por lona até a Serra da Bodoquena – e retornaram a pé a seu território.
Segundo Tonico Benites, que atualmente é Coordenador Regional da Funai em Ponta Porã (MS), as remoções forçadas para reservas, expulsões e destruição de aldeias, com a participação de agentes estatais – como policiais e até servidores do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e da Funai – faziam parte de um modus operandi comum a muitos outros casos: “A retirada através do convencimento das lideranças da família extensa começou a partir da criação do SPI. Essa era a primeira e principal técnica e durou mais ou menos 50 anos de trabalho do SPI. Depois, em 1967, os funcionários da Funai passaram a fazer essa atividade. Ao mesmo tempo, os proprietários, fazendeiros, chegavam também falando em tom ameaçador: ‘Se você não conseguir convencer pra sair dali a gente vai atacar’. E aí aparece o ataque: os fazendeiros e os policiais sem ordem judicial mesmo atacavam e isso perdura até hoje, não muda – até mesmo ampliaram e sofisticaram essa forma de atacar”.
“Esse confinamento foi um método de ‘liberação’ de terras indígenas para a colonização”, constatou a CNV em seu relatório, que também registrou casos de perseguição e assassinato de lideranças como Marçal de Souza Tupa’i, morto em 1983, tendo denunciado internacionalmente a situação e apoiado a resistência da comunidade kaiowa na região do tekoha Pirakuá. Em outro dos casos, como o da TI Guyraroká, mesmo tendo passado por expulsões desde os anos 1940, a demarcação da terra acabou sendo anulada na justiça em 2014, pela tese do marco temporal.
“Todas as terras de onde fomos expulsos, não devolveram mais; só algumas foram retomadas”, explica Tonico Benites, se referindo ao movimento de retorno aos territórios tradicionais após a expulsão dos Kaiowa e Guarani. Estima-se que atualmente existam mais de 70 áreas retomadas em todo o Cone Sul.
“Vários documentos evidenciam que os Kaiowa não aceitaram passivamente a saída das terras” e que muitos deles continuaram na região, trabalhando em fazendas, como “parte de uma estratégia do grupo de permanência na terra onde sempre viveram”, ressalta o laudo de identificação da TI Guyraroka, da Funai.
Demarcações como reparação
“A investigação por parte da CNV é claro que criou uma expectativa de que os indígenas seriam indenizados. A Aty Guasu continua pedindo a reparação através da demarcação”, conta Tonico Benites, que se dedicou a acompanhar as audiências e diligências em campo da então relatora dos casos, Maria Rita Kehl. As audiências foram organizadas junto a órgãos como o Ministério Público Federal (MPF) e a Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e estão parcialmente documentadas pelo Armazém Memória [documentação da 1ª audiência / documentação da 2ª audiência].
A regularização e desintrusão das terras indígenas como forma de reparação coletiva pelas violações de direitos é uma das recomendações do relatório da CNV – mas ainda não saiu do papel. Na avaliação de Eliel Benites, a devolução dos territórios aos Kaiowa e Guarani “é um primeiro passo, que seria a própria reparação da justiça, porque sem o território não há memória, não há língua, não há condição de vida e dignidade humana”.
O jurista Lauro Joppert Swensson vê grande importância na escuta realizada pela CNV, mas também frustração: “Foi a primeira vez que oficialmente deu-se espaço para que os próprios indígenas pudessem se manifestar. Propor audiências públicas foi uma coisa muito positiva, mas absolutamente insuficiente e que não teve grandes continuidades”, avalia o pesquisador, que é professor de Direito na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) e defendeu em 2023 uma dissertação sobre o tema.
No caso dos Kaiowa e Guarani, lembra Swensson, o efeito é ainda pior porque as violações não se restringiram ao período de 1946 a 1988, investigado pela CNV, mas “vêm desde antes e continuam depois dos trabalhos”. Para ele, o processo de esbulho territorial está na base para a “guerra continuada” vivida pelo povo na atualidade.
Concordando com Swensson o antropólogo Rafael Pacheco lembra que a expropriação territorial foi identificada pela própria CNV como um dos princípios para demais as violações cometidas contra os indígenas, em todo o país: “A questão territorial é um eixo que articula as violações, no sentido que o interesse nas terras motiva a violência”.
Para a Aty Guasu não resta dúvidas de que a situação vivida pelos indígenas hojé é um genocídio. Uma publicação no perfil da organização em uma rede social, mostra um vídeo dos ataques contra o território Jaguapiré, em 1985, com a seguinte legenda: “O povo Guarani Kaiowa foi e é invadido sim, por isso sofre genocídio”.
Para Leila Rocha e outras lideranças kaiowa e guarani, a recente visita da assessora da ONU abre uma nova janela de atenção para a demanda histórica de seu povo: ter de volta seus tekoha (territórios tradicionais) demarcados e protegidos pelo Estado brasileiro. “A nossa esperança é isso. A nossa lágrima já derramou bastante. Nós perdemos nossas lideranças. Se não tiver demarcado, homologado vai continuar assim”.
Esta reportagem faz parte da série ‘Memória Interétnica’, com conteúdos que retomam casos de violações contra indígenas documentados por Centro de Referência Virtual Indígena e Cartografia de Ataques contra Indígenas, conectando-os aos temas da atualidade. O projeto é uma realização do Instituto de Políticas Relacionais em parceria com o Armazém Memória e tem apoio da Embaixada Real da Noruega em Brasília.
A bandeira da demarcação é urgente e as famílias Kaiowá e Guarani dizem que não vão recuar. O território é deles e sempre vão retornar. Estamos aguardando as ações do governo federal no reconhecimento e homologação desses tekoha.