Extração de madeira permanece mesmo após governo criar Concessão de Direito Real de Uso Coletivo (CDRU) em território ocupado historicamente por comunidades tradicionais e povos indígenas; algumas licenças foram autorizadas pelo governo de Wilson Lima (União Brasil) dias antes do reconhecimento do território
Toda semana, uma balsa carregada com toras desce o rio Manicoré. O cheiro de madeira queimada exala das serrarias na boca do rio, onde parte dos jatobás, angelins e ipês rapidamente são fatiados. A outra parte da carga segue bruta, rio acima, mas não se sabe para onde vão. Entre janeiro e maio deste ano, essas embarcações transportaram mais de 1,2 mil hectares de floresta derrubada em uma região da Amazônia que deveria estar protegida e preservada. A área requerida desde 2008 para criação da Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) do Rio Manicoré, um território de 392 mil hectares historicamente ocupado por comunidades tradicionais e povos indígenas, tem sido invadida por grileiros e madeireiros que tentam influenciar o poder público para seguir desmatando e explorando a região.
O InfoAmazonia seguiu o rastro do desmatamento no rio Manicoré para entender como a madeira que sai dessa área —e que é ponto central de conflitos e ameaças— ganha legalidade com aval do órgão ambiental do estado.
O registro de propriedades particulares dentro da área disparou em 2020, mesmo estando requerida para criação da unidade de conservação desde 2008. Nesse período, o Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (IPAAM) emitiu uma série de licenças para exploração de madeira dentro da área e para serrarias no entorno.
Nossa reportagem encontrou Licenças de Operação (LO) emitidas para exploração de madeiras com base em registros de propriedades suspeitas de crime ambiental. Essas licenças permitiram a retirada de madeira da floresta em volumes bem superiores aos autorizados. As organizações das comunidades locais calculam que o processo de desmatamento atual esteja ocorrendo em uma área de mais de 3 mil hectares de floresta nativa dentro do território.
Em março deste ano, quando as 15 comunidades tradicionais e uma indígena receberam a Concessão de Direito Real de Uso Coletivo (CDRU) do Rio Manicoré, Waldo Pereira Viana, 68, extrativista que vive da roça, da caça e da pesca sustentável sentiu esperança. Viana fala com orgulho sobre a conquista do território: “Tudo que precisamos, essa terra nos dá. Temos uma paisagem maravilhosa e preservada. Não queremos esse desmatamento que tenta forçar a gente a deixar o nosso lugar” .
A CDRU foi entregue pelo governador Wilson Lima (União Brasil) aos moradores do Rio Manicoré, reconhecendo a área como de uso comum dos povos tradicionais, cerca de 4 mil pessoas que vivem basicamente do extrativismo. O gesto ocorreu durante a 12ª Reunião Anual da Força-Tarefa de Governadores para o Clima e Florestas (GCF Task Force). Evento que contou com a participação de mais de 300 autoridades, lideranças locais e representantes de 10 países.
Entre outros, o documento assegura o modo de vida sustentável dos recursos naturais na área demarcada. A comunidade aguarda ainda a criação da RDS do Rio Manicoré na mesma área para garantir a gestão e a presença dos órgãos de fiscalização ambiental no território. “A CDRU é um passo importante para a retirada dos invasores da área de uso tradicional e para concluir a criação da unidade de conservação, que vai garantir a atuação dos órgãos de proteção no território. Mas o que vemos é que o estado não tem agido nessa parte do processo para garantir a proteção desses povos”, diz a pesquisadora Jolêmia Chagas, da Rede Transdisciplinar da Amazônia (Reta).
O próprio governador Wilson Lima, que posou para foto diante de autoridades internacionais quando reconheceu o direito de uso das comunidades em março no GCF Task Force, declarou abertamente apoio aos fazendeiros, garimpeiros e madeireiros que atuam na região. Em evento organizado por ruralistas contrários a RDS na semana passada, o governador criticou as organizações ambientais e disse que vai lutar contra o pedido das comunidades tradicionais:
“Tem gente levantando a ideia de que se vai criar uma Reserva [no Rio Manicoré]. Esqueça quê não há a menor possibilidade disso acontecer. Eu vou lutar contra quem quiser fazer isso. Eu vou até às últimas consequências (sic)”, declarou o governador justificando que a área tem riquezas como madeira e ouro.
Cercados por grileiros
A lista de propriedades rurais com pedido de regularização no Rio Manicoré envolve donos de cartórios, fazendeiros com histórico de invasões na Amazônia e até políticos. Nossa reportagem identificou pelo menos nove imóveis cadastrados no Sistema de Gestão Fundiária (Sigef) do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) dentro do território do Rio Manicoré, oito deles foram registrados a partir de 2019.
Outros 106 Cadastros Ambientais Rurais (CARs), que são registros auto declaratórios e utilizados para viabilizar licenciamentos ambientais, também foram identificados na área. Apesar de não comprovarem titularidade da terra, os pedidos de CAR demonstram o interesse de pessoas de fora do Rio Manicoré no território.
Ameaças que tiram o sono da agricultora Vanda Cunha Marinho, que nos seus 63 anos de vida no Rio Manicoré nunca tinha sentido a pressão externa tão de perto. Vanda não sabe os detalhes da papelada que roda pelos cartórios de Manicoré, mas sente o perigo por perto: “Estão abrindo estradas aí pra trás e descendo madeira pelo rio. Não sei para onde eles vão, mas tenho medo que cheguem nos nossos castanhais e nas nossas roças”.
Em escrituras públicas emitidas por cartórios locais, encontramos registros recentes de propriedades dentro do território de uso coletivo do Rio Manicoré. O mesmo ocorreu com pedidos de licenciamento para extração de madeira e instalação de serrarias na região, algumas delas concedidas apenas quatro dias antes da entrega da CDRU à comunidade.
Ao menos quatro Licenças de Operação (LO) emitidas pelo IPAAM foram destinadas para pessoas ligadas a dois cartórios de Manicoré. Três para membros da família do tabelião Jesus Wildes Farias Murcia, do 2º Ofício de Manicoré, e uma para Sandro Iannuzzi, escrevente do 1º Ofício da cidade.
Nós estamos abandonados pelo poder público e já não damos conta de fiscalizar toda essa área sozinhos. Precisamos do apoio do estado. As invasões para a retirada de madeira, pesca e caça ilegal, a grilagem de terras, tudo está mais intenso de uns tempos pra cá.
Maria Cléia, presidenta da Central das Associações Agroextrativistas do Rio Manicoré (CAARIM)
As organizações das comunidades tradicionais contestam a validade dos registros de propriedades dentro do Rio Manicoré e as licenças emitidas pelo IPAAM. Na ausência do estado, são os próprios moradores que fiscalizam o território. Uma situação que tem gerado cada vez mais medo e insegurança.
“O Rio Manicoré só vai ter paz quando tivermos a reserva demarcada e a proteção do nosso território. Nós estamos abandonados pelo poder público e já não damos conta de fiscalizar toda essa área sozinhos. Precisamos do apoio do estado. As invasões para a retirada de madeira, pesca e caça ilegal, a grilagem de terras, tudo está mais intenso de uns tempos pra cá”, reclama Maria Cléia, presidenta da Central das Associações Agroextrativistas do Rio Manicoré (CAARIM).
Guerreiras do Manicoré
A história de vida de Maria Cléia Delgado Campina, 52 anos, se confunde com a luta dos povos do Rio Manicoré. Em 2006, a moradora que é nativa da comunidade conhecida como Mocambo, um lugar banhado por igarapés de águas esverdeadas, rodeado pela mata preservada, procurou ajuda para proteger a área do desmatamento que naquele ano já dava sinais das invasões. Em 2008, um pedido da comunidade para criação da reserva sustentável foi formalizado na Secretaria de Meio Ambiente do Estado.
Enquanto o processo para criação da RDS rola lentamente pelos escaninhos dos órgãos ambientais do governo do Amazonas, para quem vive da floresta preservada, a luta pela defesa do Rio Manicoré se tornou a única alternativa.
Alguns castanhais foram derrubados ali do outro lado do rio e as comunidades não têm mais esses castanhais. Começamos a sentir a pressão do desmatamento e das invasões. Para nós, a floresta em pé é vida.
Marilurdes Cunha da Silva, professora
“Alguns castanhais foram derrubados ali do outro lado do rio e as comunidades não têm mais esses castanhais. Começamos a sentir a pressão do desmatamento e das invasões. Para nós, a floresta em pé é vida”, conta a professora Marilurdes Cunha da Silva.
A luta diária também inclui o combate à desinformação disseminada por fazendeiros e políticos que tentam impedir a criação da reserva. Uma delas é que os nativos não poderiam mais derrubar árvores para abertura de roças, ou para construção das próprias casas. Outra, que não poderiam mais pescar e caçar no território.
As informações falsas “jogam um contra o outro nas comunidades”, explica Maria Cléia, que através da Central das Associações Agroextrativistas tem realizado encontros nas comunidades para explicar os direitos e os deveres dos ocupantes com a CDRU.
Um dos próximos passos da comunidade é elaborar um plano de gestão para o território e estabelecer os limites das atividades dentro da área demarcada. Um projeto que será elaborado com o conhecimento local, com a experiência dos próprios extrativistas, e com apoio de organizações ambientais que também defendem a preservação no rio Manicoré.
A área que abriga as 15 comunidades tradicionais que ocupam o Manicoré há mais de 100 anos é vizinha de cinco terras indígenas (TI): Rio Manicoré, Torá, Pirahã, Tenharim Marmelos e Sepoti. Essas terras também estão na rota do desmatamento. A TI Sepoti perdeu 2 mil hectares de área só em 2020, a quinta terra indígena mais desmatada na Amazônia naquele ano.
No caminho do desmatamento
As comunidades que habitam as margens do rio Manicoré, que é afluente do rio Madeira, estão em uma das regiões mais desmatadas no sul do Amazonas, na divisa com Rondônia e Mato Grosso. O movimento que avança em direção aos povos tradicionais e ameaça as roças, os castanhais, açaizais, a caça e a pesca, vem do distrito de Santo Antônio do Matupi, no km 180 da BR-230, a Transamazônica, e por onde o processo de derrubada da floresta para ampliação de áreas agrícolas tem se intensificado. É por essa região que se concentra o maior número de ramais (estradas secundárias) em direção a territórios protegidos em Manicoré.
O desmatamento em Santo Antônio do Matupi, onde praticamente toda área de floresta nativa foi derrubada, colocou o município de Manicoré entre os quatro mais desmatados no Amazonas em 2020. O distrito foi carro-chefe do prefeito Lúcio Flávio para aderir ao programa “Titula Brasil”, do governo federal, e que permite aos municípios signatários coletar documentos, realizar vistorias e fazerem o georreferenciamento de lotes para regularização fundiária. Em Matupi, 753 propriedades rurais abrigam um rebanho de 120 mil cabeças de gado.
Em abril deste ano, um grupo de fazendeiros e madeireiros, liderados pelos vereadores Charles Meireles (MDB) e Newton Cabral de Azevedo Neto (PSD), tentaram agredir e ameaçaram Silvia Elena, Secretária de Direitos Humanos do Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS) durante evento que tirou dúvidas sobre os efeitos da CDRU concedida aos povos tradicionais do Rio Manicoré.
Após o episódio, a líder voltou a receber ameaças: “Tenho sido ameaçada e vigiada”, contou ao InfoAmazonia. Silvia apresentou denúncia ao MPF, que instaurou procedimento para investigar episódios de ameaças em Manicoré.
Depois da madeira, gado e garimpo
Plínio Augusto Ben Carloto, conhecido empresário de Rondônia, um dos sócios fundadores do grupo Rondobrás, proprietário declarado de gado em áreas protegidas na Amazônia, pediu o registro, em 2020, de duas fazendas com mais de 4,4 mil hectares na área pretendida para a RDS do Rio Manicoré. As áreas estão sob a região que abriga três das cinco cachoeiras existentes no território. No Incra, as terras constam como certificadas, mas pendente da confirmação do registro em cartório.
Em janeiro deste ano, a nossa reportagem conversou com Carloto, que confirmou manter rebanho de gado dentro da área da Resex Jaci-Paraná, em Rondônia, onde a pecuária extensiva ilegal ocorre com a conviência dos órgãos do estado. “O dia que proibirem, eu tiro meu gado de lá e levo para minha outra fazenda fora”, nos disse na época. No início de 2021, o governador Marcos Rocha (PSL), aliado do presidente Jair Bolsonaro (PL), tentou extinguir 90% da área da Resex Jaci-Paraná para permitir a legalização de mais de 160 mil cabeças de gado.
Já o médico e fazendeiro Paulo Cezar Mates aparece como proprietário de um latifúndio de 69.772 hectares no interior do Rio Manicoré. Em 2019, a área foi alvo de uma auditoria do Incra e o Mates não apresentou documentos que comprovassem a posse da terra. O órgão cancelou o registro rural. Mesmo assim, identificamos que parte do desmatamento identificado este ano fica dentro dessa área.
O fazendeiro concorreu a vice-prefeito na eleição de 2020 em Apuí, município que concentra altas taxas de desmatamento no sul do Amazonas. Em 2020, ele já tinha declarado ao TSE 15 mil hectares de terras.
O conjunto de projetos no Rio Manicoré ainda inclui garimpo de ouro no leito do rio, e exploração de ferro no interior do território. Pelo menos 18 requerimentos de mineração ativos na Agência Nacional de Mineração (ANM) aguardam autorização para operar.
Em dezembro do ano passado, o presidente da Câmara de Manicoré, vereador Markson Barbosa (Republicanos), acompanhou uma comitiva em Brasília para defender o garimpo na região. O encontro reuniu representantes dos municípios vizinhos e dos garimpeiros com a bancada do Amazonas no Congresso.
O Ministério Público Federal (MPF) encaminhou denúncias de ameaças e violações no Rio Manicoré ao MP estadual, alertando que desde 2015 há recomendação para criação da RDS do Rio Manicoré para “garantir o uso tradicional do território pela população que ali vive, suas áreas sagradas, de moradia, de caça, pesca e coleta, que é um direito garantido pela legislação brasileira”.
Luiz Wild, dono de uma das serrarias que fica na foz do rio Manicoré, confirmou à nossa reportagem que segue com a extração de madeira na área requerida pelos povos tradicionais mesmo após a CDRU. Segundo ele, as licenças emitidas pelo IPAAM estão ativas e o volume de madeira retirado é fiscalizado.
A Secretaria de Meio Ambiente do estado Amazonas informou que aguarda manifestação das comunidades do Rio Manicoré para dar sequência ao processo de criação da unidade de conservação. O Órgão alega que o processo para criação da reserva foi arquivado em 2018 por falta de interesse da comunidade.
A Central das Associações Extrativistas do Rio Manicoré contesta os argumentos do órgão sobre o arquivamento e diz que a vontade manifesta das comunidades pela criação da RDS já foi demonstrada, e que a CDRU foi concedida em acordo com a Associação para a criação da reserva. O IPAAM não respondeu aos questionamentos da reportagem.
Não conseguimos contatos com Plínio Augusto Ben Carloto, Jesus Wildes e Paulo Cézar Mates.
Enviamos perguntas ao governador Wilson Lima, mas ele não respondeu até a publicação desta reportagem.
Inicialmente, noticiamos nessa reportagem que o escrevente de cartório Sandro Iannuzzi foi, em 2018, "denunciado pelo Ministério Público por falsificação de documento oficial". Após a publicação, a reportagem confirmou que o processo foi arquivado por falta de provas por parte do Ministério Público e o texto foi corrigido, excluindo a informação sobre a denúncia.