Número de pedidos para exploração de ouro por cooperativas de garimpeiros cresceu 83% desde 2019. Em três anos, elas solicitaram mais área do que nas últimas três décadas. Modelo pode acobertar atividades ilegais.

Uma área do tamanho do estado do Rio de Janeiro (4,4 milhões de hectares) foi requerida desde 2019 por cooperativas para a exploração de ouro na Amazônia Legal. São pedidos feitos em um regime simplificado de mineração, chamado Permissão de Lavra Garimpeira (PLG), que representa riscos socioambientais e tem potencial para provocar distorções no mercado de extração de minério.

É uma nova corrida do ouro, protagonizada por cooperativas de garimpeiros e estimulada pelo presidente Jair Bolsonaro. De janeiro de 2019 a setembro de 2021, o número de pedidos deste tipo para exploração de ouro feitos por cooperativas na Amazônia Legal quase dobrou: aumentou 83%, passando de 1.100 desde 1990 até 2018 para 2.024 nos três últimos anos.

A alta no preço do ouro explica, em parte, esse interesse intensificado: a cotação do metal passou de R$ 197, no final de 2019, para R$ 354 em agosto de 2020. Desde então, praticamente não baixou do patamar dos R$ 300.

Em teoria, o aumento da participação de cooperativas no setor minerário brasileiro não seria motivo de preocupação. "Uma cooperativa de mineração é formada por garimpeiros e pequenos mineradores que se organizam para ter uma vida digna, melhorar os seus processos e fazer uma atividade dentro das normas ambientais", explica Alex Macedo, analista técnico e econômico da Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB).

Com a justificativa de garantir oportunidade de trabalho e renda aos garimpeiros, as leis que regulamentam o setor oferecem facilidades burocráticas às cooperativas.

Em 86% dos pedidos feitos desde 2019, as cooperativas se valeram de PLGs, tipo de requerimento simplificado, que desobriga a realização de pesquisa prévia e licenciamento ambiental completo. Também é um trâmite mais barato: a ANM cobra uma taxa de R$ 204,13 por PLG, contra R$ 1.012,73 de um pedido tradicional.

“A Constituição Federal protege a figura do garimpeiro, em especial o cooperado, evocando a imagem do garimpo artesanal. Mas hoje, a extração de ouro na Amazônia se vale de maquinário e tecnologia que são incompatíveis com essa ideia de rudimentaridade”, observa a procuradora Ana Carolina Haliuc, do Ministério Público Federal (MPF) do Amazonas, coordenadora da força-tarefa Amazônia.

A Constituição Federal protege a figura do garimpeiro, em especial o cooperado, evocando a imagem do garimpo artesanal. Mas hoje, a extração de ouro na Amazônia se vale de maquinário e tecnologia que são incompatíveis com essa ideia de rudimentaridade.

Ana Carolina Haliuc, procuradora do MPF-AM e coordenadora da força-tarefa Amazônia

A PLG é uma opção vedada às mineradoras, mas há cooperativas requerendo áreas sob este sistema quase tão extensas quanto às das grandes empresas que atuam no território brasileiro. Reportagem do InfoAmazonia, publicada com a Folha de S. Paulo em outubro, mostrou como a recém-criada Cooperativa dos Mineradores do Vale do Guaporé já concorre, em tamanho de área requerida, com gigantes multinacionais como a Vale, a Nexa Resources e a Anglo American.

"Isso pode gerar vantagem ilegal na disputa de áreas com mineradoras, porque as cooperativas não são submetidas às mesmas obrigações socioambientais das empresas tradicionais. Não precisam, por exemplo, apresentar estudos ambientais complexos, como o EIA-Rima", avalia o procurador da República Paulo de Tarso Moreira Oliveira, que atua no Pará. 

Além da Vale do Guaporé, que já ocupa o primeiro lugar no ranking de área requerida para ouro na modalidade PLG, chama a atenção a rápida ascensão da Cooperativa de Trabalho de Garimpeiros em Áreas Mineráveis Legais (Cooperstone). Criada em outubro do ano passado, a organização já é a sétima cooperativa com maior área requerida, com 245 mil hectares solicitados.

Mais de 60% da área para exploração de ouro contida em pedidos de PLGs feitos desde 2019 estão concentrados em 24 cooperativas fundadas nesse mesmo período, evidenciando esse movimento recente. 

Estratagema cria imensas áreas contíguas

Outra vantagem de ter uma cooperativa de mineração é o tamanho da área a ser requerida para exploração minerária. Enquanto pessoas físicas ou empresas individuais podem solicitar, no máximo, 50 hectares, cooperativas têm direito a pedir até 10 mil hectares por PLG na Amazônia Legal.

Porém, algumas entidades estão tentando explorar áreas muito maiores, requerendo diversas PLGs grudadas uma na outra. “É uma forma de burlar o limite", denuncia o procurador Oliveira.

“É um estado de coisas que a ANM patrocina que é nefasto. É uma corrida, uma especulação absurda, criando áreas enormes para fazer surgir riqueza, para justificar incremento patrimonial de pessoas que podem estar associadas a atividades ilícitas – crimes inclusive”, conclui Oliveira.

Procurada, a ANM revelou que estuda uma mudança na legislação para “atender às demandas técnicas, ambientais e sociais que se apresentam”. Uma das propostas em discussão é limitar a mil hectares a área máxima a ser requerida por PLG na Amazônia Legal. A íntegra das respostas pode ser lida aqui.

Dos 2,4 milhões de hectares requeridos pela Vale do Guaporé, quase a metade está distribuída em PLGs contíguas, formando, na prática, 25 blocos que superam, em muito, os 10 mil hectares permitidos pelas regras de mineração.

A mesma estratégia é utilizada pela Cooperativa Mista dos Garimpeiros de Peixoto de Azevedo (Coomipaz), que tem 15 blocos maiores que 10 mil hectares, e pela Cooperativa dos Garimpeiros da Amazônia (Coogam), com seis blocos de requerimentos acima do limite legal  — mesmo assim, a cooperativa obteve autorização da ANM para começar a explorar ouro em uma dessas áreas.

"Existe um modus operandi sendo realizado por essas cooperativas que requerem vários processos minerários sob o Regime de Lavra Garimpeira [...] em áreas contíguas para operar grandes empreendimentos com potencial danoso muito maior que o declarado nos processos administrativos", denuncia a Operação Amazônia Nativa (Opan) em uma nota técnica protocolada semana passada no MPF, detalhando a ação de cooperativas no Amazonas. 

O levantamento cita um parecer do próprio MPF sobre a existência de trechos contíguos requeridos à ANM por cooperativas. “Essas áreas fazem parte de um mesmo projeto de empreendimento e, portanto, deveriam integrar um único processo de licenciamento, o que propiciaria uma análise mais abrangente dos impactos causados pelas atividades da cooperativa na região”, diz o texto. Entre outras medidas, a nota técnica pede o ajuizamento de ações para barrar as práticas irregulares e responsabilizar os envolvidos. 

Atuação no rio Madeira é motivo de preocupação

O documento, assinado também pelo Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS) e pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), aborda também a situação no rio Madeira, Amazonas — antes mesmo do levante de garimpeiros contra a fiscalização

Além da exploração ilegal, a região também é alvo de interesse de cooperativas que buscam aval governamental para extrair ouro na região. Mas mesmo com autorização para minerar, há riscos.

Uma operação da Agência Nacional de Mineração (ANM), feita em 2018, no rio Madeira, constatou que as cooperativas não se responsabilizam pela correta destinação do mercúrio, metal líquido utilizado em garimpos para separar o ouro do cascalho. Descartada sem nenhum cuidado no curso d’água, a substância contamina peixes e humanos. O cérebro é o órgão mais afetado pela ação do metal líquido, que também atinge os rins e o fígado. A substância pode inclusive passar pela barreira placentária, comprometendo o desenvolvimento de bebês antes mesmo do nascimento.

A Coogam — uma das 10 cooperativas que concentram 90% dos pedidos de PLG para explorar ouro no Amazonas, segundo a OPAN — teve processos minerários suspensos no rio Madeira por irregularidades no licenciamento ambiental. A atuação da cooperativa acarretou em "risco à integridade do rio Madeira, bem como riscos à saúde humana, à biodiversidade e à manutenção do ecossistema amazônico", anotou a juíza federal Mara Elisa Andrade em decisão proferida em 2018. 

Brechas para criminalidade

Em setembro, o InfoAmazonia mostrou como garimpeiros cercaram de requerimentos a Terra Indígena Piripkura e também a bacia do rio Juruena, a segunda região do Mato Grosso com maior registro de povos isolados e de recente contato — no total, há 110 pedidos de PLGs para exploração de ouro por cooperativas na região, dos quais quase 70% foram feitos a partir de 2019.

Cooperativas de garimpeiros detêm, ao todo, 295 processos minerários sobrepostos a terras indígenas e unidades de conservação de proteção integral na Amazônia Legal, locais onde essa atividade está proibida.

“Desde o início da atual gestão, o governo federal vem deixando claro que pretende facilitar ao máximo a mineração na Amazônia. Esse projeto inclui estimular a mineração em terras indígenas, atividade hoje proibida”, afirma Oliveira, do MPF.

Apesar de ilegais, 16 desses pedidos tiveram prosseguimento autorizado pela ANM. Entre eles, está um requerimento em nome Cooperativa Estanífera de Rondônia na Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia — uma das mais desmatadas entre as terras habitadas por indígenas isolados no Brasil — e quatro na Terra Indígena Sawré Muybu (Pimental), no Pará, três deles protocolados pela Cooperativa de Extração Mineral do Vale do Tapajós.

A TI Sawré Muybu também registra uma lavra garimpeira autorizada em nome da Coogam. Cacildo Jacoby, apontado no site da cooperativa como presidente do grupo, responde a um processo sigiloso na Justiça por garimpar em outra terra indígena no Mato Grosso. Apesar de ser acusado de tentar explorar territórios protegidos no Mato Grosso, Jacoby mora a mais de 2 mil quilômetros de Cuiabá, capital do estado. Sua casa fica em Gravataí, no Rio Grande do Sul, onde mantém uma oficina mecânica, uma imobiliária e uma empresa de materiais de construção.

A reportagem tentou contato com Jacoby nos endereços de suas empresas e por telefone. Após uma rápida conversa em que ele informou ser ex-presidente da Coogam, deixou de atender às chamadas. Em uma mensagem de SMS, voltou a negar que seja presidente da cooperativa, disse que só tem "gerência sobre o Pará" e que só responderia às questões pessoalmente, apesar de a reportagem ter oferecido a possibilidade de contato por e-mail ou telefone.

Há outras investigações que revelam como as cooperativas são terreno fértil para práticas criminosas. "Todos que atuam na mineração sabem que existem cooperativas de fachada", reconhece Alex Macedo, da OCB. Uma situação assim foi descoberta pela Operação Minamata, em 2017, que revelou que a Cooperativa de Mineração dos Garimpeiros do Lourenço (Coogal), no Amapá, era usada para “esquentar” ouro ilegal — a entidade oferecia formulários prontos de filiação a garimpeiros ilegais que precisassem comprovar a origem na hora da venda. 

Ocorrências semelhantes foram flagradas em julho de 2018, durante uma fiscalização do então DNPM (atual ANM) no rio Madeira, no Amazonas. Garimpeiros abordados pelos fiscais informaram que a Cooperativa do Humaitá vendia fichas de filiação por R$ 4 mil para que eles pudessem legalizar o ouro extraído de áreas irregulares. A Cooperativa de Manicoré, que também é apontada no relatório, cobrava R$ 500 por mês por balsa de garimpo.

"A cooperativa pressupõe um manto de legalidade, um CNPJ, por cima de um mosaico de garimpinhos irregulares", explica Gustavo Geiser, perito da Polícia Federal no Pará.


Reportagem produzida com apoio da Operação Amazônia Nativa (Opan).

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