Apesar do grande volume do metal retirado do município paraense, o ouro não se converte em imposto, nem reflete na estrutura de vida dos seus moradores
O dono de um dos hotéis mais novos de Jacareacanga, o Cruzeiro do Sul, trabalhou muito tempo como gerente do maior bar da região: o Vermelhão. No principal ponto de encontro dos garimpeiros, ele conta que chegava a receber R$ 10 mil de comissão por noite. O garimpo é a principal atividade econômica do município de 41 mil habitantes. Não à toa, nas suas ruas tudo remete à atividade: os pontos que negociam ouro, venda de equipamentos para o garimpo, jóias, os nomes dos comércios, as placas e até mesmo crianças nas ruas brincando com mini retroescavadeiras de plástico.
Apesar da importância da atividade garimpeira para Jacareacanga, o ouro não reflete a estrutura de seu enorme território de 53 mil km², área maior do que a Holanda. Com a maior população indígena do Pará, o município, que se emancipou de Itaituba há 30 anos, apresenta um dos piores índices socioeconômicos do país, pontuando 46,83 no IPS 2021 e ocupando a 762ª posição no ranking de todos os municípios Amazônicos.
Entre 2018 e 2021, Jacareacanga perdeu 4,59 pontos no IPS. Nesse meio tempo, em 2019, o município arrecadou o seu ápice histórico de CFEM por extração de ouro: R$ 980,8 milhões.
Para o cacique Juarez Saw Munduruku, que cresceu na Terra Indígena Munduruku em Jacareacanga, o ouro em Itaituba é “amaldiçoado”. Ele afirma nunca ter visto melhoria na vida dos Munduruku. “O ouro só criou problemas, doenças e divisão. Eles [indígenas no garimpo] só ficam com mixaria e são empregados dentro de seu próprio território, quem pega o ouro são os donos das máquinas”.
Neste ano, o movimento do comércio de ouro em Jacareacanga despencou com o aumento das operações da PF contra garimpo ilegal. O cearense Valdir,* dono de uma loja de equipamentos para garimpo, vive no município há 10 anos e relata queda crescente nas vendas no último ano. “[As operações] Tão acabando com a nossa região. O movimento tem caído muito. As lojas estão demitindo, ninguém consegue manter pessoal”, lista.
Atualmente, Valdir afirma ter dificuldades para manter o ponto comercial, que aluga por R$ 4 mil por mês. O difícil acesso por terra e barco ao município e a circulação do capital garimpeiro na região criam uma inflação própria que impacta principalmente nos valores de aluguel de imóveis.
O garimpeiro piauiense Armando* é dono do que chamou de uma “mansão”, um posto de gasolina fluvial, uma draga garimpeira e diversos imóveis em Jacareacanga. Ele afirma cobrar os aluguéis mais baratos da cidade, “R$ 900 por um quartinho com sala e cozinha”.
No entanto, após cinco anos trabalhando com garimpo, ele acredita não ter enriquecido e conta que atualmente tem cerca de R$ 1 milhão em dívidas para pagar. “Ninguém consegue enriquecer com garimpo. Tu perde um milhão de hora para a outra ”, explica.
Armando é casado e conta que a família insiste para ele largar a atividade. “Meu filho mais novo tem 12 anos e tem crises de pânico de madrugada porque tenta me ligar e, quando não atendo, imagina que estou sofrendo no mato. Mas só vou parar quando eu morrer porque eu trabalho pelos meus filhos, para eles poderem estudar na cidade, para eu poder levá-los à churrascaria no final de semana”, diz. O piauiense conta que tem 40 garimpeiros trabalhando em seus negócios. “Somando os familiares deles, são 200 pessoas dependendo direta ou diretamente de mim”.
Armando destaca uma série de desvantagens relacionadas à profissão, como uma pesada carga horária “dàs 4h até às 20h”. “A situação econômica é que joga as pessoas para o garimpo. Ninguém quer estar nessa vida. Você vê um garimpeiro com 30 anos de idade e parece que ele tem 60”, afirma.
Apesar das condições, ele não vê nenhuma oportunidade profissional que possa interessar mais os garimpeiros, uma vez que, se conseguissem empregos que pagassem um ou dois salários mínimos, dificilmente aceitariam. “O que você paga hoje com um salário mínimo?”, questiona.
Em Jacareacanga, o capital do ouro é ainda menos injetado nas contas públicas. Por ser cercado por terras protegidas (indígenas e reservas ambientais), praticamente a totalidade dos garimpos de Jacareacanga é ilegal e as lojas de compra de ouro do município sequer cobram o imposto do minério, a Compensação Financeira pela Exploração Mineral (CFEM).
É o que afirma Jhonatas Teixeira, que trabalha na loja de compra de ouro JJ Metais. O comércio não recolhe nenhum tipo de imposto, mas, assim como as demais compradoras de ouro de Jacarecanga, nunca foi alvo de nenhuma operação.
Jhonatas tem 34 anos, nasceu em Itaituba e se criou nos garimpos de seu pai e tios. Ele afirma que, desde pequeno, nunca teve dúvidas de que trabalharia com garimpo. “Em Itaituba, praticamente todos os meus conhecidos trabalham na área. Os rendimentos na cidade nem se comparam”.
Por esse motivo, Rolim insiste que a questão do garimpo ilegal tenha que ser encarado “de frente”, por meio da regularização. “As operações não têm reduzido o garimpo. Acreditamos que tem o momento de reprimir, mas primeiro tem que ensinar” .
Jacareacanga é um dos municípios com piores indicadores sociais no país (esquerda) – Foto: Julia Dolce/InfoAmazonia
O custo da predação
Para os ambientalistas e pesquisadores ouvidos pela reportagem, mesmo no melhor dos cenários, com uma atividade garimpeira regularizada e taxada e com o controle do empenho desse tributo, a conta em relação aos retornos para os municípios garimpados não fecha.
Alessandra Cardoso, assessora política do Inesc, explica que a arrecadação do imposto pelo garimpo representa mais um sintoma de dependência do que um montante relevante para os municípios. “As Prefeituras seguem sem ter recursos ou interesse em fazer política local de alternativa ao garimpo, até porque estão amarradas à atividade”.
Segundo Alessandra, uma extrema vulnerabilidade social e ambiental compõe a realidade de municípios garimpados. “O mesmo governo que sinaliza a legalização do garimpo em terras protegidas não investe para fortalecer e valorizar o que já está lá”, afirma, citando desmontes de programas sociais como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Bolsa Floresta, que tinham como público alvo a população rural de municípios como Itaituba.
O mesmo governo que sinaliza a legalização do garimpo em terras protegidas não investe para fortalecer e valorizar o que já está lá
Alessandra Cardoso, assessora política do Inesc
Segundo Juliana Siqueira-Gay, gerente de projetos do Instituto Escolhas, o caráter predatório da atividade garimpeira é fundamental para entender os prejuízos do setor. Em janeiro de 2021, a organização elaborou um estudo sobre o retorno do garimpo para a população dos municípios garimpados, “Qual o real impacto socioeconômico da exploração de ouro e diamantes na Amazônia”.
O relatório, feito por meio do cruzamento de índices de políticas públicas dos municípios que mais arrecadaram CFEM, constata que três anos é o período máximo que duram os impactos positivos da extração de ouro e diamantes sobre o indicador de saúde dos municípios da Amazônia Legal, cinco anos sobre o indicador de educação e cinco anos sobre o indicador de PIB per capita.
“Os minerais são finitos e, a partir do momento que uma jazida é exaurida, há uma descontinuidade da prestação de serviços, que já é rotativa, temporária e informal”, afirma. “Seus benefícios não são de longo prazo, não tem como gerar impactos positivos permanentes”, completa.
Em paralelo, segundo a pesquisadora, os danos ambientais representados pela atividade são irreversíveis. “A longo prazo, teremos que banir a extração do ouro. Enquanto isso não ocorre, no entendimento do Instituto Escolhas, seriam necessários requisitos ambientais muito exigentes para minimizar os impactos da sua extração”.
Caetano Scannavino, fundador do Projeto Saúde e Alegria (PSA), umas das maiores ONGs ambientais da região oeste do Pará, entende que o modelo principal trazido pelo garimpo é de subdesenvolvimento, e não progresso. “As pessoas acabam se contentando com a movimentação econômica através do ouro, mas não têm noção do quanto estão deixando de ganhar de fato e do que estão perdendo em cima dos custos ambientais”, analisa.
O Saúde e Alegria, que leva profissionais da saúde e saneamento básico para comunidades tradicionais afastadas, atua há 30 anos na região do Baixo Tapajós, e recentemente expandiu suas operações para as aldeias Munduruku em Itaituba. Segundo Scannavino, políticas de bioeconomia desenvolvidas em parceria da ONG com comunidades da bacia do Tapajós geram mais benefícios, inclusive financeiros, do que as atividades predatórias.
“Por que tanto foco do governo em querer mudar a legislação para liberar ouro e gado em áreas protegidas e por que não o ímpeto de trabalhar políticas para alavancar atividades econômicas de bioeconomia e processamento de produtos da sociobiodiversidade que a gente já sabe que dão muito mais dinheiro do que as atividades predatórias?”, questiona.
Scannavino acredita que as riquezas estão mudando de cor, deixando para trás o dourado e se tornando mais verdes. “Elas dependem da floresta em pé. O Brasil tem tudo para liderar esse paradigma, mas para isso precisamos mudar nossa visão de desenvolvimento”.
Leia também a primeira parte desta reportagem:
O ouro que empobrece as cidades garimpeiras da floresta Amazônica
*Nome modificado a pedido da fonte
Perfeito parabéns tudo que eu li é literalmente a mais pura verdade é realidade de muitos