Pelo menos seis defensores do meio ambiente foram mortos na América Latina desde 11 de março, a data em que a pandemia foi declarada.
Investigação parte do projeto Terra de Resistentes mostra que ao menos seis defensores ambientais foram assassinados em diferentes países da América Latina desde 11 de março, data em que a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou o início da pandemia. Foto de abertura:
por Andrés Bermudes Lleviano,
“A violência não está de quarentena”. Essa frase, repetida por ativistas sociais e ambientais é uma triste verdade em muitos países da América Latina.
Ao menos seis defensores ambientais foram assassinados em diferentes países da América Latina desde 11 de março, data em que a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou o início da pandemia.
Veja também: Terra de Resistentes: defender o meio ambiente nunca foi tão perigoso
Esse número revela como a violência persiste em muitas dessas comunidades, que já se preocupam com a possível chegada do Covid-19 a regiões rurais com serviços de saúde precários e presença limitada do governo. Ao mesmo tempo, uma das chaves para reduzir a transmissão de muitas doenças infecciosas é justamente preservar ecossistemas como os que esses líderes protegem, como vários cientistas têm argumentado.
Assassinatos no México continuam
Já fazia vinte anos que Adán Vez Lira protegia os pântanos e manguezais de La Mancha, uma pequena comunidade na costa do Golfo do México, no estado mexicano de Veracruz, informa o Mongabay Latam. Na manhã de 8 de abril, Vez dirigia sua motocicleta por uma estrada do município de Actopan quando desconhecidos o mataram a tiros.
A comunidade de La Macha, ecossistema ao qual Adán dedicou sua vida, somado ao complexo de lagoas de El Llano, integram uma área de 1.414 hectares de pântanos protegidos sob a categoria internacional de Sítio Ramsar. Por sua relevância ecológica, ali se estabeleceu o Centro de Pesquisas Costeiras de La Mancha (Cicolma, na sigla em espanhol), do Instituto de Ecologia (Inecol), com o qual Vez colaborava a partir da cooperativa La Mancha en Movimiento, que ajudou a fundar há duas décadas.
A partir dessa cooperativa, Vez gerenciava recursos para a conservação do manguezal, organizava oficinas de educação ambiental nas escolas da região e promovia o ecoturismo como atividade econômica sustentável para o ecossistema. Também era um entusiasmado promotor do Festival de Aves de La Mancha, que atrai centenas de turistas todos os anos para observar os pássaros praieiros e aquáticos que chegam a esse grande gargalo da rota migratória de pássaros. “É o corredor de aves de rapina mais importante do mundo!”, dizia Vez.
O assassinato de Vez não foi o único ataque do tipo no México ao longo do último mês. Em 23 de março, dois atiradores assassinaram o advogado Isaac Medardo Herrera Avilés em sua casa em Jiutepec, no estado de Morelos.
Herrera, antigo líder comunitário que logo se tornou advogado, atuava em distintos temas de interesse ambiental, como contou o Mongabay Latam em uma reportagem. Um deles era a defesa da região Los Venados, uma floresta de 56 mil metros quadrados no centro de Jiutepec, onde o então presidente municipal autorizou um projeto de 400 casas e a destruição de mais da metade das 3 mil árvores.
Esses dois casos se somam à lista de ao menos 86 defensores ambientais assassinados desde 2012 no México.
Indígenas sitiados no Brasil, no Peru e na Colômbia
Os trinta dias que se passaram desde que foi declarada a pandemia foram fatais também para indígenas nos países da bacia amazônica.
Em 31 de março, foi assassinado Zezico Rodrigues Guajajara, um respeitado líder do povo guajajara que vive na Terra Indígena Arariboia, no Maranhão.
Zezico voltava à sua comunidade de Zutiwa em moto quando desconhecidos armados com uma escopeta o atacaram, segundo noticiou o portal Amazônia Real. Embora não haja mais informações sobre os autores, as suspeitas recaem sobre madeireiros ilegais da região que haviam ameaçado Zezico no passado, segundo a ONG Amazon Watch, que trabalha na região.
Zezico, o quinto indígena guajajara assassinado em cinco meses, havia sido eleito coordenador da Comissão de Chefes e Líderes Indígenas da Terra Indígena Araribóia (Cocalitia), e era um dos promotores históricos dos Guardiões da Floresta, um grupo de 120 voluntários indígenas que protegem o território de Arariboia do desmatamento e comércio ilegal de madeira. Zezico também era conhecido por proteger o povo awá-guajá, que vive em isolamento voluntário dentro da mesma Terra Indígena Arariboia.
Dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT) apontam que o Maranhão é o estado líder nacional em conflitos rurais, com 2.539 casos entre 1990 e 2018. Quanto aos indígenas guajajara, 49 foram assassinados no Maranhão desde 2000. Nenhum dos crimes foi solucionado.
No Peru, o assassinato de um indígena também foi registrado. No dia 12 de abril, Arbildo Meléndez Grandes, chefe da comunidade nativa de Unipacuyacu, na fronteira das regiões de Ucayali e Huánuco, foi morto a tiros. Ele foi morto por um de seus novos trabalhadores, que estava ajudando-o em um projeto de reflorestamento, enquanto caçava no mato para abastecer sua família.
“Desde que tomou posse, ele recebeu ameaças”, diz sua esposa Zulema Guevara Sandoval, em uma conversa com Mongabay Latam. Quando foi nomeado presidente da Unipacuyacu, Meléndez decidiu pressionar para a titulação do território comunal, pedido que permaneceu sem resposta por mais de 20 anos. Este trabalho era desconfortável para os invasores que ele constantemente enfrentava e que queriam introduzir a cultura ilegal da folha de coca em seu território. Unipacuyacu é uma das comunidades indígenas que defende sua floresta do tráfico de drogas e máfias ilegais que continuam a operar apesar do estado de emergência em vigor no Peru desde meados de março.
A situação também está complicada na Colômbia. Em 23 de março, foram assassinados Omar e Ernesto Guasiruma Nacabera, dois indígenas embera da comunidade de Buenavista, no departamento de Valle del Cauca. Nessa noite, segundo informou o Mongabay Latam, desconhecidos chegaram à casa dos Nacabera, na zona rural do município de Bolívar, e os convidaram a uma suposta reunião urgente. Atiraram a 20 metros da porta e fugiram, deixando gravemente feridos outros familiares.
Outro povo indígena, os embera da reserva Pichicora Chicué Punto Alegre-Rio Chicué, no Pacífico colombiano, estão vivendo em meio a tiros desde 3 de abril, com o enfrentamento de dois grupos armados. Um deles, a guerrilha do Exército de Liberação Nacional (ELN), teoricamente decretou um cessar fogo durante todo o mês de abril, mas o enfrentamento armado com as Autodefensas Gaitanistas de Colombia (AGC) resultou no confinamento total desses indígenas que vivem no município de Bojayá, no departamento de Chocó. Os embera comunicaram a explosão de 10 granadas, e afirmam não poder abrigar-se em outros povoados.
Covid-19 enfatiza a importância dos defensores ambientais
O fato de que ataques desse tipo continuem ocorrendo em meio à expansão do Covid-19 é revelador por outro motivo: a magnitude da atual crise de saúde pública está enfatizando o papel da destruição ambiental na transmissão de doenças e, portanto, a importância do trabalho dos protetores ambientais.
Ainda há muito por entender sobre a pandemia desse novo vírus, e também da longa recessão econômica que está por vir. Contudo, há vários indícios que apontam para a acelerada perda de ecossistemas como um fator de peso.
Muitos cientistas têm sugerido que há uma relação entre a transformação de hábitats e a perda de biodiversidade, causada pela construção de estradas, mineração ou expansão da fronteira agropecuária para a produção de alimentos, e a proliferação de espécies que podem propagar vírus zoonóticos a seres humanos.
“Vários cientistas têm explicado que o desmatamento, a agricultura industrial, o comércio ilegal de animais silvestres, as mudanças climáticas e outros tipos de destruição ambiental aumentam o risco de futuras pandemias, elevando a probabilidade de graves violações dos direitos humanos”, alertou em abril David R. Boyd, relator especial da ONU para o meio ambiente e especialista em gestão de recursos naturais.
As evidências sugerem que a perda de biodiversidade pode aumentar a transmissão de patógenos. Por isso, ecossistemas com alta taxa de biodiversidade prestam justamente o serviço de reduzir a prevalência de doenças infecciosas, argumenta um estudo publicado em 2010 na revista Nature por treze cientistas de nove universidades e três institutos científicos.
“Em muitos casos, a própria biodiversidade parece proteger os organismos, inclusive os seres humanos, da transmissão de doenças infecciosas. A preservação da biodiversidade nesses casos, e talvez em geral, pode reduzir a incidência de patógenos”, concluiu a equipe liderada por Felicia Keesing, ecóloga da Bard College especializada em doenças infecciosas.
Essa perda de biodiversidade está fortemente ligada ao desmatamento e à destruição de ecossistemas para expandir a criação de gado ou cultivos industriais de soja ou óleo de palma — algumas das matérias primas centrais que os países latino-americanos têm exportado.
Por exemplo, na região Norte do Brasil, que abarca os estados amazônicos, o censo de cabeças de gado cresceu 22% em uma década, em comparação com a média de 4% do resto do país, segundo uma pesquisa mostrada em reportagem do Infoamazonia e Diálogo Chino.
Os dados mostram que parte dessa expansão acelerada da pecuária explica o fato de que o setor se converteu num poderoso motor de desmatamento. Um relatório da iniciativa Trase, consórcio de pesquisadores que se dedicam a estudar o impacto das commodities, mostrou que a exportação de carne de boi gera um desmatamento de entre 65 e 75 mil hectares por ano no Brasil. Desse total, 22 mil hectares foram atribuídos a exportações realizadas para a China, o comprador mais importante de carne brasileira hoje.
A mudança no uso do solo e a fragmentação de ecossistemas, ocasionados pela substituição de florestas e da cobertura vegetal por cultivos extensivos, cria oportunidades para a transmissão de malária e outras doenças causadas por parasitas zoonóticos, revelou outro estudo de 2000 realizado por quatro pesquisadores da Escola de Higiene e Saúde Pública da Universidade Johns Hopkins.
“Em outras palavras, nosso crescente apetite mundial alimentará as populações das espécies mais bem desenvolvidas para nos matar com novos vírus”, afirma Georgina Gustin em uma reportagem do portal InsideClimate News.
Em uma das regiões mais biodiversas do mundo, onde a perda de biodiversidade é um desafio tão grande quanto os efeitos das mudanças climáticas, os defensores ambientais são um ativo de valor inestimável.
Alguns setores sociais os veem como opositores ao desenvolvimento econômico, quando na verdade esses líderes e essas comunidades protegem ecossistemas que já prestam serviços fundamentais à sociedade, desde o fornecimento de água até a qualidade do ar. A essa lista poderíamos acrescentar, segundo o estudo de Keesing e outros, a possível prevenção da transmissão de vírus zoonóticos.
Isso demonstra que, com frequência, esses guardiões protegem nosso patrimônio coletivo melhor que os próprios governos, os militares ou as polícias.
Este texto incorpora informações apuradas por Antonio Paz, Carben García Bermejo e Rodrigo Soberanes, do Mongabay Latam, e Gustavo Faleiros e Aldem Bourscheit, do Infoamazonia.