Em entrevista, secretária-executiva do Observatório da BR-319, Fernanda Meirelles, conta como os planos de recuperação de trecho de quase 500 km avançou atropelando direitos indígenas e com estudos ambientais incompletos. Rodovia pode agravar desmatamento no sul do Amazonas, que bate recordes mensais.
Construída nos anos 1970 e abandonada na década seguinte, a BR-319 está no centro de novas polêmicas envolvendo obras na Amazônia. Seus quase 900 quilômetros ligam as capitais Porto Velho (RO) e Manaus (AM). O licenciamento para recuperar o pavimento em alguns de seus trechos foi acelerado pelo governo de Jair Bolsonaro.
Audiências públicas presenciais e eletrônicas foram realizadas por órgãos públicos durante a pandemia – uma delas ocorreu no final de setembro, quando o pesquisador do Inpa e prêmio Nobel da Paz Philip Fearnside foi agredido verbalmente por um membro do Movimento Conservador do Amazonas – e sem a participação efetiva de populações indígenas e tradicionais, que podem ser afetadas pelo empreendimento, conta Fernanda Meirelles.
Secretária-executiva do Observatório da BR-319, coletivo de entidades civis que tenta, desde 2017, reduzir os impactos socioambientais da recuperação e da manutenção da rodovia, Meirelles é mestre em Ecologia e também coordenadora de Políticas Públicas do Idesam, ONG que atua na conservação e desenvolvimento sustentável na Amazônia.
Confira abaixo os principais trechos da entrevista sobre os meandros históricos e políticos da BR-319.
InfoAmazonia – Como e quando a rodovia foi planejada e construída? Seu péssimo estado foi o estopim para as várias obras em licenciamento?
Fernanda Meirelles – A BR-319 foi construída na década 1970 e inaugurada em 1976, toda pavimentada. Na época, o licenciamento ambiental não era exigido em lei. No fim dos anos 1980, a rodovia tinha sido abandonada e se tornou intrafegável. O trecho central perdeu quase completamente o asfalto. Outros trechos alagavam, demandando manutenção constante de inúmeras pontes, bueiros e outras estruturas. Tantos estragos trouxeram sua recuperação de volta à tona em 2005, quando o Ibama vistoriou toda a rodovia e começaram os debates sobre os devidos estudos de impacto ambiental para sua pavimentação e manutenção. Próximo às capitais Manaus e Porto Velho, o pavimento já foi recuperado. A discussão hoje é focada na recuperação dos chamados trechos “C” e “do Meio”, somando quase 500 quilômetros nas regiões do Rio Tupana e da ponte sobre o Rio Jordão até o entroncamento com a BR-230 (Transamazônica).
Paralelo ao licenciamento da pavimentação, há um processo para a manutenção da rodovia voltada a manter sua trafegabilidade ao longo do ano todo. Seu licenciamento começou formalmente no Ibama em 2008, desde quando o órgão pede correções e complementos de informações. Este governo acelerou o licenciamento da BR-319, assim como tenta destravar outras obras, como da BR-317, da fronteira com o Peru até Rio Branco (AC), e da Ferrogrão, ferrovia entre Cuiabá (MT) e Itaituba (PA).
A obra é realmente necessária? Para quê? Tem apoio da população amazônica?
A BR-319 tem grande motivação e apelo políticos e foi mantida como uma obra prioritária por vários governos, inclusive pelo atual. Foi construída sobre o mote predominante da ditadura militar de integrar a região amazônica ao restante para não cedê-la a interesses não brasileiros. Atualmente, não vejo que seria uma grande rota para o escoamento de mercadorias, que já fluem através da cabotagem e outras alternativas mais baratas. A motivação é mais política e tem um apelo popular muito grande, pois a via garantiria o acesso das populações a outros pontos do país, assegurando o direito de ir e vir, tão reforçado regionalmente.
A visão de que a Região Norte é negligenciada pelo restante do país vem de muito tempo e ganha impulsos durante campanhas eleitorais. Claro, sua reconstrução também pode estar conectada à consolidação de interesses econômicos como o do escoamento de produtos pela costa do Oceano Pacífico, conectada por rodovias do Brasil ao Peru.
Sabemos dos custos para a recuperação da BR-319? Quem pagará a conta?
Nos anos 1970, a obra foi parte de um grande pacote governamental de obras na Amazônia. Hoje, também não há transparência sobre os custos e fontes de recursos para as obras de pavimentação e de manutenção da BR-319. Mas as obras estão dentro do PPI – Programa de Parcerias e Incentivos como prioritárias. Também há vários problemas nas licitações, nos investimentos e na qualidade das obras já feitas sendo identificados pelo Tribunal de Contas da União e por outras entidades.
Por que entidades civis criticam as audiências públicas promovidas pelo governo sobre o asfaltamento da via, no fim de setembro e início de outubro?
Nos posicionamos contra as quatro audiências públicas porque as consultas prévias, livres e informadas com populações indígenas e tradicionais não foram cumpridas, como pede a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho. Essas populações não foram ouvidas. As audiências públicas trataram do licenciamento de trechos a serem recuperados, mas as consultas devem olhar para o que ocorrerá ao longo de toda a rodovia. Além disso, reuniões presenciais são um grande risco durante a pandemia e num estado (Amazonas) duramente afetado pela Covid-19 e com baixa taxa de vacinação.
Outro problema é que as audiências também foram transmitidas pela internet, enquanto as populações mais afetadas na área de influência da BR-319 não estão perto das sedes dos municípios e não tiveram acesso, não se deslocaram pelos custos, pelo risco da Covid e nem têm internet. Quem mora ao longo da rodovia não participou das reuniões. As audiências aconteceram sob protestos, derrubando ações judiciais e com baixa presença de público. Foram feitas antes mesmo da conclusão dos estudos de impacto ambiental e do componente indígena. Tudo isto é completamente ignorado por DNIT e Ibama. Para o governo, estas questões estão todas superadas com as audiências realizadas. Isso tudo torna o licenciamento muito frágil e passível de novas judicializações.
Como é a região cortada pela BR-319 e quais prejuízos sociais e ambientais vêm ocorrendo e quais são projetados com a pavimentação?
Monitoramos a área de influência da rodovia, que abrange 13 municípios e as capitais, 69 terras indígenas e 41 unidades de conservação. É uma região com certo ordenamento territorial, mas onde os recordes de queimadas, desmatamento e degradação florestal são batidos a cada mês. Os prejuízos avançam sobretudo no sul do Amazonas, inclusive com influência da BR-230. Verificamos que ramais estão saindo e chegando da BR-319 por dentro de áreas protegidas. Tudo isso amplia impactos como caça, conflitos por terras e especulação fundiária, que crescem com anúncios do governo sobre flexibilização de regras ambientais.
Também há o agravamento de doenças e da prostituição, inclusive entre populações indígenas. Próxima a Porto Velho (RO), a Terra Indígena Karipuna é uma das mais atingidas em toda a Amazônia por invasões, desmatamento, grilagem e outras agressões. Em maio, o povo acionou a Justiça Federal contra a União e a Funai pedindo proteção para suas terras e vidas.
O cenário também prejudica iniciativas e políticas para o desenvolvimento sustentável na região da BR-319. Essa destruição não traz melhoria alguma para os municípios, que acabam listados como maiores desmatadores e têm créditos restringidos.
O que podemos esperar para a região da BR-319 nos próximos meses e para um esperado ano eleitoral de fortes embates políticos?
O governo Jair Bolsonaro tem metas para terminar o licenciamento da pavimentação da BR-319 ainda este ano, mesmo que as obras não comecem de imediato. Tudo está ancorado em estratégias de campanha de governistas e aliados para angariar eleitores no norte do país. Mas não podemos descartar reviravoltas e novas judicializações dos licenciamentos, mas com decisões do Judiciário por enquanto favoráveis àquelas obras.
Reportagem do InfoAmazonia para o projeto PlenaMata.