Medida pode ampliar perdas florestais em pelo menos 100 mil km² no estado, segundo análise do Observatório do Código Florestal, e prejudicar agendas socioambientais e econômicas de todo o país.

Um projeto de lei que quer tirar o Mato Grosso dos limites da Amazônia Legal está gerando forte mobilização de pesquisadores, ambientalistas e ONGs. O PL 337, proposto em fevereiro deste ano pelo deputado Juarez Costa (MDB-MT), altera a legislação florestal, justificando que as regras são muito rígidas e restringem a produção no campo. 

O texto recebeu apoio de agropecuaristas e do governador Mauro Mendes, do União Brasil, partido criado a partir da fusão entre Partido Social Liberal (PSL) e Democratas (DEM). Mendes defende a exclusão, mas quer se mantenha a isenção de 75% no imposto de renda para empresas instaladas na Amazônia Legal, concedida pela Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam). Pleitos para que o estado seja retirado da Amazônia Legal vêm desde meados dos anos 2000, mas ganharam força agora. 

A proposta deve aumentar o desmatamento no estado, líder do agronegócio, em pelo menos 100 mil km², segundo estimativas do Observatório do Código Florestal, coletivo com 36 entidades civis que desde 2013 monitora a implantação da legislação florestal. Desde 1988, quando começou o monitoramento por satélites do Prodes/Inpe, o Mato Grosso é o segundo estado que mais desmatou a Amazônia. Na região, 80% da área de imóveis devem, por lei, ser mantidos com florestas – o percentual cai para 35% em propriedades entre a floresta e o Cerrado. 

Na tentativa de barrar a tramitação do PL, pesquisadores, organizações não governamentais, políticos e cidadãos colhem assinaturas para um manifesto. Para entender o jogo de pressões políticas dentro e fora do Parlamento e os efeitos do projeto na Amazônia, conversamos com a advogada Roberta Giudice, secretária-executiva do Observatório do Código Florestal. Abaixo, os principais trechos da entrevista.

InfoAmazonia – Quais serão os impactos de uma saída de Mato Grosso da Amazônia Legal? 
Roberta Giudice – Temos propostas políticas semelhantes de estados amazônicos desde meados dos anos 2000. A demanda de Mato Grosso para deixar a Amazônia Legal não tem outra motivação a não ser ampliar o desmatamento, perdoar derrubadas ilegais e reduzir a necessidade de restauração florestal. 

Aprovar a medida para o estado teria impactos terríveis, como a possibilidade de derrubar pelo menos outros 100 mil km² – uma área do tamanho do estado de Pernambuco. Isso ocorreria com a redução das Reservas Legais (RLs) na porção florestal do estado, de 80% para 20%, e nas áreas de Cerrado, de 35% para 20%. 

A medida pode aquecer restrições de mercados como dos Estados Unidos e da União Europeia, que se organizam para não mais comprar produtos ligados a qualquer tipo de desmatamento. Isso pode simplesmente bloquear exportações de commodities brasileiras.

Roberta Giudice, secretária executiva do Observatório do Código Florestal

Além disso, a medida pode aquecer restrições de mercados como dos Estados Unidos e da União Europeia, que se organizam para não mais comprar produtos ligados a qualquer tipo de desmatamento. Isso pode simplesmente bloquear exportações de commodities brasileiras, e não adianta argumentar que se tratam de barreiras comerciais. São decisões de nações alinhadas com cenários de mudanças do clima, de perdas de biodiversidade e de outras agendas que não podemos mais adiar.

Faz sentido reduzir as Reservas Legais quando análises mostram que apenas 23% dos 389 mil imóveis na Amazônia devem manter 80% com florestas?
A Reserva Legal de 80% foi fixada em 1996, após o desmatamento recorde de 29 mil km² na Amazônia. Até então, valiam 50%, conforme o Código Florestal de 1965. O levantamento mostra que, no Mato Grosso, apenas 469 imóveis deveriam reduzir suas Reservas Legais de 80% para 20%, e 2.134 de 50% para 20%, pois já foram beneficiados por dispositivos legais que diminuem a necessidade de manutenção dessas áreas protegidas. Diante de um país com mais de 200 milhões de habitantes, é um pequeno número de indivíduos que seriam beneficiados com mudanças na legislação florestal do Brasil, diante de um impacto ambiental terrível.

Reservas legais e Áreas de Preservação Permanente são exclusivas do Brasil e ferem direitos da propriedade privada, como afirma a Bancada Ruralista e seus apoiadores no Legislativo e Executivo?
O Brasil é um dos países ainda mais ricos em florestas e outros tipos de vegetação nativa. Ao mesmo tempo, outras nações vêm recuperando sua vegetação, como a União Europeia, que desmatou séculos atrás. Muitas têm instrumentos semelhantes às nossas Reservas Legais (RLs) e Áreas de Preservação Permanente (APPs). 

Nossa legislação florestal vem desde os anos 1930 e foi inspirada de início em legislações europeias, mas não dá para simplesmente comparar parâmetros para proteção e recuperação da vegetação nativa entre países com realidades históricas, sociais e culturais tão distintas. Além disso, são obrigações constitucionais no Brasil manter e restaurar os ambientes naturais e assegurar a função social dos imóveis rurais. O direito de propriedade é limitado por outros direitos coletivos. Assim como há regras para um dentista abrir e manter um consultório, há parâmetros para a produção no campo.

Paulo Pereira/Greenpeace
Mato Grosso é um dos estados que mais desmatou a Amazônia desde 1988.

Como o agro mato-grossense, especialmente o voltado à exportação, tolera tanta destruição?
Grandes a pequenos agricultores brasileiros têm assistido a reações contrárias crescentes à produção associada a desmatamento e outros impactos socioambientais. Mas alguns setores e parlamentares ainda preferem manter uma polarização entre produzir e conservar. É preciso identificar quais suas fontes de financiamento e interesses de curto prazo associados. Defender essa agenda também prejudica a imagem do país em nível internacional.

Iniciativas para reduzir impactos da agropecuária no Mato Grosso não são incompatíveis com pleitos para deixar a Amazônia Legal?
A iniciativa Produzir, Conservar, Incluir (PCI), por exemplo, foi criada justamente para atrair recursos e criar uma agenda de ações para cortar emissões de gases-estufa contendo o desmatamento, melhorando a eficiência da pecuária e recuperando a vegetação nativa. Mas o programa perde todo o sentido diante da proposta, apoiada pelo governo estadual, para que o Mato Grosso seja retirado da Amazônia Legal.

Uma análise mostra que, em 11 anos, 92% do desmate em fazendas de soja no Mato Grosso foram ilegais. A legislação florestal não traz meios para identificar os responsáveis pelos crimes?
Sim, traz, com o Cadastro Ambiental Rural (CAR). Algo que deveria ser feito era ampliar a atuação do Ministério Público Federal sobre esses dados, que permitem saber quem são os responsáveis pelos desmates ilícitos e autorizados. As informações poderiam ser mais usadas em monitoramento e fiscalização. Sem isso, o poder público segue sinalizando com impunidade e estimulando mais desmatamento. Não estou dizendo que a multa é o único instrumento para contenção de ilícitos. Termos de ajustes de conduta, educação ambiental e outros instrumentos são bem-vindos para determinados públicos.

O Novo Código Florestal (Lei 12.651) completa 10 anos de publicação em maio. Quais os principais avanços e lacunas de sua implantação?
A implantação poderia ter sido acelerada, especialmente por estados que ainda não validaram cadastros ambientais ou não regulamentaram seus PRAs (Programas de Regularização Ambiental), fundamentais para a restauração da vegetação nativa. Ao mesmo tempo, nunca tivemos uma quantidade tão grande de informações sobre uso e ocupação do solo no país. Questionamentos judiciais sobre a lei foram dirimidos pelo Supremo Tribunal Federal. Agora, precisamos implantá-lo como está, e sem permitir retrocessos. Precisamos reforçar que a lei pode e deve sair do papel, beneficiando setores ambiental e produtivo.

Não faltam incentivos econômicos para reforçar a aplicação da lei?
O BNDES, por exemplo, já tem uma linha de crédito para restauração ecológica e economia florestal. Mas creio que esses instrumentos serão mais cobrados, pelos próprios produtores, diante da necessidade de recuperação de parcelas de vegetação nativa e outras obrigações trazidas pela legislação florestal. Isso será fundamental, entre outros quesitos, para garantir que APPs desmatadas sejam recuperadas até 2032, como pede a lei.

Tramitam no Congresso Nacional quase 60 propostas alterando a legislação florestal de 2012. Pautas do agro e de outros setores ainda não foram contempladas?
Alguns setores ainda não internalizaram que é necessário e inevitável produzir e  conservar ambientes e serviços, que há limitações para o uso da terra. Também não atentam para um dia-a-dia cada vez mais pontuado por escassez de água, extremos de calor, quebras de safras e inundações, como as que marcaram este ano regiões do Sudeste. Tragédias como essas mostram que precisamos de mais APPs urbanas, e não de rifar seu uso, como aprovou o Congresso Nacional. Não podemos ceder a uma visão econômica ou eleitoreira imediatista, que não leva em conta a proteção do meio ambiente como garantidora de um futuro mais seguro para a sociedade como um todo.

A sensação é de que estamos diante de uma ‘liquidação’, em que é necessário aprovar todos os retrocessos possíveis antes do fim do ano.

Roberta Giudice, secretária-executiva do Observatório do Código Florestal

Quais as suas expectativas para a legislação florestal neste ano eleitoral de 2022?
Há uma série de propostas bem negativas tramitando, enquanto que textos positivos não avançam. Projetos na Câmara e no Senado podem atrasar a regulamentação e a execução de PRAs, mudam o marco temporal para recuperação de áreas desmatadas, ampliando anistias a crimes ambientais, entre outros. Tenho visto com bastante preocupação que propostas com retrocessos estão passando, sendo aprovadas em sequência.

A sensação é de que estamos diante de uma “liquidação”, em que é necessário aprovar todos os retrocessos possíveis antes do fim do ano. E estão fazendo isso através de processos menos democráticos, atropelando debates em comissões ou impondo regimes de urgência para apreciação de propostas, como fizeram com o PL que abre terras indígenas à mineração e outras atividades econômicas com a preservação cultural e ambiental desses territórios.


Reportagem do InfoAmazonia para o projeto PlenaMata.

1 comentário encontrado. Ver comentário
Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

1 comment

  1. Nossa que tristeza! Não vão parar enquanto tiver alguma cobertura florestal ? Vão chegar ao fim de tudo que é natural? Para que? Enriquecer alguns? Ou alguns grupos?
    Conservar a biodiversidade e dever de todos para benefícios de todos e não de poucos grupos. Vamos lutar contra o fim de nossas florestas e ecossistemas naturais para benefício nosso e de nossos
    Descendentes.
    Maria Tereza

Deixe um comentário