Em entrevista ao InfoAmazonia, diretor da Associação Nacional dos Servidores do Meio Ambiente relata que falta de transparência, mensagens contraditórias e ausência de diálogo com novo ministro marcam ano do Ibama.
Uma “má-gestão intencional” é como Wallace Lopes, fiscal do Ibama e diretor Executivo da Associação Nacional de Servidores da Carreira de Especialista de Meio Ambiente (Ascema), avalia uma série de problemas administrativos no Ibama causados pela descontinuidade de um contrato entre o órgão e uma empresa de tecnologia. A questão foi objeto de relatório publicado pela Controladoria-Geral da União (CGU) no último 3 de dezembro.
O documento concluiu que uma decisão de alteração do tempo de contrato tomada pelo chefe da diretoria de planejamento do Ibama (Diplan), causou a paralisação por cerca de oito meses (entre abril e dezembro de 2020) da prestação de serviços de um aplicativo multiplataforma. Sem ele, os fiscais em campo ficaram sem ferramenta funcional disponível, paralisando todo o processo de apuração e aplicação de multas ambientais no país.
Em entrevista ao InfoAmazonia, o diretor da Ascema destacou outra consequência apontada no relatório, que a associação considera igualmente grave: uma falha no sincronismo entre os dados das ações de fiscalização e a lista pública de autuados gerou um apagão dos dados abertos de multas e embargos ambientais que segue até hoje. Com isso, pessoas e empresas responsáveis por crimes ambientais continuaram agindo normalmente, sem restrições, porque não haviam informações públicas sobre esses crimes. “Todos os autos de infração e embargos que a gente vinha executando não estavam alimentando essa lista, então o resultado imediato e prático do nosso trabalho não existiu”, afirma.
Segundo Lopes, uma das principais consequências deste apagão é a manutenção do financiamento para infratores ambientais. “Os bancos que financiam com dinheiro público as atividades agropecuárias consultam essa lista. O gado produzido dentro dessa área foi normalmente vendido para frigoríficos, normalmente exportado para outros países sem que houvesse restrição prática”, explica.
O relatório da CGU destaca que, além de impedir a tramitação das multas, o problema comprometeu a transparência do órgão e concluiu que o diretor do Diplan na época, o tenente-coronel da Polícia Militar Luis Hiromi Nagao, “atuou de modo incompatível com a Política de Gestão de Riscos e Integridade (PGRI) do Ibama”.
Para o diretor da Ascema, o problema, aparentemente técnico e pontual, faz parte do projeto de governo do presidente Jair Bolsonaro (PL) para o meio ambiente. “Por diversos momentos a gente identificou que a falta de transparência era um dos métodos utilizados para tentar dificultar até mesmo ações de fiscalização”, avalia.
Na entrevista, Lopes comenta também a contínua falta de interlocução entre a representação dos servidores ambientais e o Ministério do Meio Ambiente (MMA), mesmo após a saída de Ricardo Salles, as mensagens cruzadas que o governo emite em relação à fiscalização do garimpo ilegal e a importância que a pauta ambiental terá nas eleições gerais de 2022.
Confira a seguir a entrevista completa.
InfoAmazonia – O relatório da CGU apontou que o processo de aplicação das multas ambientais ficou parado oito meses em 2020 por um motivo técnico que teria atrapalhado a própria fiscalização. Foi apenas um problema técnico?
Wallace Lopes – O problema está mais ligado à má-gestão, uma má-gestão feita de maneira intencional. A gente não acredita que seja só incompetência das pessoas que foram colocadas nos cargos do Ibama, ICMBio e no MMA. Talvez o que não tenha sido falado tanto em relação ao relatório do CGU, mas que para a gente é uma coisa bastante importante, é que a lista de áreas embargadas e de autos de infração lavrados pelo Ibama nos últimos anos não foi alimentada. É uma coisa que nós servidores estamos denunciando há muito tempo. Os embargos feitos ao longo do governo [Bolsonaro] não subiram para essa lista nos dados abertos, que era alimentada automaticamente pelos autos de infração lavrados. Por conta dessa série de atos, mudanças normativas, irregularidades e interrupção de contratos, o que aconteceu é que todos os autos de infração e embargos que a gente vinha executando não alimentavam mais essa lista.
Qual o resultado disso? Essas pessoas que tinham sido autuadas, que a gente gastou recurso para autuar, não estavam tendo restrição nenhuma, continuavam trabalhando normalmente mesmo depois do Ibama, com muito esforço e gasto, ter ido lá. Os bancos que financiam com dinheiro público atividades agropecuárias consultam essas listas. Então, o resultado imediato e prático do trabalho não existiu ao longo desse tempo todo. Essa é uma das coisas mais bizarras que aconteceram e que foram desnudadas de maneira formal pelo relatório da CGU.
Essa lista de áreas embargadas não serve só para as pessoas pegarem financiamento. O gado produzido dentro dessa área foi normalmente vendido para frigoríficos, normalmente exportado para outros países sem que houvesse restrição prática. Isso nem foi falado pela imprensa em relação ao relatório, mas é uma das coisas mais graves porque se trata de uma promessa do governo de que o Ibama não vai mais atrapalhar essas pessoas. É uma forma que encontraram de atrapalhar nosso trabalho, tirar o resultado, ao impedir que esse sistema parasse de ser alimentado. Então a gente ficou todo esse tempo no escuro e até o momento ainda não foi regularizada a situação justamente por conta de todo esse imbróglio causado, também apresentado pelo relatório, em relação ao contrato que tratava da gestão e administração desses sistemas corporativos. Estamos em um verdadeiro apagão em relação a esses dados.
Os dados que saíram ao longo desse tempo foram feitos manualmente por alguns servidores que têm alguns perfis de acesso para alimentar esse sistema, mas a grande maioria não subiu para o sistema.
Então os bancos e financeiras usam dessa mesma lista pública (os dados abertos) quando vão bloquear crédito para as pessoas autuadas?
Exatamente, e isso continuou sendo feito normalmente porque as pessoas não estavam na lista.
Vocês têm algum exemplo de algum proprietário ou fazenda que tenha conseguido crédito depois da autuação? Um exemplo mais emblemático?
Até temos mas eu como representante da Ascema não poderia falar porque trata de algo mais específico da atividade do órgão em si. Mas o que posso dizer é que como agente de fiscalização a gente vê isso em campo, vê muitas fazendas inclusive com placas mesmo, financiamento Banco da Amazônia, Banco do Brasil, instituições públicas financiando propriedades que estão de alguma forma cometendo irregularidades ambientais.
Mas independentemente dessa subnotificação, as multas e a fiscalização diminuíram? Pergunto porque o apagão em si é uma questão primordial, mas a não execução do orçamento dos órgãos ambientais também fez com que as multas diminuíssem?
Sim, diminuíram especialmente pela quantidade de servidores que, a cada mês, vem diminuindo. O Ibama é um órgão com 32 anos de existência, então ao longo dos anos têm muitas pessoas se aposentando. O último concurso para fiscais na Amazônia ocorreu em 2008, de lá para cá não teve mais, então o número de servidores vem caindo desde então. O máximo [de servidores] que a gente teve foi no ano de 2012 e coincidiu justamente com a época em que a gente teve o menor dado de desmatamento na história no PRODES. Então as multas vêm acompanhando o número de servidores, quanto menor o número de servidores menor o número de multas lavradas. Isso é uma explicação para a queda nos autos de infração também.
No último ano a gente teve um orçamento um pouco maior aprovado pelo Congresso, mas não adianta só ter um orçamento maior e não executar. É como se você tivesse o dinheiro na conta mas não gastasse ele. A má gestão do recurso, a péssima gestão dessas pessoas colocadas no órgão aponta exatamente isso, que não adianta o Congresso disponibilizar um orçamento maior para os órgãos ambientais se os gestores não conseguem executar esse orçamento. O dinheiro vai retornar e não vai ser gasto com o que se espera, que é investimento em tecnologia, em concurso público. Então, mesmo com o orçamento maior, não há uma execução a contento desse orçamento. O Observatório do Clima fez uma análise da execução do orçamento e apontou que ela é muito deficitária ainda.
Esse ano também tiraram o CPF e o nome completo dos autuados do Dados Abertos, né? Vocês avaliam essa decisão também como um apagão de dados?
Na verdade, uma característica marcante desse governo é a falta de transparência. Por diversos momentos a gente identificou que a falta de transparência era um dos métodos utilizados para tentar dificultar até mesmo ações de fiscalização. Essa falta de transparência nos atos internos, nas tomadas de decisões, na elaboração de normas, na nomeação e exoneração de servidores, nos processos administrativos disciplinares contra servidores, toda essa falta de transparência denuncia uma desconfiança da instituição com os servidores, o que é muito prejudicial, porque queremos atender o interesse público e não interesses diversos como a maioria desses gestores imagina. Criou-se uma animosidade interna que dificulta a execução do trabalho que a sociedade espera que o órgão desempenhe.
Você comentou sobre a falta de concursos. Temos agora o concurso aberto, mas com mais vagas para técnicos ambientais e menos para analistas.
O técnico ambiental tem praticamente metade do salário do analista. Então, uma forma que o governo enxergou de economizar foi fazer concurso para servidores de nível médio e não para nível superior. Isso também é ruim porque a atividade de fiscalização ambiental é desempenhada pelo analista ambiental, o técnico presta apoio. Mas se você tem um quadro de técnicos grandes e não de analistas que acompanhe você tem uma deficiência na execução do serviço de fiscalização.
A atual gestão não enxergou isso e sim apenas pelo lado econômico para se ter um concurso com mais vagas mas com um nível de exigência menor. Então a gente enxerga a questão do concurso hoje como uma forma de dar uma resposta para a imprensa e para a sociedade mas que, no fim das contas, não vai fazer uma diferença muito grande porque o número de vagas que se tem [necessidade de preencher] hoje é mais de 2.500 então ainda tem 2 mil que precisam abrir.
Você percebe que não se trata de um ato para resolver o problema, mas sim para tentar ludibriar a opinião pública e até mesmo o mercado internacional de que algo está sendo feito para resolver o problema. Na nossa visão o problema só será resolvido se for feito concurso para todas as vagas abertas nos órgãos ambientais. Só assim a gente teria uma mudança até nos dados de desmatamento. De fato, é uma responsabilidade do Ibama e do ICMBio e a gente vai, com certeza, se não continuarem com esses atos que retiram nossa autonomia ano após ano, conseguir entregar um desmatamento abaixo aí dos 5 mil quilômetros. Mas isso se for feito concurso para todas as vagas.
Há indicativo de que haverá algum tipo de critério ideológico nesse concurso pelo que vocês já sabem que será pedido?
Pelo conteúdo programático que saiu no edital foi colocado um item penal, relacionado ao Código Penal. Então talvez seja uma intenção do governo focar no tema do código penal porque aí a turma que está mais focada na carreira policial poderia ingressar no Ibama. A gente percebeu também um pouco de diferença na parte específica, mais voltada para a socioeconomia, que ficou faltando. Mas também é um pouco de especulação, não tem como ter certeza sobre isso.
Como avaliam a atuação do ministro Joaquim Leite nesses seis meses? É uma linha muito diferente da adotada por Salles?
Acho que aquela verborragia, a virulência toda que o Salles tinha ao se manifestar diminuiu bastante, praticamente não existe mais. Esse desgaste causado por um ministro o tempo todo atacando os servidores isso já diminuiu, é uma mudança positiva. O ministro Joaquim parece mais aberto ao diálogo muito embora não tenha ainda recebido os servidores no seu gabinete, não tenha convidado a representação dos servidores para verificar os anseios, isso não ocorreu.
A agenda continua a mesma, porque não é a agenda de um ministro e sim do governo Bolsonaro. A agenda dele ainda representa a do governo, com um estilo diferente, menos combativo, com um pouco mais de diplomacia, mas com as mesmas intenções. A gente espera ainda que os resultados sejam apresentados porque até o momento a gente não tem resultados positivos em relação às políticas ambientais nesse governo. Os projetos prejudiciais à área ambiental continuam tramitando no Congresso e não há interferência nenhuma do MMA para que esses projetos sejam modificados. Então, na prática, não mudou o programa que estava sendo implementado na gestão do Salles, mas pelo menos esse discurso contra a própria instituição e os servidores parece ter cessado.
Algumas mudanças importantes ocorreram com o ministro Leite, que foi a retirada dos Policiais Militares [de cargos de chefia no órgão]. Alguns PMs de São Paulo ainda permanecem no ICMBio e no MMA, mas no Ibama foram retirados, então houve essa mudança no escalão. Mas os PMs de SP ainda permanecem em vários cargos nos órgãos ambientais e a gente acredita que isso não é benéfico porque temos servidores com um histórico enorme de serviços prestados, uma experiência que poderia contribuir muito para essa gestão mas que não está sendo aproveitada. Ainda se preferem pessoas que têm um alinhamento mais político com o governo em detrimento daquelas que têm um conhecimento técnico mais apurado sobre o assunto.
Nos outros governos era comum que os ministros recebessem a representação dos servidores ambientais?
Sim, a ministra Izabella Teixeira inclusive era servidora do Ibama, e na época da Marina Silva, do Carlos Minc, sempre houve essa interlocução entre ministro do meio ambiente e servidores. Isso não existe e não existiu em momento nenhum no governo Bolsonaro. Era comum existir uma mesa setorial onde existia até uma regularidade nessas reuniões, eram feitas de maneira regular, sentavam ministros, representantes do ministério e dos servidores para discutir problemas relacionados à gestão, aos servidores, a como melhorar as condições de trabalho. Isso acabou. Na verdade, não só no MMA, mas em todo o governo essas mesas setoriais foram abolidas.
O fim do decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) da Amazônia deixou quais heranças na fiscalização ambiental?
A gente se manifestou várias vezes formalmente, mandando cartas para o presidente do Ibama, para o ministro, para o General Mourão no Conselho da Amazônia, dizendo que o desmatamento precisa ser conduzido pelo Ibama porque o Ibama tem uma expertise acumulada por anos que já mostrou resultado. A gente alertou que essa mudança do comando para as Forças Armadas (FA) era um erro enorme de percurso nessa gestão. Essas reiteradas recomendações foram ignoradas e a GLO permaneceu.
O resultado foi esse, o desmatamento só aumentou, foi gasto muito dinheiro, uma quantia enorme, mais de R$550 milhões. Dinheiro que dava para fazer concurso para quase todas as vagas abertas do Ibama e ICMBio, mas preferiu-se gastar com as FA e o resultado está aí, o desmatamento acima dos 10 mil km, apontando para 13 mil km. Agora mudou e o comando das operações não é mais das FA, mas do Ministério da Justiça, que também não tem qualquer conhecimento sobre os crimes ambientais e essa expertise de como combater toda essa problemática de ocupação, garimpos e desmatamento na Amazônia.
A gente continua na mesma situação, só mudou a gestão das FA para o Ministério da Justiça. Continuamos submetidos a uma coordenação que não entende de desmatamento e sem as condições necessárias para que, de maneira autônoma e livre, executemos o trabalho que sempre executamos com bons resultados.
A gente espera que depois desse concurso a autonomia institucional seja devolvida para o Ibama e ICMBio para que a gente possa sim entregar o resultado que a sociedade espera especialmente em relação à redução do desmatamento na Amazônia.
Recentemente o General Heleno autorizou sete projetos de pesquisa de ouro em áreas de fronteira. Vocês se sentem enxugando gelo?
Ao mesmo tempo que são divulgadas ações de fiscalização do Ibama e da Polícia Federal contra o garimpo ilegal, esse mesmo governo que manda os agentes destruírem balsas, destruir maquinário de garimpo, é o governo que está apresentando no Congresso uma proposta de liberação do garimpo em terras indígenas. É o mesmo governo que se manifesta contra a atuação dos servidores ambientais, o mesmo governo que autoriza pesquisa mineral em terras protegidas.
Essas mensagens contraditórias estimulam o cometimento de infração por essas pessoas porque elas têm uma expectativa de regulação futura dessas atividades. Então quando se fala de regularização fundiária e de garimpo em terras indígenas, elas pensam que o governo está dando apoio e vai mudar a lei, então acreditam que vão retornar para lá. A gente gasta um dinheiro público enorme em atividade de fiscalização, que é cara, precisa de veículo, diária para botar o pessoal em campo, e o governo fica dando mensagem para a sociedade de que isso é legal, de que garimpeiro é trabalhador, de que tem muita terra para pouco índio. Todas essas mensagens dadas pelo representante da nação e seus indicados políticos prejudicam demais o trabalho da fiscalização. Isso dificulta o resultado prático da fiscalização.
Você acredita que a pauta ambiental vai ser mais relevante para a decisão das eleições de 2022, tendo em vista o impacto que a política ambiental do Bolsonaro teve no desgaste da imagem do governo?
Com certeza a pauta ambiental vai determinar esse processo eleitoral de 2022. É inevitável que esse tema de mudanças climáticas e desmatamento permeie o processo eleitoral de 2022, não há dúvidas quanto a isso, então os candidatos precisam se aprofundar nesse assunto, ele vai permear os debates e entrevistas.
Mas a gente acredita que, em um país com uma megabiodiversidade com o Brasil, essa pauta não deveria ser determinante só por conta dos escândalos, mas em qualquer processo eleitoral porque nós somos uma potência de biodiversidade do mundo.
A gente acredita que a participação dos servidores é importante nesse processo eleitoral para apresentar soluções, nós temos muitas sugestões para dar para um possível futuro governo. A gente já faz isso de maneira regular, mas esperamos que nesse processo possamos trabalhar de maneira um pouco mais ativa, conversando com candidatos, apresentando propostas, soluções. A gente espera ser mais ouvido nesse processo eleitoral do que nos anteriores, porque, como você disse, essa questão ambiental é bastante importante e em voga no momento.
A política ambiental de Bolsonaro e seu impacto podem ser revertidos em um próximo governo?
Os prejuízos causados por todas essas mudanças de norma, desestruturação pelo qual o MMA passou, todas essas normas alteradas, internas mas também no Congresso, são mudanças que vão demorar anos para serem rediscutidas, reajustadas. Então a gente acredita que no aspecto normativo se demore ainda alguns anos para reverter tudo isso que foi perdido ao longo desse governo. A missão de um novo governo é grande para tentar minimizar os impactos sofridos ao longo desses anos. Acreditamos que se houver um governo um pouco mais sensível às questões ambientais, a gente possa construir isso no menor período possível. Os servidores estão dispostos, como sempre, a dar essa colaboração e se o novo governo for mais aberto a gente vai sim reduzir em alguns anos todo esse prejuízo. Se realizarem o concurso para as outras vagas também entregaremos isso de maneira mais rápida e efetiva.