Um de cada dois episódios de violência contra defensores ambientais foi alertado previamente às autoridades que, apesar disso, não agiram a tempo.
Um de cada dois episódios de violência contra defensores da floresta, água e terra na América Latina foi alertado previamente às autoridades que, apesar disso, não agiram a tempo. Nem sequer quando a Corte e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos determinaram que os governos os protegessem. Mesmo avisados dos riscos, dez países latino-americanos perderam 49 lideranças ambientais no último ano e, hoje, permitem que a intimidação continue.
Foto de abertura: Os indígenas Tolupan de San Francisco de Locomapa, em Honduras, são uma das comunidades que apesar de terem medidas de precaução da OEA continuam a ser atacadas. Foto: Martín Cálix.
Andrés Bermúdez Liévano
Centro Latino-Americano de Pesquisa Jornalística (CLIP)
25 de fevereiro de 2019, José Salomón Matute, de 73 anos, e seu filho Juan Samael, de 29 anos, saíram cedo de sua comunidade em San Francisco de Locomapa, norte de Honduras, para trabalhar em suas plantações de feijão. Dois desconhecidos se aproximaram e atiraram neles. Eles morreram no mesmo dia.
Os dois eram indígenas Tolupanes e lutavam, há seis anos, para proteger as florestas de Yoro de criminosos que cobiçavam sua madeira e suas terras. Outros três Tolupanes de Locomapa foram assassinados em agosto de 2013. A comunidade Tolupan faz parte do grupo Movimento Amplio pela Dignidade e pela Justiça (MADJ), cujos membros, por terem se oposto a esses interesses criminosos, têm sido vítimas de múltiplas ameaças e assédios.
A constante perseguição levou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em dezembro de 2013, a exigir ao Estado hondurenho que fossem adotadas medidas urgentes para “preservar a vida e a integridade pessoal” de 38 membros Tolupanes integrantes do MADJ, conforme consta na reportagem de Vienna Hernández no “Tierra de Resistentes”, uma investigação jornalística colaborativa liderada pelo Conselho de Redação, Centro Latino-Americano de Pesquisa Jornalística (CLIP) e 19 meios de comunicação em dez países da região.
Dentre essas lideranças indígenas ameaçadas estava Salomón Matute.
Os acontecimentos posteriores, no entanto, demonstraram que pouco do que foi recomendado pela CIDH nessas medidas cautelares foi cumprido.
“A Comissão não tem informações concretas indicando que, no momento em que foi perpetrado o assassinato, Salomón Matute já tinha medidas implantadas pelo Estado para sua proteção”.
Essa foi uma das conclusões mais duras do órgão que, junto com a Corte, constituem o Sistema Interamericano de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA).
Nessa mesma repreensão pública, que ocorreu uma semana após o assassinato dos Matute, a CIDH listou várias falhas que Honduras teve na proteção dos Tolupanes. A entidade informou que, em 2017, tinha solicitado à Direção Geral do Sistema de Proteção Hondurenho que garantisse medidas de proteção para as lideranças e, seis meses depois, elas ainda não tinham sido efetivadas. Acrescentou que não houve nenhum avanço, apesar de, em 2018, a Comissão ter insistido duas vezes na urgência da resolução dessa situação, durante reuniões em Bogotá e em Boulder, Estados Unidos.
“Após a concessão de medidas cautelares e o Estado tendo conhecimento da existência de uma situação de risco, portanto, esse Estado tem um dever especial de proteção”, advertiu.
O que aconteceu com os Matute não é uma exceção. Muito pelo contrário, está acontecendo com frequência. A base de dados criada pelo projeto “Tierra de Resistentes” – que documentou 2.367 episódios de violência em dez países ao longo da última década – demonstra que esses governos latino-americanos não conseguiram proteger adequadamente seus defensores do meio ambiente, mesmo nos casos em que, previamente, tinham sido alertados sobre o risco que essas pessoas estavam correndo nos organismos internacionais.
Estas são tragédias anunciadas que não param. Os Estados são frequentemente advertidos do perigo, até mesmo pelo Sistema Interamericano, o órgão máximo para a proteção dos direitos humanos na região.
Os avisos foram inúteis
As pesquisas do “Tierra de Resistentes” em dez países da região demonstraram que defender as florestas, montanhas e rios da América Latina é uma atividade perigosa.
Há seis países que aparecem na vergonhosa 10ª posição dos países mais hostis para as lideranças e as comunidades que defendem o meio ambiente e suas terras ancestrais. Essa lista foi incluída por Michel Forst – ex-relator especial dos defensores de direitos humanos – no relatório que ele apresentou às Nações Unidas sobre o tema do meio ambiente em 2016.
Embora as estatísticas sejam surpreendentes, os episódios de violência ou sua gravidade poderiam ser menos frequentes se os Estados levassem em consideração os alertas emitidos. No entanto, os Estados não recebem as denúncias com a devida seriedade.
Em nossa pesquisa, encontramos, pelo menos, 2.136 casos de violência contra lideranças e 234 casos contra comunidades ou organizações que defendem o meio ambiente ou o território. Em, pelo menos, 1.327 desses casos (ou 56% do total dos que conseguimos documentar), as próprias vítimas, as comunidades às quais pertencem ou as organizações que trabalham com eles, denunciaram os ataques às autoridades. Suas denúncias deviam ter sido atendidas pelo Estado pelo risco que elas estavam correndo e pela necessidade de protegê-las.
Vítimas, comunidades e suas organizações apresentaram seus casos perante instituições nacionais, como promotorias de direitos humanos, ouvidorias ou forças públicas, mas também perante organismos internacionais, tais como a Comissão e a Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA.
Tragicamente, apesar da sabedoria popular de que guerra avisada não mata soldado, a violência continuou e aumentou. Em cinco países – Brasil, Colômbia, Honduras, México e Venezuela – encontramos casos que revelam que os Estados não estão fazendo o suficiente para proteger esses cidadãos, cujo único crime foi zelar pelo patrimônio natural e a propriedade coletiva da terra em seus países.
Dar um rosto a essas informações, que surgiram de nossa base de dados, mostra que nem sequer a intervenção das mais importantes instâncias de direitos humanos da região tem conseguido levar os Estados a evitarem algumas mortes. Somente no último ano, 49 defensores do meio ambiente e das terras foram assassinados nos dez países que analisamos.
Além disso, mostra também que – embora a CIDH normalmente não os classifique como defensores do meio ambiente, mas sim como defensores de direitos humanos – eles constituem justamente o grupo de lideranças cívicas que pretendem proteger o novo Acordo de Escazú, negociado pelos países da América Latina e do Caribe no contexto do sistema das Nações Unidas. Este inovador tratado regional sobre questões ambientais, que até março tinha sido assinado por 22 países e faltando apenas três ratificações para entrar em vigor, os obrigaria a tomar medidas mais robustas para protegê-las.
Três anos pedindo socorro a gritos
Em alguns casos, a violência foi contra lideranças que tinham medidas cautelares da Comissão Interamericana e, mesmo assim, continuavam pedindo ajuda por causa das constantes ameaças.
Esse é o caso de Juan Ontiveros Ramos, um indígena Rarámuri da Serra Tarahumara no norte do México, que foi assassinado em 2017. Em 31 de janeiro daquele ano, homens armados o espancaram e o levaram de sua casa, na comunidade de Choréachi. Um dia depois, seu corpo foi encontrado.
Duas semanas antes, um desconhecido tinha assassinado Isidro Baldenegro, outra liderança Rarámuri bastante conhecida, que tinha liderado diferentes caravanas indígenas para exigir que as autoridades parassem a derrubada de árvores na sua comunidade, chamada Coloradas de la Virgen. Ele tinha recebido o Prêmio Goldman, o mais prestigiado prêmio para defensores do meio ambiente do mundo, em 2005.
Os dois eram reconhecidas lideranças dos Rarámuri, que – juntamente com os Ódami – protegem uma das áreas de floresta mais valiosas do México. Há mais de uma década, eles enfrentam, sozinhos, o tráfico de drogas, os comerciantes ilegais de madeira e os líderes políticos locais, diante da indiferença do governo, como disseram Thelma Gómez Durán e Patricia Mayorga em sua investigação sobre a Serra Tarahumara, publicada na primeira parte da “Tierra de Resistentes”, em 2019.
Ontiveros tinha se reunido com funcionários da Unidade de Direitos Humanos da Secretaria de Governo do Governo Federal do México e com integrantes da Aliança Sierra Madre e do Centro de Direitos Humanos das Mulheres, duas organizações que apoiam sua comunidade, dez dias antes de ser morto. Nessa reunião, foi discutida a precária situação de segurança na área, logo após a morte de Baldenegro.
A comunidade indígena da Serra Tarahumara levou seu caso à CIDH em fevereiro de 2014, meses após Jaime Zubias Ceballos e Socorro Ayala Ramos terem sido assassinados em episódios separados. Oito meses depois, em outubro de 2014, a CIDH pediu ao governo mexicano que protegesse Prudencio Ramos e Angela Ayala, duas pessoas da comunidade de Choréachi que tinham sido ameaçadas.
Ontiveros tinha apresentado pessoalmente seu depoimento em um vídeo à CIDH em uma reunião de implantação de medidas cautelares em outubro de 2015, conforme denunciou a Rede TDT, que reúne as organizações mexicanas de direitos humanos. Em 28 de outubro de 2016, finalmente a CIDH estendeu estas medidas coletivas para toda a comunidade.
Michel Forst, o relator especial da ONU que acabara de fazer uma visita de inspeção ao México, emitiu uma advertência – quando Baldenegro já tinha sido assassinado, mas ainda não Ontiveros – sobre a vulnerabilidade desse povo indígena e “os riscos causados pelo crime organizado e a falta de proteção por parte das autoridades“.
“Faço um apelo às autoridades federais e estaduais para que garantam que todos os crimes contra os defensores de direitos humanos dos povos da Serra Tarahumara sejam devidamente investigados”, disse Forst publicamente.
No entanto, Ontiveros foi morto.
A conclusão da Comissão Interamericana é que o México não protegeu os Rarámuri. “Embora o Estado mexicano tenha respondido formalmente com as medidas cautelares e reiterado sua disposição a cumpri-las, as informações (…) refletem que, apesar do tempo que passou desde então, não foram adotadas medidas adequadas e efetivas para atender a situação de segurança da comunidade”, afirmou em fevereiro de 2017.
No final de março, a Corte Interamericana emitiu medidas provisórias para a comunidade de Choréachi, elevando o nível de urgência do caso e obrigando legalmente o governo mexicano a protegê-los. “O Estado do México deve continuar aplicando as medidas de proteção que já foram ordenadas”, advertiu, exigindo a apresentação de um relatório sobre os progressos realizados até abril daquele ano e que o governo continuasse se reportando à Corte a cada três meses.
O Governo, inicialmente, argumentou que era “difícil implantar a […] medida cautelar”, porque a CIDH não tinha identificado individualmente quais pessoas estavam em risco e eram muitas. No entanto, a Corte respondeu que – embora a Comissão normalmente fizesse listas – às vezes se referia a um grupo que, na maioria dos casos, é fácil de identificar.
No final, a única medida implantada na comunidade de Choréachi são as visitas periódicas do Ministério Público. Felizmente, não houve nenhum outro ataque depois do assassinato de Ontiveros.
Um duplo assassinato apesar de quatro alertas
As lideranças camponesas José Ángel Flores e Silmer Dionisio George foram assassinados em 18 de outubro de 2016, no norte de Honduras. Antes foram feitos, pelo menos, quatro alertas internacionais sobre o risco que eles corriam.
Flores, o presidente do Movimento Unificado Camponês de Aguán (MUCA), que havia denunciado ter sido vítima de um atentado em abril de 2015, estava na sede da cooperativa camponesa La Confianza, no povoado de Tocoa, quando um grupo de homens encapuzados atirou nele. George, outro membro do mesmo grupo que estava ao seu lado, foi gravemente ferido e morreu horas depois no hospital. Ambos estavam saindo de uma reunião das Empresas Associativas do Assentamento La Confianza com outros 40 camponeses.
As duas lideranças estavam protegidas por medidas cautelares da CIDH que, em 8 de maio de 2014, tinha ordenado ao Estado hondurenho que protegesse os membros de quatro organizações camponesas – incluindo o MUCA – que haviam denunciado dezenas de assassinatos, sequestros e ameaças por parte de grupos paramilitares nas terras férteis próximas ao rio Aguan.
Em parte, essa violência está ligada, como denunciam organizações civis como a Human Rights Watch, à pressão para forçar a venda de propriedades coletivas de reforma agrária que tinham sido concedidas, originalmente, a 84 cooperativas. Esse assédio começou depois de outra reforma legal, em 1992, que permitiu a concentração da terra e atraiu empresários dedicados à palma africana. Só o MUCA denunciou 17 assassinatos entre 2010 e 2013. Além do conflito pela terra e pela compra e venda irregular, essas organizações camponesas vêm denunciando que o garimpo de óxido de ferro nas áreas próximas do Parque Nacional Carlos Alfonso Escaleras poderia poluir a água que é utilizada para a agricultura.
Em dezembro de 2012, a então Relatora Especial da ONU sobre Defensores de Direitos Humanos, Margaret Sekaggya, advertiu em seu relatório ao Conselho de Direitos Humanos, após visitar o país, mas sem poder viajar para a área por causa da insegurança, que ela estava “profundamente preocupada com a situação de violência e impunidade que estava acontecendo no Baixo Aguán e com o deslocamento de forças militares na área”.
Em fevereiro de 2013, o Grupo de Trabalho da ONU sobre o uso de mercenários expressou seu receio, após uma visita ao país, em relação “ao envolvimento em violações de direitos humanos de empresas de segurança privada contratadas pelos proprietários de terras, que incluem assassinatos, desaparecimentos, despejos forçados e violência sexual contra os representantes das associações camponesas”.
Após o assassinato de Flores e George em outubro de 2016, a Comissão Interamericana repreendeu severamente o governo hondurenho. “A CIDH considera extremamente grave que o Estado de Honduras não tenha adotado as medidas necessárias para proteger a vida e a integridade dessas pessoas [e] expressa sua consternação e preocupação porque, depois de terem sido realizadas três reuniões de trabalho na CIDH, não estão sendo implantadas as medidas adequadas e efetivas para proteger os beneficiários das medidas cautelares”, disse, salientando que, em 21 de outubro de 2015, já tinha chamado a atenção sobre essas deficiências.
Depois, em 6 de dezembro de 2016, a CIDH reiterou a urgência de Honduras em cumprir com as medidas cautelares para o MUCA e as estendeu para proteger outros 14 membros desse movimento, as famílias de duas das lideranças assassinadas, seus advogados e cinco testemunhas oculares dos eventos. Nesse documento, se enfatizou novamente em que “os assassinatos ocorreram sem que ambas as pessoas tivessem mecanismos de proteção adequados” e que “o padrão de violência (…) ainda continua ativo, afetando a situação de segurança dos beneficiários”.
Os agressores atacam até mesmo a CIDH
Não só a perseguição continua contra muitas lideranças e comunidades, o que as levou a pedir apoio à CIDH, mas também a própria Comissão Interamericana tem sido atacada.
Em 8 de novembro de 2018, uma equipe da CIDH foi intimidada por um grupo de produtores de soja enquanto visitava a aldeia Açaizal, no planalto próximo à cidade de Santarém, no estado do Pará, na Amazônia brasileira. O grupo tinha viajado até lá para se reunir com representantes da comunidade indígena Munduruku que estavam denunciado ataques contra eles por defenderem seu território ancestral. A comitiva era dirigida por um dos próprios comissariados, o ex-ministro da Justiça peruano Francisco Eguiguren.
Um grupo de produtores de soja tentou várias vezes sabotar, “de forma intimidante e ameaçadora”, em palavras da Comissão, esse espaço destinado a falar com os indígenas. Apesar de contarem com proteção policial, a comitiva foi seguida até a comunidade indígena por duas vans. Uma vez lá, seus ocupantes insistiram em participar da reunião, fazendo discursos racistas e violentos contra os participantes e anotando as placas dos veículos que os transportaram até o lugar, conforme denunciou o Comitê Brasileiro de Defensores dos Direitos Humanos (CBDDH). Eles abandonaram o lugar só quando a polícia interveio.
No final, os funcionários da Comissão conseguiram falar com os Munduruku, sem a presença de seus oponentes. Com eles também estiveram presentes representantes da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), duas instituições ligadas à Igreja Católica que, há quatro décadas, documentam a violência contra as comunidades rurais e acompanham as comunidades indígenas, respectivamente, no Brasil. Ambas as instituições documentaram a tentativa de sabotagem dos produtores de soja.
Mesmo assim, os visitantes noticiaram o ataque em diversos documentos públicos.
“A CIDH quer declarar publicamente que não só recebeu denúncias sobre essas práticas, mas também que foi alvo direto de intimidações nesse local”, informou em um comunicado quando finalizou sua visita.
Em Açaizal, dentro do Território Indígena Munduruku do Planalto Santareno, a Comissão buscava documentar os conflitos causados pela ausência de uma clara demarcação dos territórios indígenas e afrodescendentes tradicionais por parte do governo federal brasileiro. Além disso, pretendiam encontrar evidências dos riscos para as lideranças de Açaizal e das aldeias vizinhas que exigem que sejam estabelecidos limites claros para suas terras coletivas.
“Diversas terras não demarcadas (…) seriam afetadas pela entrada de invasores para a extração de recursos naturais, bem como pela presença muito comum de proprietários e supostos donos não indígenas, muitas vezes violentos e intimidadores”, disse a CIDH em seu relatório de 2019 “Povos Indígenas e Tribais na Pan-Amazônia”. Nesse mesmo documento, os comissionados destacaram que foram testemunhas “da situação de conflito e violência promovida por setores ligados aos agronegócios que, historicamente, praticaram a apropriação e saque de terras e territórios de povos tradicionais, originários, bem como dos povos do campo do oeste do Pará em geral”.
Essa expansão da fronteira agrícola na Amazônia brasileira gera outro risco para os indígenas que a CIDH também documentou durante essa visita: o aumento do uso de agrotóxicos. “Os povos indígenas de Açaizal (…) estariam sendo afetados pela poluição de rios, dos lençóis freáticos e aquíferos subterrâneos pelo uso indiscriminado de agrotóxicos e de outros componentes químicos”, escreveu.
Na mesma viagem da CIDH ao Brasil, houve outro ato de violência. Um dia antes da sabotagem em Açaizal, outra equipe da Comissão – liderada pela comissionada chilena Antonia Urrejola, que também é a relatora sobre direitos dos povos indígenas – enfrentou uma situação semelhante em uma aldeia próxima à fronteira com o Paraguai.
Várias lideranças indígenas do povo Guarani-Kaiowá foram atacadas naquela manhã por fazendeiros locais com armas de balas de borracha, denunciou o Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Após o tiroteio, no qual três pessoas ficaram feridas, os fazendeiros fecharam o acesso à via e impediram que os representantes dos Guarani-Kaiowá falassem com Urrejola e a CIDH na Reserva Indígena Dourados, no estado do Mato Grosso do Sul. Em seu relatório público, a CIDH fala de um indígena ferido nesse episódio. Além dessa agressão, os indígenas denunciaram que os fazendeiros tinham derramado uma substância tóxica sobre várias crianças e adultos, ocasionando neles ataques de diarreia e vômito.
Esse ataque é apenas uma demonstração da difícil situação na qual se encontram 18 mil Guarani-Kaiowá na Reserva Indígena de Dourados, com 3.475 hectares. Eles constituem a maior população indígena do Brasil. Ao redor da reserva, as terras foram ocupadas, desapropriadas ou griladas por proprietários de terras e, na prática, eles confinaram os indígenas em um território que é insuficiente para poderem viver com dignidade. Devido a essa superlotação, nos últimos anos, muitos indígenas ocuparam áreas que consideram parte do seu território ancestral e que lhes pertenciam há um século, antes da criação da reserva, mas que hoje pertencem formalmente a esses fazendeiros. Esses confrontos pela terra se tornaram violentos, porque os fazendeiros formaram milícias, que são dissimuladas como empresas de segurança privada mas que, na verdade, estão aí para defender os interesses dos fazendeiros.
Em palavras da Comissão, o povo Guarani-Kaiowá de Dourados “está sobrevivendo em um ambiente de violência por causa das milícias armadas, das violações ao direito ao território tradicional e das denúncias recebidas devido à separação de mães e filhos indígenas” e essa situação é agravada pela falta de demarcação das terras ancestrais por parte do governo brasileiro.
Além disso, segundo as recomendações da relatora especial das Nações Unidas para os direitos dos povos indígenas, Victoria Tauli-Corpuz, o Estado brasileiro ainda não adotou as medidas urgentes e necessárias para prevenir e punir a violência que está sendo exercida contra as comunidades indígenas Guarani-Kaiowá.
A confluência desses fatores gera o terreno perfeito para que aumente a violência contra os indígenas. O estado do Mato Grosso do Sul teve o maior número de assassinatos de lideranças indígenas em 2016 e, como observou a CIDH, o governo nacional não atendeu as medidas urgentes recomendadas pela relatora Tauli-Corpuz para proteger os Guarani-Kaiowá. Entre outubro e novembro de 2018, mês da visita da CIDH, o Conselho Indigenista Missionário da Igreja Católica (Cimi) documentou, pelo menos, quatro ataques em Dourados, que deixaram 19 feridos.
Após a visita de Urrejola, a situação piorou. Em julho de 2019, aconteceu o episódio mais brutal visto até hoje. Durante duas noites consecutivas, um grupo de fazendeiros atacou a aldeia de Ñu Vera, destruindo cabanas com um trator modificado e atirando balas de borracha na população, confirmou o Cimi. Um jovem indígena de 14 anos, Romildo Martins Ramires, foi gravemente ferido. Os invasores atiraram nele 18 vezes e o jogaram em uma fogueira. Os agressores impediram que os indígenas o ajudassem, segundo as informações constantes na denúncia que foi apresentada na Procuradoria Geral da República. Ele morreu cinco dias depois, no hospital, como resultado das queimaduras.
No final, a CIDH mencionou as duas comunidades – Açaizal e Dourados – como “situações urgentes que exigem das autoridades nacionais e da sociedade em geral a devida visibilidade, atenção e uma solução urgente” no comunicado público emitido depois de sua visita.
Ataques após alertas em Honduras
Neste país de apenas 9 milhões de habitantes, “Tierra de Resistentes” documentou 685 ataques em uma década.
Talvez o crime mais emblemático contra um defensor ambiental em toda a América Latina tenha ocorrido neste país, o assassinato da liderança indígena Berta Cáceres.
Essa reconhecida liderança, que cofundou e depois liderou o Conselho Cívico de Organizações Populares e Indígenas de Honduras (Copinh), foi assassinada em 3 de março de 2016 por uns desconhecidos que entraram em sua casa em La Esperanza, no sudoeste do país.
Cáceres aparecia frequentemente na mídia mostrando sua oposição ao projeto hidrelétrico de Agua Zarca, no noroeste do país. Ela denunciava que esse projeto podia gerar um impacto negativo no Rio Gualcarque e, além disso, que o direito à consulta prévia das comunidades indígenas afetadas na área não tinha sido respeitado. Por esse trabalho, ela recebeu o Prêmio Ambiental Goldman em 2015, o mesmo que recebeu dez anos antes o também ativista ambiental assassinado, o mexicano Isidro Baldenegro, mencionado previamente.
Ao longo dos anos de defesa ambiental, Cáceres denunciou uma série de ataques contra ela e outros membros da Copinh. E reiterou suas reclamações em uma entrevista coletiva, uma semana antes de ser assassinada. No ano anterior ao seu assassinato, a CIDH emitiu, pelo menos, quatro alertas ao Estado hondurenho sobre o alto risco que a líder estava correndo.
Em 21 de outubro de 2015, em uma reunião em Washington, a Comissão chamou a atenção dos representantes do governo em relação às deficiências na proteção que eles estavam proporcionando. Um mês e meio depois, em 8 de dezembro, a Comissão enviou uma carta a Honduras solicitando relatórios sobre essas medidas de proteção. Em seu relatório “Situação dos Direitos Humanos em Honduras”, no final de 2015, a CIDH advertiu novamente sobre os atentados contra Cáceres e alertou que ela estava sendo vítima de assédio judicial. A liderança contava com medidas cautelares da CIDH desde 29 de junho de 2009.
Doze dias após a morte de Cáceres, outro líder da Copinh foi morto em circunstâncias semelhantes. No dia 15 de março de 2016, dois desconhecidos mataram Nelson Noé García, que tinha acompanhado recentemente várias famílias da comunidade do Rio Chiquito que haviam sido despejadas pelas forças públicas. Garcia foi um dos beneficiários das medidas cautelares concedidas pela CIDH após o assassinato de Cáceres, para proteger a família dele, seu advogado e os dirigentes da Copinh.
“Este e outros assassinatos de pessoas que eram beneficiárias de medidas cautelares concedidas pela Comissão põem em questão a eficácia do Estado de Honduras na implantação dessas medidas para proteger os beneficiários e cumprir suas obrigações internacionais”, concluiu a Comissão um mês depois.
Em novembro de 2018, em meio de uma enorme pressão internacional, um tribunal hondurenho condenou sete pessoas pelo assassinato de Cáceres a penas que variavam de 30 a 50 anos. Entre eles estavam o gerente ambiental e o antigo gerente de segurança da empresa Desarrollo Energéticos S.A. (Desa), responsável pela hidrelétrica do Rio Gualcarque, a quem Cáceres tinha se oposto. Uma semana após o julgamento, a jurista jamaicana Margarette May Macaulay – ex-juíza da Corte Americana e, naquele momento, presidente da CIDH – exigiu ao governo hondurenho, em audiência pública, que cancelasse a concessão da Desa. Um ano depois, o projeto foi paralisado pela pressão internacional e pela falta de apoio dos bancos, mas a concessão continua em vigor.
“Este crime não teria acontecido se a consulta prévia à comunidade tivesse sido garantida e se o Estado de Honduras tivesse cumprido com as medidas de proteção concedidas”, disse Laura Zúñiga Cáceres, uma das filhas de Berta.
Outro caso semelhante é o da liderança camponesa Margarita Murillo, que foi assassinada em 27 de agosto de 2014 no noroeste do país.
Murillo, uma liderança social que dirigia a Associação Camponesa de Produção Las Ventanas e que fez parte do Fórum Social do Vale de Sula, no departamento de Cortés, foi assassinada por homens encapuzados que atiraram nela quatro vezes enquanto ela plantava. Naquela época, ela estava trabalhando em um terreno na comunidade de El Planón, no município de Villanueva, que tinha sido recuperado por sua cooperativa fazia sete anos. Além disso, estava em andamento o processo de legalização. Exatamente um mês antes, em 26 de julho, ela denunciou que seu filho de 23 anos tinha sido sequestrado de sua casa, na comunidade de Marañón, aparentemente por um grupo de militares.
Em 2009, a Comissão Interamericana emitiu um primeiro alerta sobre o risco que enfrentava Murillo. Em seu relatório “Honduras: direitos humanos e o golpe de Estado”, publicado após o golpe que derrubou o governo do presidente Manuel Zelaya, ela foi incluída em uma lista de nove lideranças sociais e políticas que tinham sido “ameaçadas com mandados de prisão, perseguidas, espancadas e detidas ilegalmente pelas forças de segurança”. Esse risco estava, provavelmente, ligado à sua atividade política, como coordenadora da Frente Nacional de Resistência Popular, que surgiu na época para defender Zelaya no noroeste do país.
Os motivos por trás do assassinato de Murillo são, talvez, mais difíceis de serem esclarecidos, devido a seu duplo status de liderança agrária e política. Em 2013, ela tinha sido candidata a deputada do Congresso nacional pelo Partido Livre, com o qual Zelaya pretendeu voltar ao poder. Por isso, após seu assassinato, a CIDH instou o Estado hondurenho a “abrir linhas de investigação que analisassem se o assassinato da Sra. Murillo tinha sido ou não cometido por causa de seu trabalho em defesa dos direitos humanos”.
De qualquer forma, o Sistema Interamericano vem alertando Honduras, há mais de uma década, que suas medidas para proteger as lideranças ameaçadas são insuficientes.
Em 2009, a Corte Interamericana emitiu uma sentença contra o país, por causa da impunidade em relação ao assassinato de Blanca Jeannette Kawas, em 1995, que se opôs à exploração ilegal de madeira nos manguezais da península de Punta Sal (hoje protegidos como parque nacional sob o nome dessa liderança ambiental).
Sobre esse mesmo caso, a Comissão advertiu que “os efeitos causados pela impunidade do caso e a falta de adoção de medidas para evitar a repetição dos fatos têm alimentado um contexto de impunidade para os atos de violência cometidos contra defensores e defensoras de direitos humanos, do meio ambiente e dos recursos naturais em Honduras”.
No México e na Colômbia também há mortos
“Tierra de Resistentes” mostra que, infelizmente, este panorama é bem semelhante em outros países da América Latina e que os beneficiários das medidas cautelares da CIDH não estão suficientemente protegidos.
Em 12 de janeiro de 2015, homens encapuzados e armados chegaram à casa de Julian Gonzalez Dominguez, líder da comunidade indígena Triqui no sul do México, e o levaram à força. Horas mais tarde, seu corpo sem vida foi encontrado com as mãos algemadas atrás das costas.
González era um líder da comunidade de San Juan Copala, no estado de Oaxaca, que foi forçado a se deslocar a outros lugares após repetidos ataques violentos de um grupo armado, cujas incursões deixaram, pelo menos, 25 pessoas mortas e 17 feridas. Os desconhecidos o procuraram em Juxtlahuaca, um povoado localizado a 235 quilômetros de distância. Meses antes, ele tinha denunciado ameaças por causa de sua luta em defesa do território Triqui, onde há décadas existe um conflito agrário e por cuja autonomia ele estava lutando.
Ele foi um dos 135 indígenas Triqui da comunidade de San Juan Copala aos quais a CIDH concedeu medidas cautelares em 7 de outubro de 2010, devido ao risco que estavam correndo após seu deslocamento. Outro líder protegido por essas mesmas medidas, o ex-prefeito Antonio Jacinto López Martínez, foi assassinado em 17 de outubro de 2011 em uma rua do povoado de Tlaxiaco.
Quatro anos após seu assassinato, o governo pediu desculpas à família de López e reconheceu que não tinha cumprido as ordens da CIDH. “O Estado mexicano reconhece sua responsabilidade pelo não cumprimento integral das medidas cautelares”, disse o então subsecretário de direitos humanos, Roberto Campa. “A obrigação é treinar funcionários públicos responsáveis pela adoção de medidas de proteção que tenham sido emitidas por algum mecanismo nacional ou internacional de direitos humanos”.
Em outros casos, a situação de segurança continua sendo muito precária.
Um exemplo disso são os indígenas Siona que moram nos abrigos de Buenavista e Santa Cruz de Piñuña Blanco, no Rio Putumayo, na entrada da Amazônia colombiana.
Em 14 de julho de 2018, a CIDH lhes outorgou medidas cautelares após constatar os riscos enfrentados por este povo indígena, declarado como um dos 34 “em perigo de serem exterminados – cultural ou fisicamente – devido ao conflito armado interno” da Colômbia, em uma famosa ordem da Corte Constitucional em 2009.
Os habitantes dos dois abrigos denunciaram que, durante 2017, um ano após a assinatura do Acordo de Paz entre o governo e a guerrilha das FARC, chegaram panfletos ordenando que eles se opusessem à substituição das plantações de coca, restringindo a mobilidade com horários e ameaçando suas lideranças. Depois, em fevereiro de 2018, eles denunciaram que desconhecidos tinham chamado as autoridades Siona e sua guarda indígena para uma reunião para – em suas palavras – “informar-lhes que eles são a nova força de controle territorial”. Devido ao risco de confinamento, a CIDH solicitou que o Estado colombiano adotasse medidas para protegê-los e removesse as minas antipessoais encontradas em Buenavista.
Porém, no ano seguinte, as condições de segurança dos dois abrigos continuavam sendo precárias, como diz César Rojas na reportagem que fez “Tierra de Resistentes”. Em 26 de setembro de 2019, a Ouvidoria do Povo – responsável pelo acompanhamento da situação humanitária no país – emitiu um alerta precoce sobre a situação de risco em toda a área onde, entre outras comunidades indígenas e não indígenas, está localizado o abrigo Piñuña Blanco.
Oito episódios violentos foram documentados entre julho e setembro. Em um deles, em 28 de julho, homens armados e desconhecidos que se identificaram como das Farc – apesar de já terem sido desarmadas – chegaram ao povoado de Pueblo Bello e disseram à comunidade que estavam planejando ficar por lá. Naquela tarde, em um povoado vizinho, eles se enfrentaram à chamada “Máfia”, outro grupo criminoso formado em parte por ex-paramilitares. Um camponês foi ferido e, depois disso, as aulas foram suspensas por cinco dias e os moradores se esconderam na escola e no centro de saúde, que são as únicas estruturas de concreto daquele lugar.
Hoje, o abrigo continua sendo inacessível, até mesmo para os funcionários públicos que trabalham com as pessoas mais ameaçadas. “A recomendação é não chegar até que a situação melhore”, diz Amanda Camilo, uma respeitada liderança das vítimas, que trabalha como coordenadora regional na Comissão da Verdade que surgiu com o Acordo de Paz. Camilo, que trabalha em Puerto Asís, não pôde viajar com sua equipe até o abrigo Piñuña Blanco para entrevistar os moradores e documentar o que aconteceu com os indígenas siona.
A CIDH continua chegando a tempo
Embora o Sistema Interamericano não tenha capacidade para forçar os Estados a protegerem as lideranças, em muitos casos, reage com rapidez e sentido de urgência.
Assim, por exemplo, em Kumarakapay – também chamada San Francisco de Yuruan -, na Amazônia venezuelana, os indígenas Pemones, como foi contado em“Tierra de Resistentes”, pediram proteção à CIDH em 25 de fevereiro de 2019, três dias após um ataque militar que causou a morte de três membros da comunidade.
Isso aconteceu no momento em que a oposição, liderada pelo presidente interino Juan Guaidó e pela Assembléia Nacional, organizou uma operação para trazer ajuda humanitária da Colômbia, do Brasil e de várias ilhas do Caribe ao país. Como se documentou na reportagem de Lisseth Boon e Lorena Meléndez, os indígenas de Kumarakapay esperavam ansiosamente a chegada de suprimentos médicos, medicamentos e alimentos a sua comunidade na parte de fora do Parque Nacional Canaima e bem perto da fronteira com o Brasil, por isso impediram que passassem quatro comboios militares que, por ordem do governo de Nicolás Maduro, pretendiam impedir que a ajuda entrasse à Venezuela.
A resposta do exército foi atirar neles com seus fuzis, matando três pessoas e ferindo outras quatorze. Alguns ainda têm balas alojadas em seus corpos, outros ficaram com deficiências motoras ou paraplégicos. A perseguição continuou naquela mesma noite, com invasões ilegais. Os indígenas, temerosos, se refugiaram nas montanhas e se trancaram em suas casas por dias, não podendo sequer chegar a suas plantações para procurar comida. Pelo menos 80 moradores de Kumarakapay fugiram para o Brasil devido ao assédio militar.
Longe de reconhecer a morte de três Pemones, o governo negou a participação da Guarda Nacional Bolivariana e do Exército no ataque a Kumarakapay. Diosdado Cabello, presidente do partido do governo, disse que o ataque era um “falso positivo” e acusou do massacre o partido de oposição Voluntad Popular e seu deputado Américo de Grazia que, muitas vezes, denunciou irregularidades na exploração mineira no Arco Mineiro do Orinoco e abusos militares contra a população no estado Bolívar.
A CIDH respondeu três dias depois, concedendo-lhes medidas cautelares por considerar que eles se encontravam em uma “situação de gravidade ou urgência”. Para resolver essa situação, a CIDH solicitou que o Estado venezuelano garantisse a segurança dos Pemones, que prestasse assistência médica aos feridos, que assegurasse que os agentes do Estado não fizessem uso desproporcional da força e que evitasse que terceiros – como os chamados “coletivos chavistas” – gerassem outras situações de risco.
Então, como protegemos as lideranças ambientais?
Esta triste história gera perguntas sobre a eficácia das medidas de proteção das entidades nacionais e do Sistema Interamericano e sobre o compromisso dos países em segui-las. Se nem sequer a maior pressão internacional leva um Estado a proteger suas lideranças ambientais, então, como evitar a violência contra elas?
O problema é que esses Estados não têm capacidade para fazer isso, porque são mais fortes as máfias, o tráfico de drogas ou outros interesses criminosos? Os Estados são corrompidos ou cooptados por interesses comerciais que querem se apropriar da terra para a agroindústria, extração de recursos naturais, projetos de infraestrutura ou economias ilícitas? Não entendem que estas lideranças, ao lutarem por seus territórios, estão muitas vezes protegendo ecossistemas que prestam serviços fundamentais, desde o abastecimento de água até a qualidade do ar, para o resto da sociedade? Será que não vêem claramente que, muitas vezes, elas protegem mais do que os militares ou policiais?
As respostas afirmativas a estas perguntas explicam, em parte, porque os estados latino-americanos não estão fazendo o esforço necessário para proteger eficazmente estes cidadãos que tanto contribuem para o bem comum.
Por mais ativa que seja a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), criada há sessenta anos, ela tem seus limites. Não é obrigatório que os países cumpram com suas medidas cautelares. Como órgão político do Sistema Interamericano, no sentido mais estrito, suas recomendações não são vinculantes à luz do direito internacional, embora os Estados devam atendê-las em virtude do princípio de boa-fé.
Essas recomendações só se tornam obrigações legais quando a Comissão leva o caso à Corte Interamericana (criada vinte anos depois da Comissão) e quando a Corte as transforma em medidas provisórias, como aconteceu no caso da comunidade Rarámuri de Choréachi, no México. Nesse caso, são equivalentes às ordens judiciárias que, se não forem cumpridas, podem gerar uma responsabilidade legal internacional para o país.
No entanto, as medidas cautelares da CIDH têm um efeito interno nos países. Os Estados latino-americanos são obrigados por suas constituições a garantirem a proteção dos direitos humanos de seus cidadãos e, ao mesmo tempo, a tomarem medidas para garantir que eles não sejam vulnerados. Este dever é duplo – ou reforçado, na linguagem jurídica – com alguns grupos específicos, como é o caso da população detida sob custódia do Estado. Nesses casos, se alguma coisa acontece com uma pessoa, a responsabilidade da prova recai no Estado e é quem deve demonstrar que não foi responsável. Esta categoria inclui justamente aqueles que recebem medidas cautelares da OEA, que não são levantadas até que os países demonstrem que a situação de risco já tenha sido resolvida.
Apesar da possibilidade de serem condenados pela Corte, os Estados, como vimos anteriormente, às vezes, não protegem adequadamente as vítimas ou não capturam seus atacantes. Porém, um fato político poderia melhorar a situação: a entrada em vigor do Acordo de Escazú.
Este inédito tratado regional, negociado na cidade costarriquenha de Escazú, patrocinado pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), busca melhorar o acesso à informação pública, a participação dos cidadãos e a justiça em temas ambientais na região. Um de seus principais objetivos é, justamente, prevenir, investigar e punir todos os ataques contra os defensores ambientais. É o primeiro tratado internacional que contempla medidas para proteger especificamente esses defensores.
Desde que foi aberto para assinaturas, em setembro de 2018, na Assembléia Geral da ONU, 22 países da América Latina e do Caribe já o assinaram e apenas mais três países precisam ratificá-lo para que entre em vigor.
Embora não estabeleça medidas específicas, deixa que cada país as defina e, para muitas comunidades e organizações de base, o fato desse tratado ser ratificado abre uma opção para o diálogo.
“Escazú tem no seu centro as opiniões e visões das pessoas. Isso pode abrir o debate sobre quais são as medidas mais apropriadas e eficazes, pois a realidade é que, frequentemente, os Estados não consideram nem apoiam as medidas de autoproteção das comunidades e criam outras que não levam em conta as características do local onde vivem essas pessoas e, portanto, são ineficazes”, diz a advogada ambientalista Lina Muñoz Ávila, professora da Universidad del Rosario que esteve na negociação do acordo.
“Se você tiver melhores padrões de participação, as comunidades e as lideranças poderão intervir na criação dessas medidas”, explica ela. Tanto que organizações sociais e comunidades foram fundamentais para convencer o presidente colombiano Ivan Duque a assinar o tratado de Escazú em dezembro passado, revertendo sua oposição inicial.
Se essa oportunidade se tornar uma realidade – e se a América Latina deixar de ser a região mais perigosa do mundo para os defensores do meio ambiente – essas lideranças e essas comunidades não serão mais vistas como opositores do desenvolvimento econômico e começarão a ser protetores de um patrimônio coletivo.
Esta reportagem foi elaborada com base nas informações da base de dados da “Tierra de Resistentes”, construída por mais de 20 jornalistas de dez países e retomou reportagens feitas por Juliana Mori, do Brasil; Óscar Agudelo e César Rojas, da Colômbia; Vienna Hernández, de Honduras; Thelma Gómez Durán e Patricia Mayorga, do México; e Lisseth Boon e Lorena Meléndez, da Venezuela.