Em conversa com a InfoAmazonia, Maial Kaiapó, Samela Sateré-Mawé, Júnior Hekurari Yanomami e Alessandra Korap Munduruku falaram sobre o momento histórico da criação do Ministério dos Povos Indígenas e a sensação de alívio após desmonte das políticas ambientais.
Pouco mais de um mês após o fim do governo de Jair Bolsonaro, quatro lideranças indígenas de diferentes partes da Amazônia brasileira relatam um sentimento em comum: alívio. Do Pará, Maial Kaiapó e Alessandra Korap Munduruku. De Roraima, Júnior Hekurari Yanomami e, do Amazonas, Samela Sateré-Mawé. Os quatro falaram à Infoamazonia sobre como foram os últimos quatro anos em territórios indígenas: Territórios da União reconhecidos e delimitados pelo poder público federal para a manutenção do modo de vida e da cultura indígenas em todo o país. e cidades amazônicas, avaliaram a mudança de governo e quais são as expectativas para o futuro.
Além do alívio, houve outro consenso entre eles: o de que se vive um momento inédito no Brasil, tanto pela criação do Ministério dos Povos Indígenas, quanto pela nomeação de indígenas para cargos-chave no Estado: as presidências da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), as mais importantes instâncias para assistência, proteção e promoção dos direitos indígenas.
“O que está acontecendo hoje é uma construção que vem da Constituição de 1988, de lideranças indígenas que já se foram e de tantas outras lideranças que ainda estão presentes com a gente”, disse Maial Kaiapó, 35 anos, um dos nomes da juventude indígena no Brasil e filha de uma das principais lideranças participantes da Assembleia Constituinte, Paulinho Paiakan.
Apenas o começo
Samela Sateré-Mawé, de 26 anos, jovem liderança do Amazonas, acredita que o momento atual é apenas o começo: “em 34 anos de democracia, a gente nunca participou desses espaços de debate dentro do governo e agora temos essa oportunidade. Sabemos que não vai ser fácil, vai ser uma construção larga”. A comunicadora e estudante de biologia cresceu em contexto urbano de Manaus (AM) junto ao movimento da Associação das Mulheres Indígenas Sateré-Mawé (Amism), pioneiro no protagonismo feminino indígena na região.
Antes da pandemia de Covid-19, as mulheres da Amism se mantinham com a venda de artesanatos, mas logo precisaram se readaptar. Elas começaram, então, a confeccionar máscaras de tecido e vender pelas redes sociais. Em paralelo, uma enxurrada de desinformação sobre o coronavírus ganhou força e as fake news chegaram aos territórios indígenas antes das vacinas. Foi quando Samela se tornou uma importante porta-voz.
“Eu comecei a comunicar nas redes sociais a produção de máscaras que fizemos durante a pandemia e ganhei visibilidade. Depois, eu comecei a descomplicar notícias junto com jovens de todo o Brasil através da plataforma Reload. Eu, como representante do Norte e da Amazônia, descomplicava notícias relacionadas a povos indígenas e a Amazônia”, contou.
Imersa em notícias e checagens, ela diz que foram quatro anos difíceis: “foi um período de resistência. Foi o período em que a gente mais teve que se levantar enquanto povos indígenas, enquanto juventude indígena para combater todo o mal que estava acontecendo com os nossos povos”, afirmou.
‘Queremos ocupar o Estado‘
“Dos 513 deputados, só duas são mulheres indígenas”, descreveu Samela, que, quando estava em conversa com a InfoAmazonia, havia acabado de acompanhar em Brasília a posse de Célia Xacriabá (PSOL-MG) e Sônia Guajajara (PSOL-SP), ambas eleitas em 2022 após uma campanha sem precedentes que lançou 30 candidaturas em 20 estados a partir de organizações indígenas de base da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
Uma das candidatas era Maial, que pretendia ser em Brasília a primeira deputada federal do povo Kaiapó. Não foi eleita, mas logo percebeu que o movimento de se lançar às eleições “acendeu uma luz, despertando a vontade entre indígenas de participar do processo político“. Para ela, o resultado não poderia ser mais urgente: “a terra Kaiapó fica na região do sul do Pará, que é conhecida como arco do desmatamento, onde existem muitos conflitos e também violações de direitos humanos, territoriais e ambientais”, disse. “Nos últimos quatro anos, tudo isso piorou”.
Até 2019, Maial atuou na Saúde Indígena por meio do Controle Social, que é uma instância formal de participação indígena nas ações de planejamento, implementação, avaliação e fiscalização das ações de atenção básica em saúde do Sistema Único de Saúde (SUS). Com o governo Bolsonaro, ela foi demitida. “A gente estava lutando, cobrando que a Saúde Indígena tinha que ser de um jeito e naquela época a gente já falava do povo Yanomami, do risco que eles corriam. Isso tudo foi ignorado”, recordou.
Após a demissão, passou a trabalhar com Joênia Wapichana, primeira deputada federal indígena do Brasil e agora presidente da Funai. “Depois, saí para fazer uma consultoria diretamente ligada ao povo Kaiapó, às organizações kaiapó, porque temos as nossas associações de base. E esse foi um momento muito importante que eu pude colocar todo esse meu conhecimento para ajudar o meu povo”, disse.
“Com essas mudanças para 2023, acho que estamos vivendo uma reconstrução. A gente pegou todo o cenário destruído e, agora, a gente tem que reconstruir. Dessa luta, eu acho que este momento principal é entender como estava antigamente e buscar melhorar, cuidar do que foi tão atingido nos últimos anos, fortalecer Funai, Sesai, Ibama”, avaliou Maial.
Samela também considera que, apesar dos avanços com a mudança de governo para os próximos quatro anos, é preciso muito para que os povos indígenas ocupem espaços antes impensados.
“Eu penso que não é porque temos algumas representações agora que a luta para. A luta continua. A gente não quer só um ministério, a gente quer, quem sabe um dia ter uma mulher presidente do país e mais representantes nossos no Congresso Nacional, nas assembleias legislativas e câmaras municipais. Queremos ocupar o Estado”, disse.
No epicentro da crise
Um relatório divulgado em setembro do ano passado pelo Mapbiomas: Iniciativa desenvolvida por uma rede multi-institucional envolvendo universidades, ONGs e empresas de tecnologia com o propósito de mapear anualmente a cobertura e uso da terra do Brasil e monitorar as mudanças do território., mostrou o avanço de 91% do garimpo ilegal na Amazônia nos últimos 10 anos, sendo os territórios indígenas Kaiapó (11.542 hectares), Munduruku (4.743 hectares) e Yanomami (1.556 hectares) os três mais afetados pela atividade ilegal na Amazônia.
No epicentro da crise provocada pelo aumento do garimpo ilegal combinada com a falência na assistência em saúde na Terra Yanomami, Júnior Hekurari Yanomami estava na região de Surucucus, onde nasceu, quando falou com a Infoamazonia. Aguardava pela chegada de mais profissionais da Força Nacional do SUS para atender os doentes.
“Durante os últimos quatro anos foram muitas mudanças, muitas mortes que a gente vivenciou. Perdemos crianças, mulheres e jovens. Muita malária, desnutrição e invasores. Essas são as digitais do governo Bolsonaro na TI Yanomami“, disse Júnior, que desde os 14 anos atua na área da saúde indígena. “Já fui agente de saúde, já fui assessor indígena. Em 2019, me tornei presidente do Conselho Distrital de Saúde Yanomami (Dsei-Y) e atualmente também presido a Urihi Associação Yanomami”.
Ele afirma que a crise de saúde que afeta os Yanomami piora ano a ano, com um especial agravamento recentemente. “Eu nasci e cresci no meu território e nunca vi uma situação igual a que estamos vivendo, principalmente a região de Surucucus e Auaris, onde está morrendo mais gente de malária, de desnutrição e de verme”.
Em abril de 2022, durante o Acampamento Terra Livre em Brasília, Júnior entregou para Lula, à época ainda candidato à presidência, o relatório “Yanomami Sob Ataque”, que trouxe números dessa tragédia. Agora, com o novo governo, ele diz que é preciso ser rápido para evitar mais mortes entre os Yanomami, que perderam ao menos 570 crianças pelas chamadas causas evitáveis durante o governo Bolsonaro.
“Estamos deixando a alimentação para as aldeias, e também trabalhando para tratar os Yanomami. Eles não precisam só de médicos. Nós precisamos também de remédios, de oxigênio, vacinas, tudo completo. Precisamos fazer todo o trabalho e, para isso, eu estou orientando. Não adianta só mandar médicos para Surucucus se não temos o material para eles trabalharem. Então, a gente precisa ter tudo planejado”, disse.
‘Onde o garimpo chega não tem peixe‘
Nascida na aldeia Praia do Índio, dentro do município de Itaituba – conhecido como como o principal polo de “lavagem” de ouro ilegal vindo da Amazônia – , Alessandra Korap Munduruku, de 38 anos, também está olhando para o futuro, mas sem deixar de levar em conta o passado.
“A cidade de Itaituba cresceu com o desenvolvimento dos garimpos, já nas décadas de 1960, 1970. Então, eu nasci nessa região e vi tudo crescer ao meu redor”, relembrou Alessandra, que estudou para ser professora de educação infantil. “Onde o garimpo chega não tem peixe, caça, as pessoas adoecem de várias doenças. Tuberculose, malária. Ficam sem força para caçar, plantar, fazer farinha”.
Nos últimos anos, ela se viu em uma rotina completamente diferente por ter decidido entender a situação não só do seu, como de outros povos da região. De semente, como ela mesma diz, virou árvore. “No começo, achava que eu tinha que brigar pela minha região, pela minha aldeia. Aí comecei a entender o cacique. Só que eu era um pouco tímida e a primeira oportunidade que me deram foi como professora de criança”, disse.
“Eu não conseguia ficar só na sala de aula. Eu queria muito mais do que aquilo, eu queria tirar as crianças da sala de aula. Eu me perguntava: ‘qual futuro eles querem?’ E entendi que o futuro das crianças é mais do que isso. É pelo território, é pelo rio. Então, eu comecei a andar, comecei a participar de reuniões”.
“No governo do PT, a gente sabe da luta contra Belo Monte, contra a usina que iriam construir no Tapajós, mas que nós não deixamos. E aí, chegou o Bolsonaro. Aquele discurso dele de não demarcação, de garimpo em terra indígena, de que indígena precisa se integrar à sociedade, de dizer que nós éramos bichos no zoológico, todas essas falas de ódio contra os povos indígenas”.
Segundo Alessandra, com o tempo de envolvimento nos debates e reivindicações, ela conseguiu ver que não era uma “luta pequena, era uma luta muito maior”. No fim de 2018, ela passou a ser acadêmica do curso de direito e entrou em uma encruzilhada: se afastou das aulas para participar de mais mobilizações e denunciar os reflexos dos atos do governo nos territórios indígenas.
“Naquela época, muitas pessoas falavam de corrupção. Mas para o nosso povo a preocupação era com o nosso território, com nossos corpos”, disse. “Isso só aumentou quando Bolsonaro tentou tirar a Funai do Ministério da Justiça e tirar as demarcações da pasta, enviando para a Agricultura ou Ministério da Mulher. O movimento indígena teve de ir pra cima e eu que queria estudar, mas não conseguia. Então, eu tive que sair um pouco da sala de aula, porque era ‘ou eu estudo direito ou eu vou pra luta com meu povo’. Então, eu saí da universidade e fui para a luta”, disse.
Ela relembra, ainda, da aliança inédita que surgiu na pandemia entre os três povos mais afetados pelo garimpo ilegal: kaiapó, munduruku e yanomami: “a nossa preocupação era: precisamos tirar esse governo. Não vamos aguentar mais quatro anos e não baixamos a cabeça. E não eram só os munduruku, yanomami e kaiapó. A gente via os pataxó, os guajajara”, explicou.
“Eram pessoas que não falavam a língua portuguesa, idosos, crianças, gestantes, que saíram de seus territórios para chegar a Brasília e pedir socorro, denunciar que estávamos sofrendo. Isso me emociona. Todos estávamos sendo atacados e sentindo”.
Para Alessandra, o principal, agora, é garantir que o novo governo dê a assistência devida aos mais de 300 povos que formam a população indígena do Brasil hoje.
“Sei que hoje não é só a desnutrição. Há a contaminação de mercúrio, que mata os rios, os peixes. As invasões são muito grandes e precisamos urgentemente tirar os garimpeiros dessa atividade, além de ter uma estratégia para manter os invasores fora, senão eles vão trabalhar contra para daqui a quatro anos voltarem de novo”.
Reportagem da InfoAmazonia para o projeto PlenaMata.