Ministério da Defesa recebeu R$520 milhões do fundo do acordo da Lava Jato para combater desmatamento na Amazônia, enquanto Ibama ficou com apenas R$50 milhões.
Ministério da Defesa recebeu R$520 milhões do fundo do acordo da Lava Jato para combater desmatamento na Amazônia, enquanto Ibama ficou com apenas R$50 milhões. Alertas de desmatamento já são 20% maiores em 2020, em comparação com ano passado. Número de queimadas em junho aponta para nova alta recorde. Foto acima: soldado do exército em operação realizada em Rondônia no dia 11 de maio (crédito: Flickr Verde Brasil)
Por Hyury Potter, em parceria com o The Intercept Brasil
A militarização do combate ao desmatamento na Amazônia brasileira com operações de Garantia de Lei e da Ordem (GLO) não está evitando o aumento de queimadas e desmatamento na região. Mas isso não parece abalar o ânimo do governo Bolsonaro em gastar dinheiro com as Forças Armadas.
Do fundo de R$1 bilhão para reduzir desmatamento na Amazônia, criado após acordo da Lava Jato, mais da metade está separado para despesas do Ministério da Defesa em 2020. O Ibama, principal órgão ambiental fiscalizador, ficou com um valor dez vezes menor: R$50 milhões.
Para pesquisadores e ambientalistas, a opção do governo federal por militares fiscalizando estradas e rios sai mais cara do que estratégias de defesa da floresta que deram resultados em um passado recente, com uso de inteligência na detecção por satélite de focos de desmatamento e queimadas e posterior ação de órgãos ambientais de fiscalização.
Com previsão de gastos de R$60 milhões por mês, orçamento médio de um ano do setor de fiscalização do Ibama, a Amazônia sob GLO viu um mês de junho com maior número de queimadas desde 2007. Pesquisadores apontam que o Prodes (sistema de monitoramento por satélites que analisa o corte raso na Amazônia entre agosto e julho do ano seguinte) deve apontar um acúmulo de área desmatada ainda maior do que 2019. Enquanto isso, o Ibama tem problemas com falta de pessoal e, em 2020, caminha para aplicar o menor número de multas em mais de 10 anos.
A Amazônia enfrenta outro desafio com a pandemia de covid-19. Do fundo criado com dinheiro da Petrobras em acordo da operação Lava Jato, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes determinou que R$630 milhões fossem utilizados pela União contra o desmatamento na Amazônia e outros R$430 milhões para ações de prevenção e fiscalização ambiental de órgãos estaduais.
No entanto, quatro estados pediram para usar a verba na saúde por causa da pandemia. O Acre conseguiu decisão favorável ainda em 7 de abril, e no dia 13 de maio foi a vez dos governos de Maranhão, Mato Grosso e Tocantins pedirem pela realocação dos recursos. Assim ações contra desmatamento perderam R$186 milhões em pouco mais de um mês.
Dias depois, em 29 de maio, o vice-presidente Hamilton Mourão ignorou a perda orçamentária e anunciou em uma cartilha de 19 páginas que usaria R$1,06 bilhão do acordo para implementar o seu “Plano Nacional para Controle do Desmatamento Ilegal e Recuperação da Vegetação Nativa 2020-2023”. O documento é considerado um rascunho de continuação do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), criado em 2004 e que reduziu o desmatamento na Amazônia apostando em monitoramento e fiscalização de crimes ambientais, fomento a atividades produtivas e ordenamento fundiário.
“O PPCDAm foi marcado por eixos bem definidos de atuação no combate ao desmatamento, o que não vemos agora. Mesmo o combate ao desmatamento parece ser feito de uma forma pouco eficaz. Por exemplo, o Exército tem feito fiscalização em estradas, algo que o Ibama não faz há anos, ao invés de usar a inteligência de monitoramento por satélite de desmatamento que já existe no país”, afirma Suely Araújo, ex-presidente do Ibama e especialista em políticas públicas do Observatório do Clima.
Recheado de militares e com Mourão como chefe, o Conselho Nacional da Amazônia anunciou em maio a Operação Verde Brasil 2, que mobilizou mais de 3,8 mil profissionais, incluindo servidores do Ibama e órgãos ambientais estaduais, únicos aptos a lavrar multa ambiental. Mas a estratégia militar não parece ter dado resultados práticos, reportagem do Estadão mostrou que um mês depois o governo federal utilizou autuações e apreensões de órgãos ambientais estaduais e do Ibama que não tinham relação com a GLO para inflar resultados.
A falta de resultados gerou um convite do Senado para Mourão explicar na próxima terça-feira, 14, a estratégia de combate ao desmatamento adotada pelo Conselho Nacional da Amazônia.
Nos primeiros seis meses de 2020, o Ibama registrou apenas 1187 autuações nos estados da Amazônia. Parece pouco provável que chegue às 4834 autuações de 2019, que já representou o menor número nos últimos dez anos. Além disso, boa parte dessas multas viram fumaça e não são pagas por atrasos no processo de cobrança.
Sob condição de anonimato, servidores do órgão criticam mudanças feitas em setembro do ano passado no sistema de registro de multas ambientais. Desde então, há inconsistências no conteúdo publicado pelo Ibama em sua plataforma de dados abertos, como atrasos na atualização da localização das autuações e erros no cadastro por bioma onde a multa foi lavrada.
A falta de servidores ajuda a entender essa queda. Em 2013, o Ibama tinha cerca de 4,5 mil servidores efetivos, sendo 1350 no setor de fiscalização ambiental, mas atualmente tem pouco mais de 3 mil efetivos, destes 750 são fiscais. Não há previsão de concurso para a pasta em 2020, apenas de contratação de 1,5 mil funcionários temporários para ajudar no combate a incêndios no período de seca na região, de junho a novembro.
Além dos R$50 milhões do acordo da Lava Jato, o Ibama tem em caixa em 2020 outros R$104 milhões do orçamento da União aprovado pelo Congresso para combater danos ambientais em todo país: sendo R$ 66 milhões para fiscalizar desmatamento e outros R$38 milhões contra queimadas. O valor é suficiente para realizar o trabalho de fiscalização, explica Suely Araújo, mas ela ressalta que a verba destinada às operações militares seria mais útil com investimentos para melhorar a estrutura e repor o déficit servidores no Ibama
“O governo afirma que gasta R$ 60 milhões por mês com GLO, em dois meses é possível pagar o salário de 1.000 novos servidores do Ibama por um ano inteiro. É preciso lembrar que o atual governo critica a fiscalização ambiental desde a eleição, então esses altos gastos com operações das Forças Armadas são para tentar solucionar um problema que o próprio governo ajudou a intensificar”, diz Suely Araújo, do Observatório do Clima.
Dados não são divulgados com transparência
Não há detalhamento nos canais de acompanhamento de orçamento do governo sobre as despesas realizadas pelas Forças Armadas na GLO. Mas pelo orçamento atualizado no final de maio é possível verificar que pelo menos R$ 520 milhões do fundo criado para ações de desmatamento na Amazônia são para o Ministério da Defesa. Em 21 de maio, uma portaria reserva R$112 milhões daquele montante para o Comando da Marinha utilizar até dezembro de 2020 — mais do que o dobro do que o Ibama recebeu do mesmo fundo.
Na segunda-feira, 6 de julho, o Ministério Público Federal (MPF) no Distrito Federal apresentou uma ação de improbidade administrativa contra o ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, pedindo o seu afastamento do cargo por promover a “desestruturação de políticas ambientais”. Assinado por 12 procuradores da República, o documento cita também a falta de eficiência e os altos valores gastos pelos governo para enfrentar o aumento do desmatamento na Amazônia. Em dois meses, lembram os procuradores, a operação Verde Brasil 1, realizada em 2019, gastou R$124 milhões, valor superior ao orçamento do Ibama em um ano para ações de controle e monitoramento ambiental.
“Em que pese a relevância da mobilização de instituições diversas na temática, tal medida tem se demonstrado insuficiente ou metodologicamente inadequada na contenção de crimes contra o meio ambiente e de ameaças às populações amazônicas, além de absurdamente mais dispendiosa que o emprego de forças estruturadas e experts dos agentes do Ibama conforme previsão legal”, expõe a denúncia do MPF.
A reportagem do Infoamazonia questionou as assessorias de imprensa da Vice-Presidência da República e do Ministério da Defesa sobre a ausência de informações de detalhamento das despesas das Forças Armadas com ações na Amazônia, e também como foi definida a estratégia para utilizar o orçamento de R$520 milhões. Não houve retorno dos dois órgãos federais.
Falta continuidade na política ambiental brasileira
A redução do desmatamento provocada pelas ações do PPCDAm começou a arrefecer em 2012 com a aprovação do novo Código Florestal, que permitiu uma anistia a quem tinha desmatado até 2008, lembra o doutor em geografia pela Universidade da Califórnia Santa Bárbara e pesquisador do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), Carlos Souza Jr.
“O novo Código Florestal abriu um precedente ruim e houve um aumento do desmatamento nos anos seguintes. Mas houve um salto ainda maior depois de 2018”, diz Souza Jr, que estuda dados sobre desmatamento na Amazônia desde 2008.
Em 2019 a Amazônia teve mais de 10 mil km² de floresta desmatada, um recorde desde 2008. Dados preliminares do Prodes analisados até o momento pelo Imazon indicam que o desmatamento em 2020 deve ser ainda maior. Para piorar esse cenário, um estudo recente do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) revelou que há 4,5 mil km² de área desmatada desde o final de 2019 que deve ser queimada no atual período de seca da região. Em junho a Amazônia registrou 2.248 focos de queimadas, maior número desde 2007.
Essa perspectiva de piora contrasta com resultados do PPCDAm que ocorreram na década passada. Carlos Souza Jr. diz que ações de incentivo a redução de desmatamento e de emissões gases do efeito estufa funcionaram por alguns anos, mas não houve continuidade.
“O governo precisa voltar a incentivar a redução de desmatamento, inclusive premiando municípios. Isso já foi feito em um passado recente. Foi um período muito importante e que achei que não haveria mais retrocesso como vemos hoje. Isso mostra que as políticas públicas ambientais são frágeis e precisam ser contínuas, independente de governos”, aponta Carlos Souza Jr, do Imazon.
Vale lembrar que o impacto negativo da falta de ações concretas e eficazes contra o desmatamento na Amazônia pelo governo brasileiro é tão grande no exterior que ameaça o acordo de livre-comércio entre Mercosul e União Europeia, anunciado em 2019, mas que ainda precisa ser ratificado. Um buraco difícil de sair enquanto tivermos um ministro como Salles, que considera que é preciso aproveitar o foco na pandemia de covid-19 para “passar a boiada” sobre a legislação ambiental, como disse na reunião ministerial de 22 de abril.
As confusões criadas pelo governo Bolsonaro, especialmente por Salles, resultaram na suspensão do Fundo Amazônia em junho do ano passado. Desde então, nenhum novo projeto é aprovado, apenas ações que já estavam em curso continuam. O BNDES, gestor do fundo, tem atualmente R$1,5 bilhão parados porque não há comitê para aprovar novos projetos.
“Essa paralisação do fundo vai ter um impacto direto no desmatamento. Se não agora, porque ainda há projetos em andamento, isso ocorrerá em um futuro próximo”, explica Alessandra Cardoso, economista e assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos, o Inesc.
A substituição de Salles por Mourão na liderança das ações contra o desmatamento da Amazônia deveria ser parte de uma estratégia para melhorar a tão chamuscada imagem do Brasil no exterior. Mas, ao menos por enquanto, a única coisa diferença com relação ao desastre ambiental que a Amazônia registrou no ano passado é o orçamento generoso para as Forças Armadas