O Ministério Público Federal quer penas mais duras para quadrilha que matava felinos no Acre. Ninguém foi preso. Na Amazônia, cerca de 350 animais por ano são mortos ou deslocados por ações humanas.

Populações do felino mais poderoso das Américas estão ameaçadas mesmo na maior floresta tropical do planeta. Na Amazônia, as onças-pintadas são mortas e afugentadas por caçadas, tráfico, desmatamento e queimadas. Pesquisadores apontam que ações humanas ampliam os prejuízos à conservação da espécie no país.

O Ministério Público Federal (MPF) pediu em novembro a revisão das condenações por caça de animal ameaçado de extinção e uso ilegal de armamento para um grupo de matadores de onças no Acre. Ninguém foi preso pela associação criminosa. O órgão também instaurou uma ação civil pedindo indenizações pelos danos à biodiversidade oriundos da matança de animais. Agora, está nas mãos do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) a definição de penas mais duras para o grupo.

Para o procurador Humberto de Aguiar Júnior, do MPF no Acre, a denúncia traz provas cabais que os condenados organizavam caçadas semanais, inclusive pagas por fazendeiros cujo gado foi alvo dos felinos. Em 11 episódios anotados apenas em três meses pela Polícia Federal, foram abatidas oito onças, 13 capivaras, 10 catetos e dois veados-mateiros. O bando atraía os felinos com esturradores (instrumentos que imitam o som da onça) e com carne e carcaças de animais (uma prática conhecida como ceva). Os abates eram apoiados por cachorros e armamento pesado. “Mas o juiz entendeu que apenas cinco caçadas foram confirmadas, mesmo com trocas de mensagens organizando os ataques e de fotos com animais sendo mortos”, disse. 

O dentista Temístocles Barbosa Freire, o médico Gílson Dória de Lucena Júnior, o agente penitenciário Gisleno José Oliveira de Araújo Sá, o agricultor Gilvan Souza Nunes e o vaqueiro Sebastião Júnior de Oliveira Costa foram condenados a pagar multas e prisão de seis meses a três anos, em regime aberto. O servidor do Judiciário Sinézio Adriano de Oliveira Júnior e o eletricista Manoel Alves de Oliveira foram absolvidos. As investigações indicam que Temístocles teria matado mais de mil onças, ao longo de três décadas.

Crimes ambientais geralmente têm penas baixas no Brasil. É difícil imaginar que criminosos com tal perfil mudem de comportamento se a legislação gera consequências tão brandas para suas vidas. As onças são parte da diversidade biológica brasileira, uma riqueza irrecuperável se for extinta.

Humberto de Aguiar Júnior, procurador no MPF/Acre

“Crimes ambientais geralmente têm penas baixas no Brasil. É difícil imaginar que criminosos com tal perfil mudem de comportamento se a legislação gera consequências tão brandas para suas vidas. As onças são parte da diversidade biológica brasileira, uma riqueza irrecuperável se for extinta”, destacou o procurador Aguiar Júnior. Não há prazo para o julgamento da questão pelo TRF1, que atende metade dos estados brasileiros e o Distrito Federal. 

Amazônia é ainda reduto de felinos

Uma análise publicada em junho na revista Conservation Science and Practice indica que, entre 2016 e 2019, 1.422 onças-pintadas foram mortas ou afugentadas dos locais onde viviam pela derrubada e queima de florestas na Amazônia Legal. A média anual é de 355 animais afetados. Líderes em desmate e queimadas para formar pastagens para gado e lavouras de soja, Pará e Mato Grosso são os estados onde os felinos foram mais prejudicados.

Para somar as onças afetadas, os cientistas usaram alertas para desmatamentos e queimadas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e estudos que apontam a média de animais em florestas das Américas do Sul e Central. 

1.422 onças-pintadas foram mortas ou afugentadas dos locais onde viviam pela derrubada e queima de florestas na Amazônia Legal entre 2016 e 2019.

A média anual é de 355 animais afetados.

Fonte: estudo publicado Conservation Science and Practice (junho/2021)

As derrubadas na Amazônia brasileira voltaram a subir desde 2015. De agosto de 2020 a julho deste ano, foram estimadas em 13,2 mil km2. Apenas de janeiro a outubro de 2021, já foram 9,7 mil km2 desmatados, equivalente a mais de seis vezes a área da cidade de São Paulo e 33% superiores ao verificado no período anterior, mostrou o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon).

As queimadas na Amazônia igualmente batem recordes no governo de Jair Bolsonaro. Já passaram de 71 mil focos de calor este ano. Conforme o MapBiomas, os estados do Mato Grosso, Pará e Tocantins foram os que mais queimaram florestas e outros tipos de vegetação nativa entre 1985 e 2020. 

“A situação também preocupa no Maranhão e em Rondônia, onde o deslocamento dos animais para regiões preservadas é prejudicado pela pouca floresta que sobrou fora de áreas protegidas. O Amazonas, mais conservado, pode estar servindo de bastião para felinos migrando de outras regiões”, destacou Jorge Fernando Saraiva, do departamento de Ecologia da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul e co-autor do estudo.

Mas dados recentes do Inpe apontam que o Amazonas se tornou o segundo estado que mais desmata a Amazônia, superando a posição histórica de Mato Grosso. Pesa nessa conta a implantação de um polo do agronegócio que fez disparar a grilagem de terras e as derrubadas no sul do Amazonas e em porções vizinhas de Rondônia e do Acre, como mostrou o InfoAmazonia e o PlenaMata. 

“Isso pode concentrar animais em certas áreas e aumentar a competição e os conflitos por alimentos e fêmeas, prejudicando a conservação da espécie”, avaliou o biólogo Emiliano Esterci Ramalho. Seus estudos na Reserva Mamirauá mostram que onças se abrigam no topo das árvores nas cheias e que, na seca, cobrem até 200 km2 para se alimentar e acasalar. 

Ampliar e manter áreas protegidas e corredores ecológicos em terras públicas e privadas são medidas que podem formar ‘rotas de fuga’ para os felinos. Reduzir permissões para desmatamento, reforçar a fiscalização e dar um destino sustentável a terras devolutas na Amazônia são outras medidas para garantir o futuro das onças e outras espécies, ressaltou Saraiva, do departamento de Ecologia da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. 

De acordo com o balanço de especialistas publicado na Conservation Science and Practice, há cerca de 79 mil onças na Amazônia brasileira. As pressões sobre o felino são ainda maiores no país, onde a espécie já está vulnerável à extinção. O relatório da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional e das ONGs Traffic e União Internacional para Conservação da Natureza mostrou que a Amazônia é uma grande fonte e rota do tráfico de vida selvagem. Espécies como onças, tartarugas e peixes ornamentais foram os principais alvos de criminosos na região entre 2012 e 2019.

O documento conta pelo menos 30 apreensões de partes de onça-pintada (a maioria de peles, mas também presas e patas) na Amazônia brasileira em apenas cinco anos. Em 2016, o Ibama flagrou cabeças, caveiras, couros e garras de 19 onças na geladeira de um caçador em Curionópolis, no Pará. O felino também é morto no Suriname, Bolívia, Peru e outros países amazônicos, inclusive para abastecer mercados ilegais em países asiáticos.

A onça ajuda a manter a floresta, e a floresta preservada ajuda a onça a se recuperar desses impactos. Por isso, os maiores entraves à sua conservação são o desmatamento e fragmentação da Amazônia, associados ao enfraquecimento das leis e dos órgãos ambientais.

Emiliano Esterci Ramalho, biólogo e diretor no Instituto Mamirauá (AM)

Casos como esses se multiplicam apesar do comércio global de qualquer item de onças ser vetado pela Convenção sobre Comércio Internacional da Flora e Fauna Selvagens e em Perigo de Extinção, a Cites, e da caça estar proibida no Brasil desde os anos 1960. A informação é do biólogo carioca Emiliano Esterci Ramalho, que vive há quase duas décadas no Amazonas. Doutor em Ecologia e Conservação da Vida Silvestre pela Universidade da Flórida, ele reforça que os prejuízos dos persistentes abates somados à destruição da floresta ameaçam ainda mais o futuro do predador.

“A onça ajuda a manter a floresta, e a floresta preservada ajuda a onça a se recuperar desses impactos. Por isso, os maiores entraves à sua conservação são o desmatamento e a fragmentação da Amazônia, associados ao enfraquecimento das leis e órgãos ambientais”, descreveu.

O pesquisador atua na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (AM). Na área há cerca de mil onças, mais do que em toda a Mata Atlântica e Caatinga. “Tecnologias e conhecimento já estão disponíveis para que a Amazônia tenha um desenvolvimento realmente sustentável, menos dependente do desmatamento e do fogo. A ciência deu suas respostas para isso, mas o Brasil vive ‘preso no passado’ por falta de vontade política”, destacou o pesquisador. 


Reportagem do InfoAmazonia para o projeto PlenaMata.

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