Em audiência pública, seringueiros denunciaram ameaças e expulsão por grileiros; governador propõe “solucionar conflitos” com redução de 77% em reserva extrativista.

por Fábio Bispo

A incapacidade do poder público de Rondônia para impedir “ocupação e desmatamento ilegal” de uma área protegida que já teve 49% de seu território desmatado e onde já existem mais de 150 mil cabeças de gado é o principal argumento do governador Marcos Rocha (sem partido) para defender a redução de duas das principais unidades de conservação do estado.

Segundo proposta apresentada à Assembleia Legislativa de Rondônia pelo executivo, a Resex Jaci-Paraná poderá perder 77% do seu território de 197 mil hectares, e o Parque Estadual Guajará-Mirim, 20% dos 258 mil hectares.

“O que este projeto de lei pretende é legalizar a grilagem e legislar a favor das ilegalidades que já ocorrem. Permitir gado em unidade de conservação é crime, e usar isso para justificar a desafetação de uma área é premiar quadrilhas”, declarou a indigenista Ivaneide Bandeira Cardozo, pesquisadora da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, durante audiência pública realizada na Assembleia de Rondônia, na quarta-feira, 2.

As duas unidade de conservação discutidas no PLC 080/2020 são alvos constantes de invasões e grilagens. Os crimes foram relatados por diversas lideranças na audiência e lembrados pelo próprio governador na mensagem enviada ao parlamento junto com o projeto de lei.

Resex Jaci-Paraná:
Limite atual: 197 mil hectares
Nova proposta: 45 mil hectares

Parque Estadual Guajará-Mirim:
Limite atual: 258 mil hectares
Nova proposta: 207 mil hectares

O governador Marcos Rocha, um apoiador do presidente Jair Bolsonaro, fala em “escalada da violência na região” e dificuldades do governo para implantar Políticas de Proteção Ambiental, como as certificações sanitárias que permitem a exportação de carne pelo estado. No ano passado novos frigoríficos de Rondônia foram aprovados para vender carne bovina à China.

O município de Porto Velho, onde parte da Resex Jaci-Paraná está localizada, tem o terceiro maior rebanho bovino da Amazônia Legal, e o quinto de todo o Brasil. Como mostrou o Mapa do Gado da Amazônia, em quinze anos, o crescimento de cabeças de gado foi de 145%, elevando a cerca de 1 milhão de bois no município.

Acuados pela grilagem

Tommaso Protti/Greenpeace
Tommaso Protti/Greenpeace

Na mesma mensagem enviada aos deputados, o governador ainda diz que a proposta para reduzir as áreas protegidas pretende “minimizar” conflitos na região e suas “consequências ambientais”.

Mas não é assim que a comunidade local percebe a situação. Para eles, a desafetação de áreas na Resex vai legalizar não só o que está instalado, mas também anistiar uma série de crimes cometidos ao longo dos últimos anos.

“Os seringueiros de Jaci-Paraná estão desamparados por conta do desmatamento. De um lado e outro do rio é campo e gado, não existe mais mata para o herói seringueiro trabalhar”, afirmou o representante dos seringueiros extrativistas do rio Jacy-Paraná, Artur Soares de Almeida.

Das galerias da Assembleia, os deputados ainda ouviram outras denúncias, relatando fugas de nativos e ameaças.

A presença do gado nas áreas protegidas afeta também o “mosaico ecológico constituído por Resex, Unidades de Conservação e terras indígenas”, pontua Laura Vicunha Pereira Manso, do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) em Porto Velho (RO).

O pasto e o gado estão cada vez mais perto dos poucos indígenas que ainda vivem na região, em especial da etnia Karipuna. Sua principal aldeia, Panorama, às margens do rio Jaci-Paraná, faz fronteira com a Resex sob ataque.

“As justificativas apresentadas para alterações dessas unidades protegidas mostram a ineficácia do Estado em cumprir seu dever constitucional, que é combater o crime organizado. Audiência é para legitimar a destruição do mosaico ecológico”, emendou Laura.

A Resex de Jaci-Paraná foi criada em 2001 e ocupa parte do território de Porto Velho, Buritis e Nova Mamoré, no norte de Rondônia. Após um ano de criação, teve sua área reduzida em 6,7%. Data do mesmo período as primeiras invasões ilegais que foram intensificadas nos últimos anos. No início para a retirada da madeira, depois para grilagem e, por fim, para criação de gado.

Em 2014 o Ministério Público Estadual chegou a determinar a retirada do gado da reserva, mas a decisão nunca foi cumprida.  Em reportagem de 2018, O Eco mostrou que a própria Agência de Defesa Sanitária Agrosilvopastoril de Rondônia chegou a vacinar gado dentro da reserva contra febre aftosa e emitir Guias de Transporte Animal (GTA) para rebanho criado ilegalmente.

Na Resex, cada família recebe o direito de utilizar um lote, chamado de “colocação”, no caso da Jaci-Paraná a maioria é filho ou neto de seringueiros e mantêm pequenos cultivos de subsistência.

A Resex está entre as mais desmatadas na Amazônia Legal, com 893,62 km² destruídos entre agosto de 2019 e julho deste ano, segundo dados do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). No mesmo período, o Parque de Guajará-Mirim perdeu 86,92 km² de mata.

Estratégia anti-conservação

Christian Braga / Greenpeace
Queimada na Reserva Extrativista Jaci-Paraná, em Porto Velho (RO).

“Uma coisa influencia a outra, e eu vejo até esta audiência de hoje como uma cortina de fumaça para tirar um pouco a atenção desse outro projeto, temos que ficar atentos em como será o zoneamento na área da Resex e nas unidades de conservação”, afirmou Ivaneide Bandeira.

Em troca da supressão dos cerca de 203 mil hectares nas duas áreas protegidas, o governo de Rondônia anuncia a criação de outras seis unidades em áreas menos ‘cobiçadas’ e que somam quase 130 mil hectares.

No Parque Guajará-Mirim, nos municípios de Guajará-Mirim e Nova Mamoré, onde está prevista uma redução de 20% do território, o medo é que as mudanças nos limites do parque abram caminho para invasões na Terra Indígena Karipuna e de outras unidades próximas.

Em 2018 o Ministério Público Federal apontou risco de genocídio dos Karipuna, que estão na 9ª terra indígena mais desmatada no Brasil.  Em 2019, o InfoAmazonia visitou o território para reportagem do projeto Terra de Resistentes. O relato mostrou que as lideranças e anciãos do povo Karipuna temiam por seu futuro, já que a população está reduzida a algumas dezenas de sobreviventes.

A invasão e o desmatamento, por si só, não deveria justificar as mudanças dos limites para considerar a grilagem como ocupação consolidada. Para essas áreas são destinados recursos do Programa Áreas Protegidas da Amazônia (Arpa), do Ministério do Meio Ambiente, que deveriam ser empregados na recuperação do bioma.

Histórico de desmatamentos anistias

Imagens Sentinel 2 / ESA
Imagens Sentinel 2 / ESA

Dados recentemente divulgados pelo INPE com informação do sistema Prodes mostram que Rondônia é o quarto estado amazônico com maior desmatamento em entre agosto de 2019 e julho de 2020. Por anos, ocupou a terceira posição, que neste ano pela primeira vez foi ocupado pelo estado do Amazonas.

A dobradinha dos dois projetos do governo em tramitação, para redução de áreas preservadas e definição de novo zoneamento, parece a repetição de um filme que os rondonienses conhecem bem.

“Esse é o mesmo discurso que usaram quando reduziram a Flona [Floresta Nacional] Bom Futuro. O argumento de resolução de conflitos e uso sustentável foi o mesmo. Mas o que aconteceu nós sabemos bem, só beneficiou grileiros”, observa a ativista da Kanindé Ivaneide Bandeira.

A Flona do Bom Futuro está situada nos municípios de Ariquemes e Porto Velho, e foi criada por decreto em junho de 1988 com o intuito de promover o manejo dos estoques de madeira da região. A área foi invadida por grileiros, madeireiros e posseiros. Floresta foi sendo substituída, aos poucos, por pastagens para o gado, lavoura de café e banana. A ocupação irregular originou um núcleo urbano clandestino conhecido como Rio Pardo.

Em 2009, a Flona sofreu uma drástica redução de seu território, de 280 mil hectares para 97 mil hectares, após um acordo entre governo estadual e federal. Na época, o processo de redução da área foi uma condição imposta pelo governo estadual para conceder licenciamento ambiental para as usinas do rio Madeira, as hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio.

De acordo com o relatório O Fim da Floresta?, do grupo de trabalho amazônico em Rondônia, a flona permaneceu totalmente intacta até 1995. A partir de 2000, teve início um processo intenso de grilagem de terras, que resultou em mais de 32% da floresta devastada e toda uma estrutura urbana dentro da área inicialmente destinada à preservação.

Ainda em 2010, um estudo realizado por Paulo Barreto e Elis Araújo, do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), apontava que os acordos de redução das áreas protegidas se tornou prática comum nos diversos estados amazônicos.

Segundo notícia do Instituto Socioambiental, em 2014, “ocorreram novas tentativas revogação de quatro Unidades de Conservação (UCs) estaduais, enquanto em 2018, pela segunda vez, parlamentares da Assembleia Legislativa de Rondônia extinguiram 11 Unidades de Conservação, ao todo foram mais de meio milhão de hectares de áreas protegidas na Amazônia”.

“Rondônia deveria estar no Centro-Oeste”, declara presidente da ALERO durante audiência

O representante da Federação da Agricultura, que congrega todos os sindicatos rurais, Edson Afonso, defendeu na audiência realizada na Assembleia de Rondônia, a redução das áreas protegidas justificando que 40% do território do estado está demarcado “com preservação de áreas públicas e terras indígenas”.

“Isso nos coloca em uma posição de sermos um estado muito promissor ambientalmente. As demais áreas, a gente entende, que têm que estar à disposição da produtividade”, alegou o representante dos produtores rurais.

A defesa do projeto do governo também ganhou coro entre os deputados. Chiquinho da Emater (PSB) disse que o projeto “bem trabalhado” poderá trazer “paz social e desenvolvimento”.

O presidente da Assembleia de Rondônia, Laerte Gomes (PSDB), defendeu que a aptidão de Rondônia é a produção rural: “Nós estamos em um estado com nossa aptidão totalmente de produção. Eu acho que Rondônia deveria era ser centro-oeste e não Amazônia”, comentou Gomes.

Vídeo completo da audiência

A sessão foi presidida por Jean de Oliveira, do MDB. Pecuarista, ele preside a Comissão de Meio Ambiente e já foi alvo da Polícia Federal na Operação Feldberg e é apontado como membro de uma quadrilha que tentou grilar 64,4 mil hectares dentro de uma unidade de conservação.

Durante a sessão, Oliveira chegou a classificar como “insinuações” as defesas dos ambientalistas e disse que apesar das afirmações ainda não tinha tornado público seu posicionamento sobre a matéria.

Tentando dar um verniz republicano para o encontro marcado às pressas, disse que a audiência tinha o objetivo de “colher informações para formar a convicção dos parlamentares”.

Com o argumento da pandemia e a necessidade de distanciamento social, a audiência foi realizada com público restrito dentro da Assembleia de Rondônia, com apenas 75 pessoas nas galerias. Cerca de 200 pessoas acompanharam a sessão do lado de fora.

Os que conseguiram inscrição para o debate também apresentaram sugestões, que foram protocoladas na Assembleia. A maioria pedia a suspensão da matéria por parte dos representantes das entidades ambientais, associações das comunidades tradicionais e indígenas.

Um desses pedidos, coletivo, representou mais de 50 entidades que assinaram um manifesto contra o projeto de lei, incluindo WWF, Greanpeace, SOS Amazônia e diversas associações indígenas, ligadas aso seringueiros e à proteção ambiental.

O projeto também desagradou produtores menores, que estão no chamado “bico do parque”, em Guajará-Mirim, onde os limites da reserva seriam ampliados. Caso não tenham seus pedidos atendidos, os produtores ameaçam bloquear estradas e isolar comunidades.

Mas também surgiram propostas mais ousadas, como a do advogado Helio Belotti, representante da Associação dos Produtores Rurais de Minas Novas, que pediu a extinção completa da Resex de Jaci-Paraná para criação de outras áreas de preservação. Algo bastante semelhante com o que ocorreu na Flona Bom Futuro.

As comunidades voltaram a cobrar a apreensão do gado ilegal nas áreas de preservação e a suspensão das vacinas nos animais. Nenhum dos pedidos da audiência teve encaminhamento imediato. Assim como as denúncias de crimes de invasão, desmatamento e ameaças.

Assista também – Karipuna. Terra de Resistentes, por Fábio Nascimento

Ainda não há comentários. Deixe um comentário!

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.