Programa para viabilizar economicamente rodovia que liga Porto Velho a Manaus quer promover a destinação de 29 terras federais no sul do Amazonas; lista de possíveis beneficiados inclui fazendas com indícios de grilagem
O governo federal vai priorizar a regularização de terras públicas não destinadas da União ao longo da BR-319, em uma das regiões mais desmatadas da Amazônia, como parte do “Projeto de Governança Territorial da BR-319”. A proposta liderada pela Secretaria Especial do Programa de Parcerias e Investimentos (SPPI), do Ministério da Economia, tem como objetivo viabilizar economicamente a obra de pavimentação que pretende reativar a ligação entre Porto Velho (RO) e Manaus (AM). Dentre os beneficiados, nossa reportagem identificou indícios de grilagem em terras de, pelo menos, dois fazendeiros.
Segundo o projeto, áreas em 29 glebas federais do entorno da rodovia devem ser tituladas de forma definitiva para ocupantes, órgãos públicos e demais instituições interessadas. Apesar de nunca terem tido uma destinação definida pelo poder público, essas terras abrigam grandes áreas de florestas, assentamentos rurais não regularizados, antigas e novas fazendas, e muita invasão e desmatamento.
Mapa mostra terras públicas (em verde) no entorno da BR-319 (em amarelo) onde há sobreposição de imóveis privados (em roxo). Essas áreas devem ser tituladas de forma definitiva pelo PPI da BR-319.
Passe o mouse sobre as áreas para ver informações sobre cada uma delas.
A Amazônia tem 50 milhões de hectares de florestas em terras públicas não destinadas. Por nunca terem tido fim específico definido, essas áreas também ficam sem proteção especial, diferente das unidades de conservação, terras indígenas, projetos de assentamentos, ou até mesmo a ocupação privada regularizada, que deve seguir regras ambientais.
O InfoAmazonia identificou 440 imóveis privados em 17 das 29 glebas federais previstas no PPI da BR-319 (compilamos esses dados aqui). A maior parte dessas propriedades já estão certificadas pelo Incra —que é o reconhecimento de que a propriedade não está sobreposta a outra área já destinada— e devem ter prioridade para titulação definitiva.
Entre esses imóveis, estão fazendas com indícios de grilagem e áreas desmatadas para extração ilegal de madeira. Só em 2021, foram 19,7 mil hectares de florestas derrubados nessas áreas.
Fazendas certificadas apresentam indícios de grilagem e desmatamento ilegal
A lista de possíveis beneficiados com a regularização das terras federais inclui os donos da Fazenda Acará, que controla mais de 20 propriedades registradas pelo Incra no entorno da BR-319 e coleciona denúncias de crimes ambientais e multas. Os imóveis estão em nome de duas empresas, uma do ramo madeireiro, a Acará Bioflorestal, e outra que tem como atividade principal soja e gado, a Acará Agrohevea. O grupo tem pelo menos 11 fazendas certificadas na Gleba Acará.
Em abril deste ano, o Ministério Público do Amazonas instaurou procedimento para apurar se a Acará Agrohevea foi responsável pelo desmatamento de 65 hectares às margens da BR-319 em Humaitá.
As duas empresas do grupo foram autuadas 31 vezes pelo Ibama e multadas em R$ 79,9 milhões. As infrações ocorreram entre 2018 e 2022. Elas também respondem a nove processos do órgão por crimes ambientais, o que resultou no embargo de mais de 1,2 mil hectares, onde estão proibidas de qualquer tipo de exploração por parte da Acará Bioflorestal e da Acará Agrohevea.
Além disso, em 2020, técnicos do Incra requisitaram o cancelamento de três fazendas do grupo Acará por adulteração na matrícula de uma área com 1.190,5 hectares, já certificada pelo Incra. No despacho, onde pedem a anulação do registro da Fazenda Coracy, a área técnica diz: “essa matrícula não corresponde a área certificada e sim a um lote situado no perímetro urbano de Humaitá, na Transamazônica, com uma área de 450,00 m2”. Mesmo assim, a fazenda ainda consta como certificada no Sistema de Gestão Fundiária do Incra (Sigef).
As fazendas do grupo Acará pertencem aos empresários Eduardo Germano Dresch e Fernando Luiz Pasquali.
Ao InfoAmazonia, Eduardo Dresch disse que os desmatamentos ilegais nas suas fazendas são “provocados por invasores” e que ele vai se defender na Justiça contra as acusações de crime ambiental. O fazendeiro negou ter apresentado documentos adulterados ao Incra.
“Nós nunca tiramos um metro cúbico de madeira das nossas áreas. Essas terras são da nossa família há mais de 50 anos, todas registradas e certificadas, mas temos muitos problemas com invasores”, se defendeu Dresh, afirmando ainda que nenhuma das duas empresas donas das fazendas tem atividades na área. “Nós apenas preservamos”, disse.
Segundo o Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (IPAAM), o grupo registrou cinco pedidos de licenciamento ambiental em nome da Acará Bioflorestal nos últimos anos, mas nenhuma das licenças foi concedida.
O Ministério da Economia não deixou claro como o programa de destinação de terras vai resolver situações de conflitos fundiários e ocupações em áreas já requeridas para unidades de conservação, como as reservas extrativistas e florestas estaduais previstas nesta região.
Além da regularização fundiária, o programa prevê a concessão de florestas públicas para manejo, a construção de portais de fiscalização, implantação de um zoneamento ecológico e o fortalecimento das unidades de conservação.
Grilos e Laranjas
Parte das ilegalidades nessas terras federais foram apresentadas durante as reuniões do grupo de governança da BR-319 pelos pesquisadores Lucas Ferrante e Philip Fearnside, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). Juntos, eles assinam uma série de estudos que apontam a reativação da rodovia como um dos principais fatores para aumento do desmatamento da Amazônia, prevendo impactos que podem afetar o regime de chuvas que rega lavouras e abastece reservatórios no sudeste do país.
“Muitas dessas áreas ocupadas às margens da rodovia são frutos de grilagem e desmatamento ilegal. Se o Ministério da Economia der continuidade ao processo de regularização desta forma estará entregando terras federais para os mesmos que promovem o desmatamento na Amazônia”, afirma o biólogo Lucas Ferrante.
Em um dos estudos apresentados, os pesquisadores analisaram 14 áreas já certificadas pelo Incra no entorno da BR-319. Em todos os pontos foram constatadas ilegalidades como exploração ilícita de madeira, abertura de estradas, construções para facilitar a legalização das áreas, sinais de pesquisa mineral e a venda de áreas públicas.
Os pesquisadores também identificaram a atuação de uma espécie de laranja profissional da grilagem, que ocupa e desmata de forma sistemática várias áreas no entorno da rodovia para terceiros. As ilegalidades foram verificadas nas glebas federais Acará e Pixuna 6, as duas no sul do Amazonas, e estão em um estudo publicado pela revista científica Land Use Policy.
“O que verificamos é uma completa falta de governança das áreas no entorno da BR-319. Esses imóveis deveriam ser todos desapropriados, não legalizados como quer o Ministério da Economia”, afirma Ferrante.
Com 169 mil hectares, a gleba Acará abriga parte de uma área que é requerida para a Floresta Estadual de Tapauá e está entre as terras públicas mais desmatadas da Amazônia. Em 2021, foram derrubados 5,5 mil hectares de floresta nessa área, cinco vezes o registrado em 2020 (1,1 mil hectares).
O sul do Amazonas concentrou 83% de todo desmatamento no estado em 2021 (216 mil hectares de floresta nativa).
Em agosto do ano passado, o Ministério Público de Contas do Amazonas apresentou denúncia contra o governador Wilson Lima (União Brasil) por “reiterada omissão de combate ao desmatamento ilegal no Amazonas, na porção florestal amazônica do município de Tapauá”
Licenciamento da rodovia tem falhas graves
Obra do governo militar que buscava integração da Amazônia com o restante do Brasil e que acabou abandonada no início dos anos 1990 justamente por falta de viabilidade econômica, a BR-319 ganhou prioridade na área de infraestrutura do governo Jair Bolsonaro para a região norte.
Na semana passada o Ibama emitiu a Licença Prévia para as obras no trecho do meio da rodovia. A expectativa do governo federal é iniciar as obras ainda esse ano. Esse é o maior avanço em 15 anos de projetos em torno da BR-319.
A reconstrução do asfalto nos 885 quilômetros da rodovia tomados por atoleiros e floresta que avançaram sobre a pista nas últimas décadas esteve na pauta dos governos Fernando Henrique (1994-2001), Lula (2003-2010) e Dilma (2011-2016). Todos esbarraram na questão ambiental.
O Estudo de Impacto Ambiental (EIA) para liberação da obra está na 4ª versão —os anteriores foram reprovados— e tramita com velocidade nos órgãos do governo federal.
“É preocupante a situação na BR-319, os estudos ambientais desconsideraram espécies endêmicas, a fauna dos igarapés aterrados, e o Ministério da Economia tem tentado legalizar áreas que em sua maioria foram adquiridas ilegalmente. Precisamos deixar claro que estes estudos ambientais não têm a mínima condição de serem aprovados”, aponta o biólogo Lucas Ferrante.
O pesquisador diz ainda que o licenciamento da rodovia aprovado pelo Ibama também não cumpriu os protocolos internacionais para ouvir as comunidades indígenas impactadas e desconsidera os alertas sobre o aumento do desmatamento na Amazônia.
Denúncias contra o Coordenador do PPI da 319
O projeto de governança da BR-319 é coordenado por Alex Garcia de Almeida, atual secretário de Apoio ao Licenciamento Ambiental e à Desapropriação do Ministério da Economia. Servidor de carreira da Agência Nacional de Petróleo (ANP), antes de assumir o PPI da BR-319, Garcia foi coordenador-geral de licenciamento de portos, petróleo e gás do Ibama, nomeado pelo ex-ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente).
Garcia deixou o órgão ambiental após denúncias de que estaria favorecendo empresas do setor petroleiro. Uma das denúncias partiu da Associação dos Servidores do Ibama (Asibama) e o acusava de flexibilizar normas que limitam a emissão de poluentes de plataformas de petróleo.
Garcia tem sido cobrado pelas organizações ambientais e pesquisadores que compõem o grupo de governança do PPI da BR-319 por maior transparência no processo de destinação das áreas públicas. Procurado, Garcia não retornou os pedidos de entrevista da reportagem.
O Ministério da Economia disse que não vai comentar o assunto.
O Incra também não se manifestou sobre as ilegalidades identificadas pela área técnica. Nós também procuramos o Ministério da Agricultura, mas o órgão não quis se manifestar.