Ligado à preservação da memória dos crimes da ditadura entre os movimentos sociais, e especialmente os povos indígenas, Marcelo Zelic desenvolveu com a InfoAmazonia os projetos Memória Interétnica e a plataforma Cartografia dos Ataques Contra Indígenas (CACI). Leia sua entrevista inédita.

“A Justiça de Transição não é um processo milagroso, ela é um processo que se estabelece fortalecendo o direito e fazendo o estado democrático compreender os limites entre o respeito ao direito de desenvolvimento e o respeito ao direito indígena”. Na última década, Marcelo Zelic fez da luta pela reparação histórica aos povos indígena sua bandeira de vida. 

Com tristeza, lideranças do movimento indígena e seus apoiadores receberam, na tarde desta segunda-feira (8), a notícia de sua morte. Vítima de acidente vascular cerebral, Zelic foi pesquisador, militante em direitos humanos, diretor do grupo Tortura Nunca Mais e membro da Comissão Justiça e Paz: A Comissão Justiça e Paz tem como serviço estimular os cristãos a consciência ética e cidadã frente às violações dos direitos humanos .

Em uma das suas últimas atividades como militante da causa, entre 24 e 28 de abril, Zelic participou das atividades do Acampamento Terra Livre (ATL), em Brasília, onde falou aos indígenas sobre a importância da Comissão Nacional Indígena da Verdade para apurar os crimes da ditadura contra os povos tradicionais.

Fabio Bispo/InfoAmazonia
Marcelo Zelic diz que comissão da verdade dos povos indígenas precisa reparar crimes do passado que até hoje ainda têm reflexos na vida dos povos originários

“Precisamos que o Estado passe a respeitar a Constituição no que ela diz sobre os povos indígenas”, afirmou Zelic à nossa reportagem, na tarde de 24 de abril, em entrevista gravada logo após ele apresentar o assunto na Comissão da Amazônia e dos Povos Originários e Tradicionais, da Câmara dos Deputados. 

Atualmente, em parceria com a InfoAmazonia, Zelic coordenava o projeto de reportagens especiais Memória Interétnica que retrata a permanência de práticas, conceitos e crimes cometidos pela ditadura militar contra os povos indígenas que ainda se repetem no presente.

Psicodramatista, Zelic se dedicou desde o início da década de 2000 à preservação da memória da resistência civil à ditadura militar. Neste período, criou o Armazém Memória: uma plataforma virtual que reúne e sistematiza documentos oficiais, jornalísticos e do terceiro setor digitalizados com o objetivo de dar acesso e resgatar a memória ligada à história social, política e à luta popular.

No filme ˜Orestes˜, de Rodrigo Siqueira, que fala da ditadura militar e o presente, da violência policial, Marcelo Zelic é um dos protagonistas atuando como alter ego auxiliar em um psicodrama coordenado pela psicóloga Marisa Greeb (Fonte: Youtube)

A importância da memória

Autodidata, cursou as faculdades de engenharia e jornalismo, sem completá-las. Em entrevista publicada em 2017 na revista “Mediações”, da Universidade Estadual de Londrina, contou que sua trajetória como militante começou com trabalho social na Favela  do Autódromo, no Rio de Janeiro, prestando Serviço de Justiça e Não-Violência. Zelic também atuou em favelas de São Paulo pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.

Ainda na entrevista, Zelic conta que despertou para a importância da preservação da memória entre os movimentos sociais durante a campanha contra a adesão do Brasil para a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) que acontecia durante o segundo mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso.  “Quando deu o quebra pau com a ALCA. Aí eu me dei conta de que faltava pensar a questão da memória”. Foi neste momento que o pesquisador entrou em contato com Grupo Tortura Nunca Mais, e idealizou o projeto Armazém Memória. 

A partir da década de 2010, Zelic centrou seu foco de ativista na Justiça de Transição aos povos indígenas do Brasil. Em 2012, foi responsável  por recuperar as imagens feitas em 8 milímetros pelo filmaker Jesco von Puttkamer de tortura em ambiente público durante a formatura da Guarda Rural Indígena criada pela ditadura. A descoberta desencadeou uma série de investigações jornalísticas sobre a atuação da Guarda e as práticas de tortura na cadeia para população indígena construída pelo regime: o Reformatório Krenak.

Reprodução Youtube
Indígena da etnia Krenak foi amarrado em pau-de-arara durante desfile da ditadura militar

Ainda em 2012, Zelic também encontrou no Museu do Índio em Brasília uma cópia do Relatório Figueiredo. O Relatório de mais de 7 mil páginas havia ficado desaparecido por 45 anos e foi produzido para a CPI do Índio, realizada em 1967, para apuradar denúncias de genocídio, torturas e esbulhos praticados com a anuência do Serviço de Proteção ao Índio (SPI).

As investigações de Zelic foram decisivas para a criação do capítulo indígena da Comissão Nacional da Verdade (CNV), responsável por investigar os crimes da ditadura militar contra os povos indígenas em 2014.

Ao final, a CNV fez 13 recomendações para o Estado brasileiro sobre a questão indígena durante a ditadura. Entre as recomendações consta um pedido de desculpas do Estado aos povos indígenas, que nunca ocorreu, a abertura de uma Comissão Nacional da Verdade dedicada somente à questão indígena e a demarcação dos territórios, raiz central de graves violações de direitos humanos apuradas pela Comissão.

O documento final da CNV apontou que pelo menos 8.350 indígenas, em 10 etnias investigadas, foram mortos por ação e omissão do Estado, mas a própria comissão reconhece que esses estudos ficaram inconclusos visto que existem hoje 305 povos indígenas no Brasil.

Em 2015, o Armazém Memória lançou junto à InfoAmazonia a plataforma Cartografia dos Ataques Contra Indígenas (CACI), um mapa interativo que compila dados sobre os casos de violência contra os povos indígenas desde 1985.

A CACI é um mapa interativo realizado com o apoio da parceria com a Fundação Rosa Luxemburgo e representa o primeiro esforço de unir os documentos mais importantes no monitoramento de ataques contra indígenas, os relatórios anuais da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e do Conselho Indigenista Missionário (CIMI).

Comissão Nacional da Verdade Indígena

Atualmente, Zelic militava pela abertura de uma Comissão Nacional da Verdade Indígena. A pauta é uma reivindicação do Movimento Indígena e conta com o apoio do Ministério dos Direitos Humanos, Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e organizações indigenistas. 

Em sua conta no Instagram, a ministra Sonia Guajajara ressaltou a importância de Zelic “para a retomada de estudos e grupos de trabalhos que preservavam o processo e a importância de uma Comissão da Verdade Indígena”. Afirmando o compromisso com a sequência dos trabalhos propostos pelo pesquisador, disse: “Seu legado, trabalho e memória continuarão vivos entre todos nós e reforçamos que continuaremos trabalhando em suas ideias.”

Fabio Bispo/InfoAmzonia
Da esquerda para a direita, Marcelo Zelic, o jornalista Rubens Valente e a deputada Célia Xakriabá durante audiência pública em Brasília

Zelic esteve no Acampamento Terra Livre (ATL) e participou da audiência pública realizada na Comissão da Amazônia e dos Povos Originários e Tradicionais. A audiência realizada dia 25 de abril, na Câmara dos Deputados, foi presidida pela deputada Célia Xakriabá (PSOL-MG) e abordou os temas Justiça de Transição e Comissão Nacional da Verdade para os Povos Indígenas.

Além de participar de audiência na Câmara, durante o ATL, Zelic esteve incansável em reuniões com lideranças, representantes políticos e membros do Executivo para consolidar o entendimento sobre a necessidade da criação da comissão indígena e como as comunidades podem se organizar para denunciarem os crimes da ditadura.

Na ocasião, Zelic conversou com o repórter Fábio Bispo para a matéria “Indígenas depõem na Câmara sobre crimes da ditadura e pedem Comissão da Verdade para reparação histórica”, publicada no Memória Interétnica no dia de ontem, 8 de maio, horas antes do comunicado de seu falecimento.

Leia a entrevista na íntegra a seguir :

InfoAmazonia – O que temos de documentos públicos que retratam esse período da ditadura e os povos indígenas?
Marcelo Zelic – Primeiro, nós temos um volume documental muito grande no país com relação aos povos indígenas produzido pelo Estado e é um material muito pouco estudado e muito recente também.

Esse material possibilita o fortalecimento de várias reivindicações que nós temos no presente porque ele remete a um período em que as terras foram demarcadas e expõe como o Estado brasileiro atuou para lograr êxito de modo a esbulhar a terra indígena.

Então, existem documentos que deixam o rei nu, com relação à forma criminosa de como o Estado brasileiro tratou o direito indígena.

Existem documentos que deixam o rei nu, com relação à forma criminosa de como o Estado brasileiro tratou o direito indígena.

Mas a Comissão da verdade não tinha estrutura para estudar tudo isso, por isso que ela termina o trabalho dizendo que é preciso dar sequência criando uma Comissão Nacional Indígena da Verdade.

Como vai ser essa comissão é um assunto em aberto a ser discutido com os povos indígenas. Estamos conversando dentro do MPI de que não é necessário seguir o mesmo modelo da Comissão Nacional da Verdade [CNV].

Você fala que a Comissão Indígena da Verdade vai apurar crimes que não cessaram. Como será a construção desse argumento
Demarcar as terras indígenas é obrigação, mas nem essa obrigação o Estado faz. Então você pega casos do passado, mostra como o Estado está protelando, identifica esses casos no presente e diz que isso não pode mais judicialmente.

Os povos indígenas podem inclusive trazer uma novidade no campo do fortalecimento da democracia, porque eles podem construir esse restabelecimento da memória e da verdade sem o impedimento da judicialização da responsabilização, da reparação e da criação de mecanismos de não repetição, para que oficialmente o Estado crie uma normativa com decisão judicial para dar o norte do que é preciso fazer com relação às graves violações de direitos humanos, são elementos a mais. 

Essas violências vão cessar? não sabemos, porque a ação violenta das pessoas que têm esses interesses sobre o direito indígena, sobre os territórios, não vai parar porque o juiz falou. A gente vê isso acontecendo agora com os Yanomamis, o juiz mandou tirar todo mundo e ainda tem gente lá armada atacando as forças de segurança. 

A Justiça de Transição não é um processo milagroso, ela é um processo que se estabelece fortalecendo o direito e fazendo o estado democrático compreender os limites entre o respeito ao direito de desenvolvimento e o respeito ao direito indígena, e onde essa aflição tem que parar as agressões.

Mas é um processo. A Justiça de Transição não é um processo milagroso, ela é um processo que se estabelece fortalecendo o direito e fazendo o estado democrático compreender os limites entre o respeito ao direito de desenvolvimento e o respeito ao direito indígena, e onde essa aflição tem que parar as agressões. Então, ela é uma ferramenta a mais para fortalecer o processo de luta dos povos indígenas.

Você encontrou os documentos que falam sobre a existência do Reformatório Krenak nos registros do Estado brasileiro, entre outros. Qual é a importância desses documentos para a Comissão Indígena da Verdade?
Eu encontrei os arquivos do reformatório, do relatório Figueiredo… Mas o fundamental é a gente ter um olhar sobre os arquivos buscando as suas permanências no presente. O que quero dizer é que não estamos preocupados só em punir o capitão Pinheiro que fez todas essas violações no Reformatório Krenak. Mas sim saber como atuam os juízes hoje quando condenam um indígena com provas forjadas, como é o caso dos Guarani, que estão presos neste momento com a ação da polícia que cria condições de prisão ilegal. E como isso serve ao olharmos para o caso do Reformatório Krenak, para que mude a conduta do Estado. Precisamos que o Estado passe a respeitar a Constituição no que ela diz sobre os povos indígenas.

São episódios que criaram traumas na vida dessas comunidades, totalmente voltadas a se relacionarem com processos de violência permanente. Eles tiraram os Krenak de suas terras e os colocaram dentro de um reformatório. Todo um povo. 

Mais do que olhar para esses casos, então, a Comissão vai entender como esses crimes se perpetuam?
A comissão proporciona uma reflexão na sociedade. Ela valoriza o direito indígena ao mesmo tempo em que expõe a ação do Estado contra esse direito. E, a partir dessa dessas constatações e levantamentos de documentação e tudo mais, fazer a sociedade evoluir no sentido da democracia, do respeito à pluralidade. Os indígenas enfrentam isso há 523 anos. É preciso entender que a questão territorial é elemento central para todas as violações contra os povos indígenas. E isso foi dito pela CNBB em 1982, foi dito pelo serviço de inteligência do governo Collor, foi dito pela Comissão Nacional da Verdade em 2014, há décadas se fala a mesma coisa e não se vê uma atitude do Estado, porque o Estado precisa mudar de conduta perante o direito indígena.

O Estado brasileiro fomenta a violência contra os povos indígenas quando ele se omite, como sempre se omitiu, ou quando cria legislações como o marco temporal, que é para o esquecimento e fomento da violência que acontece hoje. O marco temporal não tem como se sobrepor a um direito originário, e o absurdo que isso chega é que precisa ser definido pelo Judiciário brasileiro na sua instância maior, que é o STF. Todo mundo que lê a Constituição percebe que isso é um engodo, mas é preciso sacramentar no Judiciário. 

Que os juízes então passem a ter que se debruçar sobre questões de reparação e indenização dos povos indígenas pela conduta do Estado, para que haja uma educação do judiciário, uma educação da sociedade. Que seja por repetitiva responsabilização, obrigando o Estado a demarcar os territórios, reflorestar áreas indígenas, criar escolas nos territórios, dar acesso efetivo à saúde, indenizar comunidades…

Então é preciso também sacramentar no judiciário a judicialização da Justiça de Transição. Que os juízes então passem a ter que se debruçar sobre questões de reparação e indenização dos povos indígenas pela conduta do Estado, para que haja uma educação do judiciário, uma educação da sociedade. Que seja por repetitiva responsabilização, obrigando o Estado a demarcar os territórios, reflorestar áreas indígenas, criar escolas nos territórios, dar acesso efetivo à saúde, indenizar comunidades… Quando isso estiver acontecendo no Brasil, em vários tribunais, nós vamos ter um processo pedagógico importante nesse país. 

As terras indígenas têm que estar dentro do mapa do Brasil, que mostre onde estão os territórios, de modo que as pessoas enxerguem isso como normal e daqui a algumas gerações nós vamos ter um ganho.

Nota de Pesar

A InfoAmazonia vem expressar nossos mais sinceros sentimentos pela perda do nosso querido companheiro, Marcelo Zelic. Sua incansável dedicação na luta pelos direitos dos povos indígenas e na preservação da memória histórica do Brasil sempre foi inspiradora e admirável.
Neste último ano, no âmbito do projeto Memória Interétnica, tivemos a honra e o prazer de compartilhar de maneira intensa sua vivacidade e e esperança no futuro. Acreditamos que seu legado deve seguir motivando as gerações futuras na busca por um mundo mais justo e igualitário.

À sua família e a todos os seus amigos e amigas, nosso abraço solidário.



Esta reportagem faz parte da série ‘Memória Interétnica’, com conteúdos que retomam casos de violações contra indígenas documentados por Centro de Referência Virtual Indígena e Cartografia de Ataques contra Indígenas, conectando-os aos temas da atualidade. O projeto é uma realização do Instituto de Políticas Relacionais em parceria com o Armazém Memória e tem apoio da Embaixada Real da Noruega em Brasília.

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