Ramais abertos em meio à floresta ampliam novas fronteiras agrícolas; estudo revela que nos últimos cinco anos 1,5 mil km de novas vias foram criadas levando desmatamento para áreas até então protegidas.
A abertura de novos ramais a partir de rodovias federais e estaduais no sul do Amazonas já é um dos principais motores para o avanço do desmatamento na Amazônia: é o que constatou o Observatório da BR-319 (OBR-319) em um estudo lançado no final de abril.
O levantamento feito pelo Observatório identificou 4.752 km dessas vias, também conhecidas como ramais, nos municípios de Canutama, Humaitá, Manicoré e Tapauá, localizados na região com os maiores índices de devastação no estado e por onde desmatadores e grileiros percorrem para retirada de madeira nobre e abertura de novas fronteiras agrícolas.
Um terço dos novos ramais identificados no estudo, 1.592,82 km, foram abertos nos últimos cinco anos, em um processo de expansão que se intensifica de forma cada vez mais rápida nessa região do Amazonas. Enquanto mais ao sul as estradas ilegais interligam áreas agrícolas, sobretudo para produção de soja e gado, mais ao norte, os ramais formam rotas para retirada seletiva de madeira nobre, ampliando a área do chamado arco do desmatamento em direção às áreas mais intactas da floresta.
Um dos principais fatores para essa expansão, segundo o estudo, está na promessa de reconstrução da BR-319, que liga Porto Velho (RO) a Manaus (AM). A rodovia inaugurada pelo governo militar em 1976, e que acabou abandonada por falta de viabilidade econômica e uso nos final dos anos 1980, é destacada pela gestão do presidente Jair Bolsonaro (PL) como obra prioritária para ligar o norte do país com as demais regiões produtivas.
A obra de repavimentação da BR-319 está em fase de licenciamento. No entanto, os contratos de manutenção da estrada que permitem a trafegabilidade no período de seca têm sido suficientes para o avanço considerável de novos ramais na direção norte da rodovia. Ao longo da estrada, que fica entre os rios Madeira e Purus, estão 69 terras indígenas e 41 unidades de conservação.
Para a pesquisadora Dioneia Ferreira, do Centro de Estudos em Sustentabilidade da Fundação Getúlio Vargas (FGV), o avanço da grilagem de terras e invasões já coloca em risco a subsistência dessas comunidades. “O desmatamento já chegou na beira do rio Madeira. É um avanço muito rápido e que acontece sem nenhum tipo de fiscalização”, afirma a pesquisadora.
Segundo Dioneia, o avanço do desmatamento com a abertura de novos ramais em meio a floresta é de cerca de 100 quilômetros a cada dois anos, principalmente sobre as áreas de floresta que não estão demarcadas nem como terras indígenas nem como unidades de conservação. “Antes esse avanço era mais lento, mas agora, com uma capacidade de tratores e máquinas já instaladas na região, esse avanço se torna cada vez mais rápido.”
Em 2020, foram abertos 560 km de ramais na região dos quatro municípios estudados, maior crescimentos dos últimos cinco anos (14%).
A pesquisadora explica que há uma faixa de 2 km de floresta pública não destinada nas margens da rodovia, de cada lado, que facilita essa expansão e “funciona como porta de entrada para o desmatamento também chegar nas áreas protegidas”.
Em 2021, mais da metade dos novos ramais (55%) foram abertos em florestas públicas não destinadas.
Os pesquisadores reforçam que alguns ramais também são abertos para facilitar fiscalizações e até escoamento de produção agroextrativista. “Mas, de toda forma, eles precisam de fiscalização para não crescerem de maneira desordenada”, acrescenta Paula Guarido, coordenadora da nota técnica do OBR319 .
O mapeamento do OBR-319 foi realizado a partir de imagens de satélite de alta resolução e com informações de banco de dados do governo.
Logística para expandir agronegócio
Tapauá, que até 2015 mal tinha registros de desmatamentos, aparece proporcionalmente como o município com o maior incremento de novos ramais entre 2016 e 2021, saltando de 2,8 km de estradas secundárias para 104 km. O município apresenta um dos casos mais graves de avanço do desmatamento, com uma forte tendência desses ramais na direção da BR-319, a quase 100 km da sede do município, nas margens do rio Purus.
Em 2020, lideranças Apurinã do município denunciaram a abertura do ramal em direção a 319 por fazendeiros com a utilização de máquinas da prefeitura. Além de colocar as terras indígenas Apurinã em risco, as novas frentes de desmatamento também atingem o Parque Nacional Nascentes do Lago Jari, também em Tapauá.
Já Humaitá, que registrou 656 km de novos ramais em cinco anos, tem um total de 1.485 km de vias em seu território e desponta como cidade polo para o avanço do desmatamento na região. O município conta com porto graneleiro, frigorífico e equipamentos de infraestrutura que servem os fazendeiros da região.
Em Canutama, que tem a maior extensão de ramais dos municípios analisados (1.687 km), os pesquisadores destacam a proximidade dessas vias no Parque Nacional Mapinguari e na Terra Indígena Jacareúba/Katawixi, onde há registros de indígenas em isolamento voluntário, mas que está sem proteção legal desde dezembro de 2021, quando venceu a restrição de uso do território ainda não renovada pela Fundação Nacional do Índio (Funai).
Segundo o estudo, 82% do desmatamento acumulado nesses quatro municípios ocorreu num raio de até 5 km desses ramais, enquanto 87% dos focos de calor registrados em 2021 se concentraram nessa faixa.
O desmatamento nos municípios sob influência da BR-319 vem batendo recordes consecutivos desde 2018, chegando ao seu maior valor em 2021. Segundo dados do OBR-319, 15% de todo o desmatamento acumulado na Amazônia ocorreu na zona de influência da rodovia. Tapauá foi o município que apresentou o maior aumento do desmatamento em comparação a 2020, com alta de 192%.
A nota técnica do OBR-319 sugere como encaminhamento para diminuição dos impactos: monitoramento permanente de ramais; urgente revisão e implementação do Zoneamento Ecológico Econômico (ZEE) do Purus e a elaboração do ZEE do Madeira; maior aporte de recursos financeiros e humanos para garantir a gestão e implementação das Áreas Protegidas, que estão na região de influência da BR-319. A nota técnica será protocolada em órgãos ambientais e de fiscalização estaduais e federais, e encaminhada ao Ministério Público Federal.
Fazendeiros do Matupi
Quase na fronteira com o Mato Grosso, o distrito de Santo Antônio do Matupi, no município de Manicoré, se destaca como a região com maior número de cabeças de gado no Amazonas. A intensa atividade agropecuária, às margens da BR-230, a Transamazônica, cresce na proporção em que novos ramais são abertos na floresta, colocando a localidade também entre as mais desmatadas da Amazônia.
Manicoré tem 1.422 km de ramais e é a região que mais avança sobre áreas protegidas segundo o estudo, com registros de ramais na APA dos Campos de Manicoré e nas terras indígenas Spoti e Tenharim Marmelos.
Dos quatro municípios analisados, Manicoré tem a maior rede de ramais mapeados em terras indígenas, com 295 km de vias dentro de áreas restritas. Outros 844 km estão em áreas de florestas públicas não destinadas, abrindo uma corrida entre os fazendeiros em busca da titulação nessas áreas.
Em 2021, o prefeito de Manicoré, Lúcio Flávio (PSD), assinou convênio com o governo federal para implantar o programa Titula Brasil, que apesar de estar voltado para assentamentos, tem atraído latifúndios em busca de regularização fundiária.
E o distrito ficou pequeno para tanto latifúndio que busca, agora, se expandir para o norte do município, nas áreas de uso dos povos tradicionais e comunidades ribeirinhas, o que tem agravado as disputas fundiárias na região.
Fontes ouvidas pela reportagem relataram intensa ação para extração de madeira na região: “Tem duas balsas no Madeira que todos os dias levam essa madeira. Já fizemos diversas denúncias, mas até agora nenhuma ação concreta foi realizada”, afirmou Jolemia Chagas, da Rede Transdisciplinar da Amazônia (Reta).
No início de abril, durante evento que apresentou a proposta para criação de uma unidade de conservação de uso sustentável no município, para proteger as comunidades extrativistas e as áreas de usos de povos indígenas da região, os vereadores Charles Meireles (MDB) e Newton Cabral (PDS) tentaram agredir fisicamente a secretária de Direitos Humanos do Conselho Nacional Das Populações Extrativistas.
Durante o evento, os parlamentares se manifestaram contrários a criação da área de proteção e aos critérios da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que define a consulta às comunidades locais para obras de infraestrutura na região.
“Estamos cercados pelos desmatadores, e isso tem se intensificado cada vez mais. O que percebemos é que esse movimento é um rebatimento da ocupação de Santo Antônio do Matupi que está avançando”.