Brigadas indígenas atuam quase sem apoio do governo na Terra Indígena Parque do Xingu, em Mato Grosso, a mais afetada pelas queimadas no país. Cineasta criou vaquinha online para comprar equipamentos para as brigadas independentes.
“Esse ano é o pior incêndio da história do Xingu. Os velhos contam que nunca houve nada assim. Tudo queima. Perdemos hortas, plantas medicinais, árvores pra fazer casas, muita coisa”, diz Takumã Kuikuro, cineasta que vive na Terra Indígena (TI) Parque do Xingu, com 26.000 km² e lar de 16 etnias, em Mato Grosso.
Levantamento do Núcleo de Inteligência Territorial do Instituto Centro de Vida (ICV), com base em dados do Global Fire Emissions Database (GFED), da NASA, estimou que foram queimados 2.003 km² na TI até 30 de setembro.
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O Xingu é a terra indígena com mais focos de calor no país todo, com 12,3% do total de focos registrados em TIs, entre 1º de janeiro e 30 setembro de 2020, segundo monitoramento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Em setembro, a TI ficou, mais uma vez, no topo do ranking de queimadas do país, sendo que os 8.048 focos captados pelo satélite S-NPP/VIIRS representam 17,5% do total registrado em terras indígenas no mês. No mesmo período, Mato Grosso registrou quase metade (44,3%) dos focos de calor de toda a Amazônia Legal.
Brigadas indígenas
Segundo lideranças locais, até o fim de setembro, cerca de 50 homens lutavam para conter todos os focos de incêndio na TI. Basicamente, foi designado um homem, por aldeia, em todo território do Xingu.
A brigada foi formada pelo Sistema Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (Prevfogo), coordenado pelo Ibama. Os povos indígenas integram as brigadas oficiais desde 2013, através do programa Brigadas Federais, uma parceria entre o órgão ambiental e a Funai. Por causa da pandemia de Covid-19 e das barreiras sanitárias criadas para propagação do novo coronavírus, em 2020 a brigada federal foi formada exclusivamente por indígenas.
Esses 50 indígenas ficaram com a atribuição de todas as medidas de prevenção aos incêndios em um território que exibe uma grande biodiversidade, região de transição ecológica entre Cerrado e Floresta Amazônica.
Exaustos e há mais de 30 dias em campo, eles pedem apoio do governo federal para vencer uma das piores temporadas de queimadas dos últimos anos.
“Meu irmão lidera as brigadas. Em alguns dias, ele e os brigadistas estavam tão exaustos que quase perderam as forças. Mas, mesmo com pouco apoio, seguem lutando pelas matas para poder evitar que o fogo atinja as aldeias”, conta Takumã.
Casas queimadas
A grande maioria das casas da terra indígena ainda é construída no modo tradicional, de palha. No norte do território, 14 casas no Polo-Base Diauarum, que fica na área do povo Kaiabi, foram destruídas pelo fogo em 13 de setembro. Por sorte, ninguém se feriu.
Brigadistas voluntários
Sem apoio da Força Nacional e com um acréscimo de apenas outros 52 brigadistas não indígenas do Prevfogo, que chegaram há dez dias, os xinguanos decidiram captar recursos de forma independente para aumentar os esforços, e, principalmente, evitar que o fogo atinja as aldeias e moradias.
“Precisamos de equipamentos, muitos voluntários já estão na região combatendo o fogo sem nenhum tipo de proteção. Porque quando o fogo chega ele se espalha muito rápido. Se a brigada está distante, não tem como chegar às aldeias. A ideia é ter homens em cada ponto de apoio”, diz Takumã Kuikuro, idealizador da vaquinha online ‘Fundo para Brigadistas Indígenas do Xingu’.
“Ainda não conseguimos atingir o objetivo, mas já vamos usar parte do que foi arrecadado para comprar equipamentos. O difícil é que muita coisa vem de outro estado e demora, mas vamos continuar lutando para proteger o nosso território”, diz.
Indígenas de outras áreas já chegaram à região da aldeia Ipatse, no Alto Xingu, para prestar apoio e seguem no combate, mesmo sem equipamentos.
“Mas as tropas da Força Nacional, mesmo, nunca vieram até aqui. Nem avião de apoio temos. Se enviassem os aviões que lançam água, conseguiríamos evitar que o fogo aumentasse”, diz Takumã.
Acusação federal
No início de setembro, o governo de Mato Grosso fez um apelo ao Ministério da Defesa, por apoio no combate aos incêndios que há mais de três meses seguem sem controle em todo estado. Os generais do comando da Operação Verde Brasil II chegaram a fazer uma reunião com o governador Mauro Mendes (Democratas), em 17 de setembro.
Apesar da liberação de R$ 10 milhões do governo federal para Mato Grosso, e do decreto de emergência ambiental, que autoriza compras sem licitação, menos de 400 homens seguem no enfrentamento direto ao fogo, em todo o estado. A grande maioria ficou concentrada no Pantanal, o bioma mais atingido no país este ano, com 23% de sua área (equivalente ao território da Bélgica) consumidos pelas chamas segundo levantamento da Universidade Federal de Mato Grosso.
Durante seu discurso na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) acusou os povos indígenas e populações tradicionais da Amazônia de serem os responsáveis pelos incêndios que atingem o país. Pesquisadores contestam o argumento do chefe do Executivo nacional.
“Totalmente descabida essa colocação. Até agosto, somente 7% dos focos ativos ocorreram nas terras indígenas. É um número muito pequeno, comparado com o quadro geral. As terras indígenas ocupam 25% do bioma Amazônia”, explica Ane Alencar, pesquisadora do Instituto de Pesquisas da Amazônia (Ipam).
Ela aponta que uma parcela significativa dos focos encontrados nessas áreas também estão ligados aos conflitos pela terra. “Grande parte do fogo acaba não sendo provocado pelos indígenas, estão relacionados a garimpo e invasões ou estão em terras indígenas com muita área de Cerrado. No caso do Parque do Xingu não há muito cerrado, mas tem uma vegetação não florestal ao longo do rio, o que é muito inflamável”, diz.
Os indígenas do Xingu repudiam as acusações. “Ele (o presidente) não conhece a vida dos indígenas. O interesse dele é acabar com a terra indígena e promover mais violência. Nós não vamos queimar nossas matas, valorizamos a natureza. Sabemos que tem mudança climática. Ele está alegando coisas que nem conseguimos seguir mais. Quando eu era jovem, o meu avô contava que tinha uma estrela. Quando ela aparecia, a estrela agricultor, vinha chuva. Nessa época, do som dos pássaros dava pra identificar a chuva. Isso tudo mudou. Não sabemos mais nada do calendário tradicional”, diz Takumã.
Esta reportagem faz parte do Amazônia Sufocada, projeto especial do InfoAmazonia com o apoio do Rainforest Journalism Fund/Pulitzer Center.
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