Diretor do Departamento de Línguas e Memória do Ministério dos Povos Indígenas (MPI), Eliel Benites, afirma que órgão planeja implementar comissão indígena com pesquisa de violações sofridas por cada etnia durante a ditadura.
Uma das principais recomendações da Comissão Nacional da Verdade (CNV) para a temática indígena deve finalmente ser implementada pelo governo federal: a criação de uma comissão exclusiva para investigar graves violações de direitos humanos dos povos indígenas. É o que afirma Eliel Benites, diretor do Departamento de Línguas e Memória do Ministério dos Povos Indígenas (MPI), em entrevista à InfoAmazônia.
Desde a finalização dos trabalhos da CNV, em 2014, a continuidade das investigações é aguardada por lideranças indígenas, indigenistas e especialistas em justiça de transição. Entretanto, ela ainda não havia avançado – assim como todas as outras recomendações do relatório que levantou violações ocorridas entre 1946 e 1988, apenas para parte dos povos.
“Nesse momento nós estamos no processo da recomposição dessa política pública e na retomada dos programas e atividades que dão continuidade àquilo que o relatório considera”, conta Benites, que é do povo Guarani Kaiowá (MS) e avalia ter havido um desmonte das políticas públicas de memória, verdade, justiça e reparação nos governos dos presidentes Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (PL).
Outra avaliação de Benites é que a continuidade das investigações deve ser feita povo a povo, de modo a escutar cada uma das etnias que sofreram violações no período. “Estamos numa estratégia de fazer uma comissão nacional da verdade por povos. O trabalho anterior, feito pela CNV é fundamental, mas percebemos a necessidade de aprofundamento e se configura, a partir dos relatórios, dos apontamentos das lideranças e das pessoas violadas, a necessidade de fazer esse levantamento por povos”.
A instalação da Comissão no MPI já havia sido recomendada pelo Ministério Público Federal (MPF) em uma nota técnica elaborada por ocasião de uma audiência pública realizada pelo órgão em dezembro de 2022, reunindo diferentes povos indígenas. Na última semana de março, a criação da comissão indígena também foi dada como certa por Nilmário Miranda, assessor do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDCH), em um dos eventos da “Semana do Nunca Mais – Memória Restaurada, Democracia Viva” na Câmara dos Deputados.
Reparações coletivas
Para especialistas, como o antropólogo Rafael Pacheco, a medida é motivo de comemoração, mas tarda a ser implementada. “O estado em si não assumiu o cumprimento das recomendações da CNV como uma política. O que está acontecendo são ações mais ou menos isoladas, que tem articulado o MPF e setores da sociedade civil”, avalia o pesquisador, que acompanha o assunto desde 2014. “Dos governos anteriores, na verdade houve retrocessos importantes, como o desmonte da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos [e] o desmonte com militarização da Comissão de Anistia pelo governo Bolsonaro. As perspectivas estavam zeradas”, complementa.
Eneá de Stutz e Almeida, que é presidenta da Comissão de Anistia – atualmente sob responsabilidade do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) –, avalia que no novo governo há maiores chances de que as graves violações de direitos humanos dos indígenas sejam devidamente reconhecidas e reparadas. Uma das provas desse compromisso seria a recente indicação da primeira comissionada indígena ao órgão, a advogada e estudiosa do tema Maíra Pankararu.
Outro avanço destacado por Eneá é uma alteração no regimento da Comissão, que, no último dia 23 de março, abriu caminho para que possam acontecer requerimentos coletivos de anistia: “Uma das hipóteses que vislumbro é justamente dos povos indígenas requererem a declaração de anistia política coletiva, para aquele determinado povo. Até hoje a única possibilidade era de requerimento individual, o que não é muito compatível com a maneira de ser indígena, que tem que ser respeitada e valorizada. Com essa alteração, eu acredito que será possível realmente implementarmos a reparação integral, como por exemplo, a recomendação para a Funai de demarcação de determinado território indígena”.
Para Rafael Pacheco, incluir uma perspectiva coletiva nos processos de reparação é fundamental, lembrando que o primeiro caso de anistia política a um povo indígena ocorreu há dez anos, quando 14 pessoas do povo Aikewara foram anistiadas: “Foi um estopim para começar a pensar na inclusão da perspectiva coletiva nas graves violações aos direitos humanos”.
Na leitura de Pacheco, entretanto, ainda falta readequar as instituições e mecanismos de justiça de transição para que recepcionem conceitualmente a perspectiva dos povos indígenas. “Há um problema de reconhecimento muito grande. Reconhecer que os indígenas foram vítimas da ditadura, reconhecer que foram perseguidos politicamente, reconhecer que as violações contra eles eram motivadas pelo interesse nas terras e pelo paradigma integracionista. Falta compreender como os povos indígenas foram afetados do seu ponto de vista específico”.
Em nota, o MDHC afirma que conta atualmente com uma coordenação responsável por acompanhar a implementação transversal das recomendações da CNV, em especial as relativas aos indígenas, e que estão em debate perspectivas de ampliação da agenda de memória, verdade e justiça, para abranger questões raciais, de gênero, camponesas e indígenas.
Recomendações em atraso
Quase dez anos depois da publicação do relatório da CNV, não é apenas a criação de uma comissão exclusiva para os indígenas que aguarda efetivação. A primeira das recomendações, um pedido formal de desculpas do Estado pelas graves violações aos direitos humanos dos indígenas, sequer saiu do papel.
A regularização e desintrusão das terras indígenas como forma de reparação coletiva pelas violações de direitos, além da recuperação ambiental dos territórios esbulhados e degradados, também fazem parte da lista de medidas –que incluem ainda a criação de fundos de fomento à pesquisa e difusão educativa das violações aos indígenas.
“Várias das recomendações são conexas, tem associação com uma série de políticas públicas, o que significa transversalizar a questão de ‘memória, verdade e justiça’ de maneira estrutural”, avalia Rafael Pacheco, para quem um dos objetivos centrais das medidas é “fazer com que isso esteja na memória das pessoas, na memória oficial, e com que seja assumida como narrativa”.
Para os especialistas, até o momento os principais avanços foram protagonizados pela sociedade civil. É o caso do Armazém Memória, projeto que possui quase 2 milhões de páginas de acervo histórico online, e que firmou uma parceria com o MPI recentemente.
A justiça de transição é hoje uma das prerrogativas do departamento de Línguas e Memória do MPI. Entre as suas atribuições está a promoção de ações pelo direito à memória e à verdade, e da reparação e não repetição de violações cometidas contra os povos indígenas. Na avaliação de Marcelo Zelic, coordenador do Armazém Memória, esse é o “momento em que as recomendações da CNV podem sair do esquecimento e serem desenvolvidas na sociedade”.
Zelic lembra uma frase do discurso de posse da ministra Sônia Guajajara, em janeiro. “Não dá pra acontecer o ‘nunca mais um Brasil sem nós’ se for negado o direito à memória e verdade. Não haverá o ‘nunca mais um Brasil sem nós’ sem o direito à reparação”.
Esta reportagem faz parte da série ‘Memória Interétnica’, com conteúdos que retomam casos de violações contra indígenas documentados por Centro de Referência Virtual Indígena e Cartografia de Ataques contra Indígenas, conectando-os aos temas da atualidade. O projeto é uma realização do Instituto de Políticas Relacionais em parceria com o Armazém Memória e tem apoio da Embaixada Real da Noruega em Brasília.