Quase 6,5 mil hectares de florestas públicas tombaram em Altamira, no Pará. Um dos responsáveis desmatou 60% dessa área e não parou nem após ser multado pelo Ibama.
Uma floresta de quase 6,5 mil hectares desapareceu em 18 meses na Amazônia. E não foi por falta de avisos. Entre 2 de fevereiro de 2020 e 18 de agosto deste ano, os sistemas de monitoramento por satélite, especialmente o DETER, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), emitiram 89 alertas aos órgãos ambientais informando que clarões se abriam no verde ao sul de Altamira, no Pará, entre áreas protegidas cortadas pelo rio Curuá.
O total desmatado foi consolidado em outubro de 2020 pelo MapBiomas com imagens de satélite de alta resolução e equivale quase a área do município de Búzios, no Rio de Janeiro. As derrubadas ocorreram em área da União, em terras públicas ainda não destinadas – seja à conservação, a populações tradicionais ou indígenas, à produção agropecuária ou outro uso econômico.
O InfoAmazonia fez um levantamento para identificar a exata localização da área mais desmatada e se houve punição ao responsável pelo Ibama ou Ministério Público Federal (MPF). Para isso, cruzou a área do polígono identificada pelo MapBiomas com dados dos autos de infração do Ibama, ações do MPF, áreas protegidas e áreas de terras públicas não destinadas e constatou que as derrubadas ocorreram em terras da União próxima a duas terras indígenas e uma unidade de conservação de proteção integral.
O levantamento indicou haver uma multa milionária na margem direita do polígono, próximo ao rio Curuá. Entramos em contato com o Ibama, que confirmou haver dois responsáveis pelas derrubadas. Um deles, que desmatou 4.410 hectares, é Augustinho Alba, apontado pela Veja como um dos maiores desmatadores da Amazônia entre agosto de 2019 e julho de 2020.
Em julho do ano passado, Alba foi multado em R$ 22 milhões por desflorestamento sem autorização. Está sendo processado pelo Ibama. Este ano, recebeu outra multa de R$ 510 mil por desrespeitar o embargo do órgão ambiental. Segundo uma portaria do Ibama de 2016, a medida serve para “paralisar a infração ambiental, prevenir a ocorrência de novas infrações, resguardar a recuperação ambiental e garantir o resultado prático do processo administrativo”. No caso de Alba, ela não funcionou – ele seguiu destruindo ou ocupando ilegalmente a área a despeito da proibição como mostraram os alertas.
Tentamos contato com Augustinho Alba pelo celular, mas uma gravação informou que o número não estava disponível. Enviamos e-mails também aos advogados que figuram no processo movido pelo Ibama. Não houve retorno até o fechamento da reportagem (o texto será atualizado se houver respostas). À Veja, Alba disse que a infração é “informação falsa” passada por uma “cambada de petista”. A multa, no entanto, foi expedida em 10 de julho de 2020, período em que Ricardo Salles, responsável por paralisar o órgão de fiscalização, ainda estava à frente do Ministério do Meio Ambiente (MMA).
O Ibama, uma autarquia vinculada ao MMA, também informou que um “vizinho” de Alba “foi multado em R$ 22.521.600 por destruir 3.002,88 hectares de floresta, além do termo de embargo”. O crime teria ocorrido na mesma área onde o MapBiomas identificou o maior número de alertas de desmatamento entre fevereiro de 2020 e agosto deste ano. Pelo banco de multas do Ibama, não foi possível confirmar o nome do infrator.
Passe livre para desmatar
O caso da maior área desmatada do Brasil nos últimos 18 meses revela um avanço criminoso do desmatamento sobre florestas públicas não destinadas. Dados do Instituto de Pesquisas Ambientais da Amazônia (Ipam) mostram que, entre agosto de 2019 e julho de 2020, foram desmatadas 226,5 mil hectares de áreas de floresta sem designação. Isso representa 20% de toda a destruição registrada na Amazônia no período.
No caso da área desmatada por Augustinho Alba, o acesso de tratores e máquinas usados no corte das árvores foi facilitado pela proximidade com a BR-163, um forte eixo de destruição ambiental. O polígono fica a apenas 12 quilômetros da rodovia, que teve o asfaltamento de 1.780 quilômetros da BR-163 entre Cuiabá (MT) e Santarém (PA) concluído este ano.
Grande parte dela foi concedida pelo governo à iniciativa privada, por dez anos. Nela rodam sobretudo caminhões com soja e outras commodities de zonas produtoras a portos exportadores. Uma reportagem do InfoAmazonia mostrou que as derrubadas explodiram 359% de onde a rodovia entra no Pará até o distrito de Castelo dos Sonhos só nos primeiros quatro meses deste ano, em comparação ao mesmo período de 2020.
A BR-163 se transformou em uma via de acesso a áreas antes preservadas. Segundo o pesquisador do Imazon Antônio Fonseca, a derrubada de árvores avança do Arco do Desmatamento para áreas intocadas da Amazônia batendo recordes mensais, e não mais anuais. “Isso ocorre sobretudo com a formação de pastagens para a grilagem de terras devolutas federais. Depois tentam legalizar o crime e conseguir crédito em bancos fazendo o Cadastro Ambiental Rural, o CAR. Também atuam contra a regularização fundiária e a criação de áreas protegidas”, disse.
Paralelo ao traçado da BR-163, o projeto da Ferrogrão pode ampliar ainda mais a já intensa grilagem e desmatamento no Pará e Mato Grosso. Um estudo da Universidade Federal de Minas Gerais estima que os 1.000 km de ferrovia entre Sinop (MT) e Itaituba (PA) afetarão 4,9 milhões de hectares de áreas protegidas em municípios que já acumulam 1,3 milhão de hectares ilegalmente desmatados.
A área de Altamira também desperta interesse por estar cercada de áreas protegidas ricas em madeira e outros recursos naturais, como a Reserva Biológica da Serra do Cachimbo e das terras indígenas Menkragnoti e do Baú. Nelas vivem os Kayapó e também povos isolados, de pouco ou nenhum contato com outros indígenas ou com a população urbana. O desmatamento de 6,5 mil hectares quase encosta nas margens do Rio Curuá.
O Pará, estado que é líder do desmatamento na Amazônia legal, também concentra a maior quantidade de ações do Ministério Público Federal (MPF) contra desmatadores – os processos correm em sigilo, e não é possível obter o nome dos denunciados. De janeiro de 2019 a junho do ano passado, foram 704 processos contra desmates ilegais. É a maior taxa entre os estados amazônicos no período. Do total de ações, 127 foram em Altamira, onde fica o desmatamento de Augustinho Alba, e 65 na vizinha Novo Progresso. Em março deste ano, em decorrência de ações movidas anteriormente, três fazendeiros foram condenados a pagar a soma de R$ 6,8 milhões em indenizações por desmatar 1.680 hectares nestes municípios – Augustinho Alba é responsável pelo desmatamento de uma área 2,5 vezes maior.
Parte desse desmatamento pode ter tido origem na exploração madeireira. Um relatório da Rede Simex, formada pelas ONGs Imazon, Idesam, Imaflora e IC, mostra que 55% das retiradas de árvores no Pará, entre agosto de 2019 e julho de 2020, não tinham autorização de órgãos ambientais. A área (50,1 mil hectares) corresponde a quase metade do tamanho de Belém.
Segundo o Simex, na Terra Indígena do Baú, próxima ao polígono desmatado, 158 hectares foram afetados pela extração de madeira. A invasão das terras indígenas por madeireiros e garimpeiros mudou a paisagem do local. Segundo lideranças indígenas, as águas cristalinas do Curuá, que nasce na Serra do Cachimbo e cruza as reservas Menkragnoti e Baú, viraram “café com leite”. “O asfalto facilitou o acesso à região. Soja e desmatamento já encostaram em nossos territórios. O governo não cumpre a lei ambiental e nem a Convenção 169 da OIT”, reclamou Doto Takak-Ire, do Instituto Kabu.
Procurada pela reportagem, a Secretaria de Meio Ambiente do Pará não informou sobre quais medidas tem adotado para conter o desmatamento na região e acelerar a regularização fundiária em terras sob sua administração.
Sobra monitoramento, falta fiscalização
Diretora de Ciência do Ipam, Ane Alencar destaca que hoje há informação suficiente para ações preventivas e estratégicas nas regiões mais problemáticas quanto a ilícitos ambientais no Pará. “Os alertas para desmatamentos são uma grande ferramenta para órgãos públicos atuarem contra esses crimes”, ressaltou a doutora em Recursos Florestais pela Universidade da Flórida, EUA.
A tecnologia também serve para ações do Ministério Público Federal (MPF), que usa dados de órgãos ambientais e imagens de satélite para processar criminosos. Entre 2017 e 2019, o órgão identificou 321 mil hectares ilegalmente derrubados, inclusive em “áreas protegidas” na Amazônia.
“Usamos ferramentas disponíveis para identificar e combater mais infratores simultaneamente e com menor custo em relação à fiscalização em campo. Nas ações, tentamos reduzir a atuação de grileiros pedindo para que as áreas alvo de crimes não sejam destinadas até a reparação dos danos”, explicou o procurador da República Daniel Azeredo.
O desmatamento crescente em Altamira era previsível e se deve a sua posição favorável ao agronegócio, próxima a portos exportadores, à fraca fiscalização do poder público e a impactos da implantação de infraestrutura, avalia Azeredo. “Criminosos simulam a ocupação de áreas públicas desmatadas com gado para driblar uma eventual fiscalização, que nunca achará ninguém responsável no local. Frente a novos desmates, a área é esquecida em poucos anos. Depois é usada ou vendida. E leis são repetidamente aprovadas consolidando a grilagem e outros crimes”, explicou o procurador, referindo ao crônico ciclo de desmatamento na Amazônia.
No início de agosto, a Câmara aprovou o projeto de lei 2633, chamado por ambientalistas de PL da Grilagem. Especialistas, como a pesquisadora Brenda Brito, do Imazon, avaliam que se trata de mais uma lei que anistiará grileiros e abrirá caminho para a privatização de terras públicas. A proposta ainda precisa ser apreciada pelo Senado.
As derrubadas de árvores anuais tiveram uma escalada de 450% em Altamira nos últimos nove anos. Passaram de 114 km2 (2012) para 625 km2 (2021), somando 3.083 km2, conforme o Imazon. Os sete primeiros meses deste ano já acumulam perdas florestais de 432 km2 apenas no município.
A área de pastagens acompanhou a perda de florestas. Altamira teve um crescimento de quase 850% na área de pastagens desde 1985: saltou de 83,5 mil hectares para 783,5 mil hectares, segundo o MapBiomas. Quase 1.800 km2 de florestas tombaram entre 2010 e 2014 ao redor da mega usina de Belo Monte. As perdas são 40% maiores do que o estimado sem a hidrelétrica.
Brasil está preparado para zerar desmatamento
Acelerar a regularização fundiária para produção rural ou conservação da natureza é uma das medidas urgentes para frear o desmatamento e atrair investimentos mais qualificados na Amazônia, na avaliação de Brenda Brito. Somente no Pará, há cerca de 35 mil processos de regularização fundiária vinculados ao Instituto de Terras do Pará, distribuídos em diferentes órgãos estaduais. No atual ritmo de avaliação e de digitalização, seriam necessários 79 anos para dar conta da papelada, estimou o estudo do Imazon. No estado e no restante da Amazônia também há inúmeros processos federais sobre títulos de terras. O caos fundiário alimenta o desmatamento.
Segundo Brito, seguir titulando terras com desmate ilegal e flexibilizando leis federais e estaduais só alimentará novos crimes. “Nas terras legalizadas também seria permitido desmatamento, mas haveria controle sobre seus responsáveis. Se não for assim, desmatarão tudo antes de receber um título. Ao mesmo tempo, é preciso avançar com a criação de áreas protegidas e investir com qualidade para modernizar os sistemas estaduais de dados fundiários e de licenciamento”, destacou.
Para o economista André Cutrim Carvalho, professor da UFPA, políticas públicas econômicas para ampliar e intensificar a produção agropecuária nas áreas já disponíveis também poriam um freio no desmatamento. “A ideia generalizada é de que o mercado deve prevalecer, mas vemos efeitos nefastos das queimadas para formação de pastagens e criação extensiva de gado. Seguindo assim, teremos custos cada vez maiores para conservação e restauração do que foi destruído, e a região perderá atratividade para investimentos. Essa bolha vai estourar”, avaliou.
Na visão do procurador Daniel Azeredo, é indispensável rastrear todas as cadeias produtivas na Amazônia. Afinal, “sem uma rastreabilidade ampla e confiável, produtos ilícitos seguirão sendo comercializados junto a mercadorias legalizadas”.
O Brasil já tem capacidade técnica e política para adotar esse controle e frear a destruição da floresta, diz Fonseca, do Imazon. Ativo entre 2002 e 2020, o Plano de Ação para Controle e Prevenção do Desmatamento na Amazônia Legal reduziu o desmate às menores taxas históricas, em 2012.
“Tivemos uma reunião de ações e de atores que conteve o desmatamento. O Brasil sabe como fazer isso. Nosso exemplo global precisa ser retomado, inclusive porque as principais economias se voltam para agendas verdes. Mas essas mudanças positivas têm que refletir em ganhos econômicos para a sociedade local”, destacou.
Conforme Ane Alencar, diretora do Ipam, controlar o desmatamento e tornar a pecuária mais eficiente manteriam os benefícios das florestas e reduziriam nossa contribuição ao aquecimento global. Somos hoje o sexto país que mais contribui para a crise climática. “Para o Brasil, é mais barato cortar emissões hoje turbinadas pelo desmatamento, pois ainda não precisamos focar fortemente em geração de energia ou transportes. Devemos aproveitar essa vantagem e nos posicionar de forma diferente no debate global sobre clima. Manter nosso patrimônio natural reduzirá emissões e será um jogo de ganha-ganha para o país”, destacou.
Reportagem do InfoAmazonia para o projeto PlenaMata.
Colaborou Juan Ortiz (análise de dados geoespaciais) e Carolina Passos (visualização de dados).