Projeções climáticas e altos índices de desmatamento apontam sul da Amazônia como região com maior risco de queimadas descontroladas nos próximos meses.
Projeções climáticas e altos índices de desmatamento apontam sul da Amazônia como região com maior risco de queimadas descontroladas nos próximos meses. Foto de abertura: o que à primeira vista parecem nuvens, são incêndios na floresta amazônica em 2019, em imagem capturada a partir da Estação Espacial Internacional. ESA/NASA-L.Parmitano.
por Fábio Pontes
O ano de 2005 ainda está fresco na memória dos acrianos como um dos mais críticos quando o assunto são os meses de estiagem, que têm como uma de suas principais características as queimadas que destroem dezenas de quilômetros quadrados de vegetação, piorando a qualidade do ar numa época marcada pela baixa umidade. Há exatos 15 anos, o Acre vivia um de seus “verões amazônicos” mais intensos e trágicos.
Pelas cidades, os dias quase se transformavam em noite pela fumaça das queimadas que encobria o sol. Com os longos dias sucessivos sem chuva, o fogo que era usado para a limpeza dos roçados não encontrava dificuldades para se alastrar pelo interior da floresta cheia de vegetação seca.
Em 2005, o Acre teve 350 mil hectares de floresta em pé atingidos pelo fogo. Agora, em 2020, o Acre e todo o Sul da Amazônia podem voltar a viver uma tragédia ambiental como a de 15 anos atrás. Ao menos é o que aponta estudo da Nasa, a agência espacial norte-americana.
O motivo é o mesmo: o aquecimento das águas do Atlântico Norte. A temperatura elevada do oceano tem como consequência a concentração de mais umidade na parte norte e menos no sul amazônico.
Coordenador do Setor de Estudos de uso da Terra e Mudanças Globais (SETEM), da Universidade Federal do Acre, o ecólogo Foster Brown diz que o padrão climático de 2020 é semelhante ao das secas severas de 2005 e 2010. Para ele, apenas se houver algum nível de chuva a partir da segunda quinzena de agosto pode se amenizar os impactos do fogo, reduzindo os riscos de incêndios florestais.
O “verão amazônico” na porção mais sul do bioma costuma ocorrer entre maio e setembro, sendo seu pico de agosto a setembro. E é justamente nesses meses que as queimadas ocorrem com mais intensidade. Com os dias acumulados sem chuvas ou chuvas escassas, a vegetação está seca e no ponto ideal para ser queimada. As temperaturas altas mais a baixa umidade do ar também ajudam o fogo a agir com mais poder de destruição.
“Tudo indica que vamos ter muitas queimadas. Se a floresta aguenta e não deixa o fogo entrar seria excelente. Mas se a seca se prolonga até o ponto em que a floresta fica suscetível, os incêndios nas áreas de derrubada vão penetrar e queimar grandes áreas de floresta”, diz Brown.
Entre os estados da Amazônia brasileira, segundo a Nasa, o Acre é o que apresenta o mais elevado nível de risco de queimadas descontroladas por conta do ambiente atmosférico, ocasionado pelo aquecimento do Atlântico: 85%. Em seguida estão Pará e Mato Grosso (82%), Rondônia (80%) e Amazonas (63%).
Recordes de desmatamento
Em 2020, a situação climática é agravada pelos níveis recordes de desmatamento da Amazônia detectados desde 2019, impulsionados pelo desmonte da política de proteção ambiental promovido pelo governo Jair Bolsonaro. Esta mesma postura foi seguida pelo atual governo acriano, que tem como sua principal política econômica para o estado o fortalecimento do agronegócio.
O resultado foi o incremento da área de floresta destruída, alcançado a marca de 706,75 km², o pior resultado dos últimos 11 anos na série histórica do Prodes/Inpe.
Em 2020, a tendência de alta de derrubadas se mantém. De acordo com o Sistema de Alerta de Desmatamento em Tempo Real (Deter), também do Inpe, os avisos de desmatamento no Acre entre 1º de janeiro e 31 de julho representam uma área de 197,58 km².
Nova fronteira do desmatamento
O que chama a atenção é o “deslocamento” da concentração da área desmatada. Nos últimos tempos, a região com maior concentração de floresta destruída saiu do Leste do estado para o Centro e o Oeste. Essa mudança é preocupante por ser os Vales do Juruá e Tarauacá/Envira os que ainda apresentam a maior área de floresta preservada no estado.
Em 2019, os municípios de Feijó, Sena Madureira e Tarauacá foram os campeões no registro de focos de queimadas, com 1078, 856 e 722 focos, respectivamente. Em todo o Acre, foram 6.802 focos de calor detectados pelos satélites do Inpe. Estimativas apontam que 180 mil hectares de vegetação se transformaram em cinzas.
No acumulado de 2020 (até 6 de agosto), o estado tinha 830 focos, ocupando a oitava posição na Amazônia Legal. Tarauacá (182) e Feijó (141) voltam a liderar o ranking.
“Diante das projeções da Nasa de um ambiente propício para a propagação do fogo estamos preocupados que estas queimadas feitas em roçados ou para limpeza das áreas desmatadas saiam do controle e adentrem a floresta”, diz a pesquisadora Sonaira Silva, da Universidade Federal do Acre (Ufac). Ela é coordenadora do Laboratório de Geoprocessamento Aplicado ao Meio Ambiente (LabGama), que monitora os níveis de desmatamento e queimadas no estado, além da poluição do ar provocada pela fumaça.
“Quando eu começo a analisar o que aconteceu no ano passado [em termos de desmate], o que aconteceu já em 2018 e o que está acontecendo agora em 2020, eu acho que a situação será muito pior”, afirma Sonaira.
Essa avaliação pessimista se dá exatamente por conta da nova fronteira do desmatamento no Acre.
Ameaça em região isolada da floresta
A Reserva Extrativista Alto Juruá é o exemplo do risco de o fogo sair do controle e entrar numa área de floresta intacta. Em 2019, segundo o Inpe, a unidade de conservação teve 8,46 km² desmatados. Durante os 12 meses do ano passado, a Resex teve 139 focos de queimada. Impacto que ocorre numa das regiões mais isoladas da Amazônia.
“Já está faltando chuva nesta região desde o último mês. Com a previsão da Nasa de que teremos agosto e setembro com chuvas baixas, estamos nos preparando para mapear incêndio florestal de novo este ano, e numa proporção maior”, diz Sonaira. Os incêndios florestais são aqueles que ocorrem no interior da mata fechada, enquanto as queimadas são em roçados, pastagens ou áreas desmatadas.
De acordo com Sonaira, a única forma de conter os incêndios florestais é a ocorrência de chuvas, mas que não conteriam as queimadas para os fins agrícolas. Dados da Sala de Situação mantida pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente apontam os municípios dos Vales do Tarauacá/Envira, Juruá e Purus como de risco alto e crítico para o fogo. Essa medição é feita com base no número sucessivo de dias sem chuvas.
Em 2020, o nível de chuvas no Acre ficou abaixo da média no período do “inverno amazônico”, que são os meses chuvosos de outubro a março. “O clima está mudando. Teve um evento anormal entre janeiro e março. Teve uma onda de calor muito forte, ocasionando uma interrupção nas chuvas. Já em janeiro observamos focos de calor em campo”, afirma a professora da Ufac.
Estratégias de combate ao fogo
Um dos resultados dos trabalhos desenvolvidos pelos pesquisadores do LabGAMA e do SETEM é fornecer informações às autoridades ambientais do estado e federais sobre as áreas mais críticas de desmatamento e risco de fogo no Acre. A partir destes levantamentos, os órgãos de fiscalização podem definir suas estratégias de ações, coibindo o problema onde de fato ocorre.
Na última segunda-feira, 3, o governo estadual lançou a operação Focus II, reunindo a Secretaria de Meio Ambiente (Sema), o Instituto de Meio Ambiente do Acre (Imac), Corpo de Bombeiros e Batalhão de Polícia Ambiental (BPA). Um dos focos é combater o desmate e a queima para a invasão de terras públicas, crime que se intensificou nos últimos três anos.
As ações federais no estado se resumem à Operação Verde Brasil 2, liderada pelo Exército. Até o momento, porém, não se tem observado atividades de grandes impactos. A principal atuação dos militares é garantir a escolta de agentes do ICMBio e Ibama em suas ações de fiscalização nas Unidades de Conservação federais, em especial a Resex Chico Mendes, bastante pressionada pelo avanço da pecuária e a venda ilegal de lotes de terra.
Queimadas de 2005: dia virava noite
Uma das áreas de floresta do Acre mais atingidas em 2005 foi a Reserva Extrativista Chico Mendes, no sudeste do estado. Do céu se via o fumaceiro a sair pelas copas das árvores. No chão, bombeiros e brigadistas tentavam controlar as chamas.
Morador da unidade de conservação, Júlio Barbosa de Aquino vivenciou o grande incêndio de 2005. Segundo ele, o fogo se estendeu durante todo o mês de setembro, sendo controlado apenas em outubro com o início das primeiras chuvas. Ele lembra que o incêndio dentro da mata começou a partir das pequenas queimadas nos roçados dos seringais. “O incêndio de 2005 foi causado, grande parcela dele, de forma acidental, se alastrou e perdemos o controle. Tinha mais de 200 brigadistas lutando contra o fogo, mais as pessoas da comunidade, mas naquele ano a seca estava muito forte”, diz ele, que hoje preside o Conselho Nacional das Populações Extrativistas, o antigo Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS).
Júlio Barbosa diz que os extrativistas aprenderam com a lição de 15 anos atrás. “Eu acho que estamos vivendo um cenário diferente de 2005. Apesar de ter a pressão muito grande do desmatamento, também há o receio de muita gente quanto ao uso do fogo. No meu entendimento há uma consciência maior”, diz. A apreensão de que as previsões de risco se concretizem e que grandes incêndios voltem a castigar a Reserva serão postas à prova nas próximas semanas.