Nesse artigo trago uma reflexão sobre os conhecimentos e jeitos Mura de viver ao longo da história, mostrando como o contato com os não-índios impôs desafios ao meu povo e como, hoje, nossa soberania alimentar se torna cada vez mais importante no contexto da pandemia de Covid-19
Nesse artigo trago uma reflexão sobre os conhecimentos e jeitos Mura de viver ao longo da história, mostrando como o contato com os não-índios impôs desafios ao meu povo e como, hoje, nossa soberania alimentar se torna cada vez mais importante no contexto da pandemia de Covid-19
por Herton Filgueira Mura
Este artigo tem como finalidade fazer uma reflexão sobre a soberania alimentar do povo Mura de Careiro da Várzea e demonstrar que nossos conhecimentos e jeitos de viver, sempre ameaçados e questionados, são a solução para problemas como a pandemia de Coronavírus.
Aqui destaco alguns fatores que contribuem e que contribuíram seja para o enfraquecimento ou adaptação de novos hábitos na cultura tradicional alimentar de meu povo. O contexto histórico da vida Mura e toda sua relação com o espaço natural mostram vários momentos em que a soberania alimentar deste povo sempre foi um fator que garantiu a sua resistência através de séculos de inúmeras batalhas, seja nas guerras contra os invasores colonizadores, na adaptação ao sedentarismo para garantir sua sobrevivência quando ficamos por eles cercados e sem nosso território acessível na plenitude e a partir da autodemarcação de seus territórios garantindo a produção de seus alimentos e do uso fruto dos recursos naturais de cada região onde ficou concentrada as aldeias Mura.
Nesse artigo trago reflexões obre os históricos de contatos que meu povo teve com outros povos indígenas e até mesmo com a relação hostil entre o povo Mura e o homem branco interessado em seus territórios. Também relato brevemente as importantes alianças feitas para garantir nossa sobrevivência durante séculos de lutas e guerras que marcaram para sempre a historia de existência do povo Mura em toda a calha do Rio Madeira, originando a presença e permanência em todo o seu território atual revelando as mudanças nos modos de conservar e produzir seus alimentos.
Antes eu pensava em segurança alimentar dos povos indígenas. Mas hoje, pensando, lendo, refletindo e discutindo, percebo que o que nós sempre tivemos foi soberania alimentar, até a colonização, e que uma das maiores violências que sofremos até hoje decorrentes da colonização é a fragmentação de nosso território, que prejudica nossos roçados, nossas pescas e caçadas. Por isso, ficamos tão fragilizados em alguns momentos, que passamos a lutar pela segurança alimentar: mas o que queremos e temos trabalhado para conseguir é nossa soberania alimentar.
A luta pela segurança alimentar em qualquer região do Brasil integra uma grande estratégia indígena de enfrentamento a qualquer tipo de epidemia ou pandemia assim como o Covid – 19.
No final do artigo é visível a preocupação com investimentos e gastos de recursos públicos, investimentos que poderiam estar sendo usando de uma forma mais solida e concreta fortalecendo a agricultura familiar nas aldeias, reafirmando a cultura alimentar, revitalizando os trabalhos coletivos dentro das aldeias garantindo que todos possam ter dignidade e autossustentabilidade enquanto povos indígenas sem precisar viver a mercê de programas sociais e políticas governamentais que garantam o bem viver de todos os povos da floresta.
O povo Mura de Careiro da Várzea e sua Soberania Alimentar
Tradicionalmente o povo Mura não tinha o costume de plantar. Vivia basicamente da coleta de frutas silvestres encontrada nas florestas a caça e pesca era apenas para o seu sustento básico do dia a dia. Isso porque na época meus antepassados eram nômades: ser nômade era um fator que motivava os Mura a viver longe do costume de plantar. A farinha, que era o composto de toda e qualquer alimentação, sempre foi adquirida por meio da troca com outros povos e, em outros casos, eles furtavam.
Essa aventura foi vivida pelos Mura até mais ou menos três séculos atrás e sempre tiveram o necessário para o seu próprio consumo diário e, assim, acumular ou guardar alimento não era necessário, pois sempre tiveram o suficiente para a sua sobrevivência. Navegar pelos leitos do Rio Madeira, explorar lugares diferentes em outras calhas de rio era o objetivo diário, passar uns dias aqui e remar em direção para outro lugar ali em busca de novas frutas caças e peixes ,esse era seu modo de vida. Os lugares a serem percorridos variavam, isso dependia muito da época e estação do ano.
Esse costume foi mudando conforme o povo Mura foi tendo contato com os não-índios e principalmente com a relação e convivência com outros povos como ocorreu depois da Cabanagem. Depois do contato com o homem branco, os Mura iniciaram o hábito de armazenar alimentos e isso teve vários impactos na cultura desse meu povo, primeiro porque foi necessário aprender a construir instrumentos e utensílios que ajudassem a conservar os alimentos e, depois, porque foi necessário ficar preso às roças para cuidar delas.
A partir deste momento, a utilização de cerâmicas, teçumes como paneiro, balaio, cestas, panacú e outros foi indispensável. Ai veio a necessidade de moquear, escaldar para fermentar os alimentos. Nesse período, a imaginação em preparar alimentos que durassem mais tempo em boas condições para o consumo foi uma grande alternativa para manter os alimentos guardados por muito tempo. Foi aí que começaram a enterrar os alimentos em locais estratégicos, principalmente quando estavam se deslocando de um lugar para outro em longas viagens que duravam dias e até meses, isso não era sacrifício e nem lamento, pois remar e migrar o tempo todo era uma grande vantagem para qualquer homem Mura.
É claro que os novos hábitos não surgiram simplesmente do nada. Com certeza, os Mura que eram meus antepassados se adaptaram aos novos modos a partir da convivência com outros povos indígenas. Aprenderam novos hábitos por meio da relação e convivência no dia a dia, num processo longo.
O período que mais fortaleceu o habito de plantar, colher, construir e habitar em terra firme foi durante a Cabanagem, um pouco depois do genocídio que o Estado brasileiro realizou contra nós, como vemos no caso dos Autos da Devassa (Sec. XVII).
Nessa época, a melhor tática de guerra eram as trincheiras de paracuúbas fincadas nos leitos dos rios. As trincheiras tinham o objetivo de impedir a entrada das jangadas e embarcações com soldados que viam atacar as aldeias Mura. Em diversas vezes que o povo Mura resistiu e lutou não apenas para proteger o território, mas também por tudo o que ali estava, inclusive suas plantações.
Durante a Cabanagem, o contato e as alianças com outros povos foram essenciais para a resistência e o povo Mura fez aliança até mesmo com os quilombolas que buscavam refúgios. Com isso, foram aprendendo várias formas de lidar a agricultura. Nesse tempo, os Mura foram se tornando mais sedentários por causa da necessidade de cultivar e colher seus próprios alimentos e o habito de criar e domesticar animais também se tornou uma alternativa alimentar. Com isso vieram as roças com diversas plantações.
Um outro momento importante que mudou a história da soberania alimentar do povo Mura foi um período bem recente que chamamos de “o período da borracha”, durante a convivência com alguns nordestinos que migraram para a região atraídos pelo auto lucro da borracha. Nesta época, os Mura aprenderam a construir os paióis. O paiol era uma casa separada da casa de moradia onde toda a colheita e produção ficava armazenada: eles iam retirando os alimentos de acordo com o consumo e a necessidade do dia a dia. Ou seja, o paiol era nada mais ou nada menos que o galpão de armazenamento de alimentos. Atualmente é raro encontrar um paiol em alguma aldeia Mura.
Em alguns casos o uso do paiol era coletivo, e em outros casos cada família tinha o seu. Os antigos contam que ninguém podia deixar o paiol ficar vazio, pois era obrigação e dever de todos manter o paiol sempre abastecido com vários itens propícios à alimentação. Entre os itens era possível encontrar, farinha, beiju, farinha de tapioca, piracuí, carne e peixe moqueado, carne salgada com pimenta do reino, milho, jerimum, abobora, banana, tucumã uixí, piquiá, castanha e vários outros tipos de alimentos.
O primeiro trabalho no inicio de cada ano era colher as plantações, caçar, pescar e colher frutos para abastecer o paiol, depois que o paiol estava abastecido é que os homens e mulheres Mura iam cuidar de outros coisas, fazer novos roçados, construir casas, casco, remo e outras atividades.
O mais importante era estar sempre com o paiol abastecido, me contam os avós, pois isso significava muito na época.
Se o paiol tivesse abastecido eles podiam dizer que estavam preparados para o que der vier, dizem. Isso facilitava até mesmo a resistência contra ataques dos não-índios e outros inimigos. Ter alimento o suficiente também era a garantia de resistir a pragas e doenças que muitas vezes atingiam as aldeias do povo Mura. Um dos exemplos foi o surto de febre amarela que tomou nossa região. Conhecida pelos Mura como “sezão”, essa doença abalou as aldeias dos Mura e outros povos indígenas. No período da doença quem estava com seus paióis abastecido conseguia superar rapidamente com seus familiares, pois todos conseguiam se manter isolados evitando o aumento do risco de contágio.
A soberania alimentar sempre foi produto dos jeitos de viver e se organizar dos povos indígenas. Com o povo Mura não é diferente e é claro que atualmente se faz necessário repensar como os Mura estão organizados sobre a segurança alimentar (no mínimo) de suas famílias e aldeias e para lutar por condições para sua soberania alimentar.
Vários fatores nos levam a refletir sobre as mudanças no costume de garantir uma boa alimentação sem a influência ou dependência do capitalismo. Já ficou claro que um dos fatores que levaram ao enfraquecimento da soberania alimentar foi a entrada do capitalismo nas aldeias, enquanto o único poder de aquisição de alimentos era a produção ou a troca de itens todo o povo de uma aldeia sempre tinham o necessário em casa. Quando nossa organização social sofre, nossos jeitos de pescar, colher, plantar, caçar e distribuir os produtos são afetados e passam a ser intermediadas por dinheiro as repartições de produtos alimentícios e mesmo de roçados, pois fomos espremidos em várias terras muito pequenas nas demarcações.
A educação indígena tradicional que era repassada de pai para filho foi enfraquecendo e isso também contribuiu para o enfraquecimento na cultura de produzir os próprios alimentos e para a perda de várias técnicas de moradia, perambulação pelos rios, sacados, lagos, paranás etc.
Antigamente, quando um jovem se casava, no primeiro ano de seu casamento ele tinha que ter seu próprio roçado, ter seu casco e utensílios de caça e pesca. No inicio, os familiares do jovem casal ajudavam eles por meio de “puxirum ou ajurí”, ou seja: todos da aldeia se reuniam para ajudar voluntariamente na construção do roçado, da casa e às vezes até na hora e colher as plantações esse trabalho não era uma prestação de favor, mas era considerado uma troca de dias trabalhados, ou seja um ajudava o outro sem cobrar o pagamento em dinheiro.
Se em uma aldeia tivessem dez famílias, todas as dez ajudavam os noivos. Cada dia era o dia do trabalho de um membro da aldeia e, no final, todos os dez tinham seus roçados e suas plantações. Nunca faltava comida, todos tinham o que comer. Quando começou o pagamento de diárias por serviços a terceiros, tudo ficou diferente, pois aquele que tinha ou tem condições de pagar o dia trabalhado do outro não precisa ajudar o outro a fazer seu roçado. Infelizmente quem cobra pelo dia trabalhado não tem tempo para plantar o seu próprio roçado, acaba dependendo de outra pessoa para sobreviver e sustentar sua família. Nem sempre quem vive de diárias consegue levar para sua casa uma boa alimentação e acaba comprando comida industrializada, que nos deixa doentes.
A grande diferença de quem planta é justamente porque tem sempre a esperança de colher o que plantou, ou seja tem uma garantia de que na hora que precisar vai sempre ter o necessário ou o suficiente para sua família. Mas, infelizmente, de pouco menos de duas décadas para cá, o costume de trocas de diárias por meio dos “puxirum ou ajuri” foi sendo substituído por pagamento em dinheiro. Tradicionalmente, isso teve um impacto negativo na sociedade Mura, dando início a um período de desigualdade social, gerando falta de alimentos para todos, mesmo para quem tinha recursos financeiros.
Atualmente, podemos observar que enquanto uns têm o suficiente para sua família, outros não conseguem nem o básico, e isso é totalmente contrário aos jeitos e saberes Mura. Tudo isso contribui para a prática de vários fatores ilegais dentro das comunidades indígenas, como alcoolismo, tráfico de drogas, desmatamento, pesca e caça predatórias, furtos e, infelizmente, assassinatos. Com a divisão de aquisição de alimentos, enfraqueceu-se o convívio coletivo dentro da aldeia, iniciando-se uma corrida gananciosa ao poder e cargos prioritários com renumerações apenas para algumas pessoas que conseguiram ter uma influencia política maior, ou por que tiveram a oportunidade de estudar.
Outras pessoas dependem totalmente dos auxílios e benefícios sociais do governo, como Bolsa Família e aposentadorias de produtor rural. As pessoas que dependem desses auxílios conseguem sobrever com o básico, porém poucos são aqueles que plantam ou criam animais domésticos. Depender de auxílios e benefícios do governo é fato que causa preocupação quanto o autossustento dos povos indígenas, pois uma vez que estes deixam de garantir seu próprio sustento, por meio de costumes tradicionais, ficam a mercê das políticas e programas sociais dos governo, pondo em risco a soberania alimentar dos povos indígenas.
Imagine se o governo entra em colapso e não consiga mais manter em dias os programas sociais como vão ficar quem depende apenas dos benefícios sociais do governo? Esse é um tema que precisa ser discutido entre a sociedade mura, refletir sobre os impactos que isto está causando e causará futuramente.
Apesar dos impactos negativos ocorridos durante todo o período de contato com a sociedade envolvente, que se refletem na mudança cultural, abandono de costumes tradicionais e perda de saberes que eram a garantia de nossa soberania, os territórios habitados e protegidos pelo povo Mura ainda têm uma grande quantidade de farturas naturais e cultivadas pelas famílias que ainda têm a tradição de cultivar e produzir seu próprio alimento.
Atualmente os Mura de Careiro da Várzea estão tentando organizar a cadeia de produção em seu território, abrangendo as áreas de várzea que são conhecidas por sua grande potencialidade de pesca, como são exemplos as duas aldeias localizadas em áreas de várzea que são elas aldeia Jacaré e Boa Vista. Estas duas grandes áreas estão sendo preparadas para organizar o manejo de pesca, seu grande objetivo garantir a segurança alimentar do povo mura, mantendo seus costumes e tradições sobre seus auto sustento por meio da pesca na região.
Fortalecer a soberania alimentar
As aldeias que ficam localizadas nas TIs Gavião, Poncciano, Sissayma, Apipica e Bom Futuro estão sendo preparadas para o aumento da produção da agricultura familiar, turismo ecológico de base comunitária, expansão da produção de artesanatos, manejo e extração de madeira sustentável. Sabemos que há um longo caminho a ser percorrido, mas os Mura já estão exercendo essas práticas em seu dia a dia.
O grande objetivo dos Mura de Careiro da Várzea é fortalecer sua soberania alimentar reconhecendo sua condição e desafios atuais, e reconhecendo que não basta produzir alimentos apenas para sobreviver, é preciso ter o suficiente para super-viver e retomar as condições sociais e políticas que garantem a distribuição dos saberes, das ferramentas, dos jeitos de cultivar e coletar.
Para sobreviver é ter todos os dias o básico para o sustento diário e isso põe em risco a manutenção física e cultural do homem Mura diante de um colapso ou uma pandemia como o que está acontecendo com o novo Coronavirus (COVID-19), que requer isolamento total e que o povo Mura fique em quarentena. Nesse período ficou claro e visível que quem tem a possibilidade de ter sua independência alimentar e autossustentabilidade não sofreu tantos impactos para se manter imune da doença e manter o sustento necessário de sua família sem ter que mendigar ou esperar uma ajuda básica do governo, pois todos os Mura se isolaram em suas aldeias durante a quarentena e bloqueamos a entrada e saída de pessoas de fora das aldeias.
Na quarentena ficou mais do que claro que nossos antepassados é que sempre foram mais evoluídos do que os colonizadores. Não é que nosso povo sabia fugir das epidemias: nós sempre soubemos viver de um jeito, relacionar-se de u mjeito com os ambientes e os seres, que as epidemias nem apareciam. Nunca morávamos muito tempo no mesmo lugar. Nunca morávamos todos juntos. Nunca desmatamos e nem poluímos: sempre cuidamos de nossos corpos e aldeias e roçados seguindo as regras que nossos pajés conheciam.
Mas durante a quarentena a situação desafiadora atualmente vivida pelo povo Mura ficou ainda mais clara. Já não vivemos como gostaríamos ou deveríamos há séculos e percebemos isso mais drasticamente quando, isolados na quarentena, notamos que não produzimos mais de maneira soberana nossos próprios alimentos na totalidade. Algumas famílias mais, outras menos, e a desigualdade introduzida pelos salários e cargos, aliada à divisão criada pelos não-índios ao demarcar terras minúsculas ,separadas, e em não demarcar todas, fez com que tudo isso ficasse mais claro.
Hoje sabemos que o essencial que objetivamos para todas as famílias Mura é “super viver” para definitivamente garantir a manutenção da soberania alimentar, não se pode afirmar que um povo tem seu autogoverno apenas pela garantia de seus direitos ao território e sua proteção. Ter autonomia está totalmente ligado a autossustentabilidade, que por sua vez é constituída por partículas encontradas no território indígena como caça, pesca, acesso aos recursos naturais sem que estes seja escassos e limitados.
Autogoverno significa mesa farta e de produtos feitos, plantados e colhidos por nós mesmos.
Em todo o planeta já ficou provado que a maior arma de destruição em massa de toda e qualquer sociedade é a fome. A tática mais eficaz para combater esta arma destruidora é a união de todos na produção coletiva de seus próprios alimentos pois se todos produzirem seus alimentos, o risco de ser afetado pela fome ou proliferação de qualquer doença durante uma epidemia ou até mesmo de uma pandemia é muito pequena.
Enquanto nos noticiários de TV mostravam tristes realidades de famílias e comunidades inteiras passando necessidades sem ter o que comer durante a quarentena causada pelo COVID-19, o povo Mura, apesar dos desafios que mostrei, sempre teve muita fartura em suas aldeias peixes e caças extraídas de seus territórios. Era comum ver as famílias mura, mesmo em isolamento social da quarentena, coletando frutos nas matas, colhendo seus roçados, cultivando suas roças, hortas, criações de animais domésticos todos esses aspectos nos deixam felizes em saber que ainda temos autonomia sobre a nossa autossustentabilidade. Vemos isso como um ponto muito positivo, mesmo assim ainda se faz necessário aprofundar a soberania alimentar do povo Mura e dos povos indígenas como um todo.
Mas os desafios são grandes. Em meio a tantas turbulências, presenciamos os órgãos de governo entrarem diversas vezes em colapso sem saber o que fazer diante de uma grave pandemia que abalou o mundo e, em algumas regiões, atingiram diretamente alguns povos indígenas, principalmente aqueles que dependeram totalmente dos auxílios emergenciais que causavam filas e muita aglomeração facilitando o contágio de muitos parentes que levaram direto para suas aldeias a contaminação em massa. Infelizmente os órgãos como SESAI, FUNAI e outros não atentam que saúde de qualidade é ter uma boa alimentação, ter fartura significa ter saúde, ser imune as doenças significa ter a garantia diária da soberania alimentar.
O governo gasta bilhões com a saúde indígena com o objetivo de salvar vidas indígenas, mas o que vemos é uma realidade contraditória porque investe mal: investe em dar remédio para doenças que são fruto de problemas mais estruturais. Se queremos de fato garantir a sobrevivência física e cultural dos povos indígenas com uma saúde de qualidade, penso que se faz necessário repensar as políticas publicas sobre saúde e educação que atualmente estão sendo oferecidas aos povos indígenas.
Se faz necessário e urgente retomar a garantia e proteção dos territórios indígenas, criar ou reativar programas de incentivos a agricultura familiar sustentável como o que já existe até em lei (caso da Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial Indígena, PNGATI), que o governo mesmo se recusa a cumprir.
Gerar riqueza é garantir que todos possam ter mesa farta por meio do esforço coletivo e socialmente organizado próprio de cada povo, tendo como incentivos acesso a recursos que não encontramos nas aldeias, precisamos valorizar os conhecimentos tradicionais dos povos indígenas sobre o uso sustentável da terra de maneira que possa garantir a Soberania Alimentar dos povos indígenas refletindo os dias de ontem, a realidade atual e como será essa realidade no futuro.
Esse é o remédio: o isolamento com qualidade, o isolamento político, isolamento das ameaças, pressões, chantagens dos não-índios, que criam condições de fome para oferecer programas sociais como moeda de troca para nos fazer reféns e, assim, nos tornar dependentes e doentes, aglomerados em grandes aldeias com pouca caça e peixe, fazendo roçados nas capoeiras, sedentarizados.
Essa é a pior pandemia e o remédio para ela é fortalecer a autodeterminação dos povos indígenas para continuarmos lutando pela nossa soberania alimentar. A pandemia de Coronavírus deixou isso mais claro para meu povo: é preciso fortalecer as Trincheiras, como nosso Protocolo de Consulta, e assegurar nossa soberania territorial, cultural, política e, assim, alimentar.
Sobre o autor
Meu nome é Herton Mura. Sou Mura com muito orgulho, filho da aldeia Iguapenú Município de Autazes, Amazonas.
Por ser o filho primogênito minha mãe preferiu me dar à luz da vida na cidade de Manaus onde nasci, mas passei toda minha infância na minha aldeia de origem próximo aos meus familiares maternos e paternos. Ainda criança eu tive muito contato com meu tio avô Arnaldo que foi tuxaua na aldeia Guapenú e do qual eu tenho boas lembranças e trago sempre como boa referência de liderança indígena. Aos doze anos de idade mudei para a aldeia Paracuúba, na qual eu tive o meu primeiro cargo de liderança indígena.
Aos 18 anos de idade, em 2006, me tornei professor indígena na aldeia Jabuti, município de Careiro da Várzea, onde entrei no movimento indígena como militante da educação escolar indígena.
Ajudei a criar a primeira organização de professores indígenas em Careiro da Várzea no ano de 2008. Em 2010 fui transferido para a aldeia Santo Antônio onde permaneço até os dias atuais.
Em 2012 a organização que era somente de professores indígenas passou a seguir um patamar maior, passou a ser Organização de Lideranças Indígenas Mura de Careiro da Várzea – OLIMCV. Fui coordenador de educação escolar indígena na Secretaria de Educação SEMED de Careiro da Várzea nos anos de 2013 a 2015 e implantei no sistema de educação o Programa de Educação Escolar Indígena de Educação, assumir várias coordenações de educação dentro da SEMED.
Fui membro da comissão que criou o Fórum de Educação Escolar Indígena do Amazonas – FOREEIA (2014). Em 2017 fui eleito presidente do Conselho Municipal de Educação – CME no município. Em 2018 tomei posse do cargo de voluntário de coordenador regional de Elaboração do Protocolo de Consulta.
Em 2019 mesmo assumindo um cargo comissionado no governo do estado do Amazonas ajudei a concluir com muita eficiência e responsabilidade o protocolo de consulta do meu povo Mura. Atualmente permaneço no Governo e continuo a disposição do meu povo e dos povos indígenas do Amazonas e do Brasil. KueKuatú reté!!