Em Vaupés, departamento na Amazônia colombiana, os povos indígenas se agarram às suas crenças para se proteger da mineração. Uma concessão para a exploração do coltan angustia três comunidades: os líderes estão ameaçados e o seu direito a uma consulta prévia foi desrespeitado.

Por Edilma Prada Céspedes

Um grupo de guardiões indígenas vigiam a selva para evitar uma das tragédias que os mais velhos veem em seus sonhos: a destruição de suas “casas sagradas”, os morros. Um jovem líder recorda o dia em que a tranquilidade foi interrompida na sua comunidade quando soube que o seu território tinha sido concedido por 30 anos para extrair coltan, um dos minerais mais escassos e preciosos das principais indústrias tecnológicas mundiais para a fabricação de celulares, computadores e dispositivos eletrônicos. Na África, a República Democrática do Congo tem a maior quantidade de reservas do que é considerado o novo “ouro preto ou azul”. Na América Latina há minas na Venezuela e na Colômbia.

Agenda Propia, com o apoio do Pulitzer Center e do Rainforest Journalism Fund, adentrou as florestas de Vaupés para caminhar por um dos territórios da Amazônia que está na mira de empresas estrangeiras para a exploração do coltan, uma combinação dos metais columbita e tantalita, também conhecido como terras negras. As histórias reunidas neste especial são o retrato vivo das comunidades Timbó de Betania, Bogotá Cachivera e Murutinga, as quais, com suas histórias, conhecimentos, medos e mensagens de esperança resistem a se tornar vítimas silenciosas de projetos extrativistas.

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  1. A concessão mineira
  2. Morros sagrados
  3. Conhecimento em risco
  4. Direitos desrespeitados

A concessão mineira

Timbó de Betania é multiétnica. É habitada por 23 famílias de sete povos indígenas com crenças enraizadas no seu ambiente natural. Convivem os Desanos, o povo relâmpago; Guananos, o povo da água; Sirianos, o povo das nuvens; Cubeos, os filhos de Kubai; Tucanos, o povo tucano; Tuyucas, o povo de barro; e Barás, o povo dos peixes. Todos eles são amigos da natureza, subsistindo na pesca, na caça e na colheita dos frutos da floresta.

Timbó de Betania fica a 50 quilômetros de Mitú, capital de Vaupés. Ambos estão ligados pela única estrada que existe nesse departamento amazônico, na Colômbia. Foto: Luis Ángel

A comunidade é cercada por morros – que eles consideram “casas sagradas” –, por igarapés e rios caudalosos. Timbó de Betania está localizada no meio dos povoados de Murutinga e Bogotá Cachivera, a 50 quilômetros de Mitú, a capital do departamento, no final da única estrada de Vaupés, caracterizada por suas areias brancas e argila avermelhada. Nesta área do país, localizada no sudeste da Colômbia e na fronteira com o Brasil, há 37.600 pessoas e 27 grupos étnicos vivendo juntos, segundo o Departamento Administrativo Nacional de Estatística (DANE) da Colômbia.

As casas ali são feitas de madeira e foram construídas acima do solo para que seus habitantes se protejam das cobras e animais selvagens que vagueiam pela noite. Na comunidade há uma escola, uma casa comunitária, uma capela e uma maloca.

Os indígenas de Timbó vivem em casas de madeira elevadas para se proteger de cobras e animais selvagens. Foto: Luis Ángel

Às cinco horas da manhã, os raios do sol espreitam através de árvores robustas e palmeiras. Consegue-se ouvir os pássaros cantando. Às seis horas, toca uma campainha. É o chamado à quiñapira (caldo de peixe com pimenta), um espaço tradicional onde a comunidade compartilha a comida. Os indígenas se reúnem na cabana localizada no centro da aldeia. As mulheres carregam caldo e casabe, uma espécie de tortilha dura feita de amido de mandioca. Todos com um prato, copo e colher na mão recebem a comida. Às sete da manhã, quando o calor começa a ser sentido, as crianças vão à escola, e as mais novas, com menos de cinco anos, acompanham as mães às chagras, um pedaço de terra onde cultivam bananas, mandioca, pimentão, inhame e frutas, como o abacaxi. Os homens vão pescar ou coletar sementes. Alguns ficam na cabana para conversar e atender às necessidades do território. Às três horas da tarde voltam a Timbó e vão para o igarapé com a família. Ali, enquanto as mulheres lavam as suas roupas, as crianças, rindo, brincam nuas em água cristalina que corre entre grandes pedras terrestres. As noites são silenciosas e estreladas; no céu, pode-se ver a Via Láctea no seu esplendor e nas casinhas algumas velas acesas. Na maloca os anciãos se encontram, quem, com orações e lendas, revivem seus costumes.

A comunidade reúne-se todas as manhãs na cabana comunal para partilhar a comida. Esta atividade tradicional é conhecida como quiñapira. Foto: Luis Ángel

É assim quase todos os dias, sossegado.

No entanto, eles também têm muitas necessidades. Não há água potável. Não há energia. Embora se possa ver uma rede elétrica, ela não funciona desde que foi instalada há dezessete anos. Não há posto de saúde e há escassez de medicamentos. Algumas das crianças, as mais novas, estão desnutridas, têm cabelos loiros, são magras e têm a barriga inchada. A desnutrição é um dos problemas enfrentados pelas mais de 350 comunidades indígenas em Vaupés.

E os seus recursos naturais estão em risco de ser explorados.

Rubén Darío Ardila Montalvo, de trinta anos e membro da etnia Desano, é o capitão do Timbó (como é conhecido o principal líder das comunidades indígenas daquela área do país). Ele é corpulento, com olhos rasgados e negros como a noite. Juntamente com vários líderes, eles estão em uma reunião na cabana comunitária, que tem paredes e bancos de madeira. Falam das ameaças ao território e Rubén mostra em um mapa os lugares sagrados – morros e fontes de água doce e salgada – que estão em risco por conta da mineração.

O Capitão lembra que, em abril de 2017, naquela mesma cabana, um local de diálogo, sua tranquilidade habitual foi interrompida por um engenheiro geológico com sotaque do noroeste colombiano, alto e de cabelos grisalhos, que veio exigir sua assinatura em um documento autorizando uma concessão para a exploração de minerais por trinta anos.

“‘Mas sem saber, como vou assinar’. Disse a ele: “Engenheiro, infelizmente para você não vou assinar um documento sem conhecimento, sem ver não posso assinar. Sem autorização eu não posso assinar, lamento!”, relata um atormentado Rubén.

Esta cabana é um ponto de encontro da comunidade. Ali, há três anos, souberam que o governo havia outorgado uma concessão para a exploração de minerais dentro do seu território. Foto: Luis Ángel

Todos ficaram surpresos. Eles não entendiam por que seus territórios foram dados para a exploração de coltan, ou seja, para extrair os minerais nióbio, tântalo, vanádio e zircônio, ou terra preta, de acordo com a denominação dada pela Agência Nacional de Mineração (ANM) da Colômbia. A maioria dos indígenas sequer sabia destes termos, apenas sabiam que estavam com um homem que os comunicou, aos gritos, sobre a existência de um contrato.

Um total de 2.004,08 hectares que foram concedidos fazem parte da Reserva Indígena Vaupés, que possui 3.896.190 hectares. O antigo Instituto Colombiano de Reforma Agrária (Incora) estabeleceu estes limites em 1982. A Agência Nacional de Mineração (ANM), em resposta a uma solicitação de informação enviada por Agenda Propia, confirmou que o título sob o qual a concessão de dois mil hectares foi concedida está em vigor em nome de Claudia Patricia Gómez González. No site do Cadastro Nacional de Mineração da ANM, o título foi registrado em 2014.

A área concedida para a exploração dos minerais conhecidos como tierras negras é de 2.004,08 hectares que fazem parte da Reserva Indígena Vaupés. As comunidades Timbó de Betania, Murutinga e Bogotá Cachivera vivem na região. Foto: Luis Ángel

Esta licença é considerada de mineração de média escala, pois a etapa de exploração está na faixa “maior que 50, mas menor ou igual a 5.000 hectares”, conforme estabelecido pelo Decreto 1666 de 2016 do Ministério de Minas e Energia colombiano, que regulamenta a classificação de mineração. Subir à categoria de larga escala dependeria da produção anual reportada na fase de exploração.

Rubén volta ao mapa desenhado pela comunidade e aponta o morro Abejorro: “A concessão foi outorgada neste ponto entre Murutinga e Timbó de Betania”. Ele explica que fica a cerca de cinco quilômetros em linha reta de Timbó e que a área é uma reserva florestal, além de uma reserva indígena.

Os indígenas e a Pastoral Social asseguram que o título passou às mãos de uma empresa espanhola.

O morro Abejorro, localizado entre Murutinga e Timbó de Betania, é o local onde a concessão foi outorgada. Os indígenas afirmam que é um local de importância porque há lugares sagrados e fontes de água. Foto: Luis Ángel

Ao lado de Rubén está Gladys Socorro Jaramillo García, uma liderança de 50 anos de idade da etnia Bará. Gladys tem olhos castanhos escuros, pele acobreada e um sorriso largo. Lembrando a presença do engenheiro, diz que isso perturbou a todos. Em seu relato, ela estava na cozinha de sua casa, a cerca de 200 metros da cabana, servindo chicha (uma bebida feita de amido de mandioca). Quando ouviu a discussão, saiu correndo para descobrir o que estava acontecendo: “Ele [o engenheiro] nos disse que era para nosso próprio bem, mas depois de reclamarmos, nos disse para não o incomodar, que tinha um documento com permissão para estar aqui”.

Gladys Socorro Jaramillo García, líder do grupo étnico Bará. Foto e cartografia: Luis Ángel

Naquele momento, a comunidade estava concentrada com sacerdotes da Pastoral Social, que geralmente acompanham programas de segurança alimentar e orientam os indígenas na elaboração do plano de vida (caminho de recuperação dos saberes e organização comunitária). Foi precisamente o apelo dos religiosos que fez o engenheiro respeitar os habitantes, seus direitos coletivos e se retirar da cabana.

Depois vieram as reclamações da comunidade contra Rubén e outros líderes.

“Eu estou em apuros. Me dizem que vendi o território por dinheiro, que recebi trinta milhões, quinze milhões. Isso é falso”, diz o Capitão.

Em Timbó de Betania eles consideram que o direito à consulta prévia não foi respeitado porque não dialogaram com todos os habitantes das três comunidades, Bogotá Cachivera, Murutinga e eles. Aparentemente, houve uma reunião com alguns indígenas na qual um acordo foi assinado.

José Ernesto Uribe Suárez, capitão entre 2005 e 2014, diz que soube que os mineradores realizaram uma reunião em Murutinga e que até um engenheiro foi à região para anotar coordenadas geográficas, mas na época ele não sabia o que essas pessoas estavam fazendo.

“Eles vieram com um engenheiro, enquanto negociavam. Fizeram uma grande reunião e acho que foi aí que assinaram o documento. Pelo que me contaram, a maioria deles assinou o documento, o que vai ser explorado pela mineração, então, após cinco anos, ou seis, esse problema começou a ser acontecer […] A partir daí, um ano depois, eles voltaram assim, pela força, vieram com um grande projeto, já feito, já assinado”, diz o ex-capitão, pedindo esclarecimentos sobre o que aconteceu.

Os indígenas falam dos seus medos novamente. Eles temem que a chegada da mineradora polua os seus rios e, na pior das hipóteses, os expulse.

Um pai corta um coco para partilhar com seus dois filhos pequenos. Foto: Luis Ángel

O vice-capitão de Timbó, Luis Octavio González, de 42 anos de idade, afirma com preocupação que no lugar da concessão nasce um igarapé que abastece a comunidade. “A poluição viria até aqui embaixo, por isso temos medo, os prejudicados seríamos nós. O que faríamos sem água, sem peixes, sem animais?”, pergunta-se angustiado.

Ouviram dizer que perto do morro Abejorro já estão explorando, embora não se saiba se é a companhia ou os mineiros ilegais que também vêm para extrair ouro.

“Estão me contando que pessoas estranhas estão entrando com entregas de alimentos. Portanto, neste momento eles não estão entrando em Timbó, mas muito perto”, menciona Rubén, enquanto recomenda a seus colegas que façam outras viagens para verificar essa informação.

O Vaupés é rico em ouro, prata, tungstênio e terras negras, como o coltan, o que levou à chegada de mineiros atrás desses recursos; muitos se aproximam do território usando trapaças e ganhando a confiança dos nativos. Um caso que tem sido ouvido nesse departamento é o da empresa canadense Cosigo Frontier. Há dez anos, entrou no coração da reserva e Parque Nacional Natural Yaigojé Apaporis – jurisdição do município de Taraira, muito próximo da fronteira com o Brasil – deixando comunidades divididas após violar a consulta prévia e as leis de origem dos povos indígenas. A Defensoria Pública informou, em resposta a uma solicitação enviada por Agenda Propia, que a atividade das empresas de mineração de ouro neste município causou “danos à integridade e à unidade das comunidades indígenas”. Há mais de vinte e cinco anos, o ouro tem sido explorado em Taraira, em parte por mineiros tradicionais e em parte por mineiros ilegais colombianos e brasileiros. A mineração tem causado danos ambientais irreversíveis, seus rios estão contaminados com mercúrio e a população hoje vê as terríveis consequências.

Agora, em Timbó eles estão tentando evitar o que aconteceu em Yaigojé Apaporis. Os indígenas preferem falar para que o seu caso não seja silenciado.

Uma menina nada com uma boia, improvisada a partir de um pneu, sobre um barranco na comunidade de Timbó. Hoje, este afluente abastece a comunidade. Foto: Luis Ángel

Desde que souberam da ameaça da mineração, homens e mulheres são treinados na cabana comunal em direitos como a consulta prévia e, com os anciãos e autoridades tradicionais, eles orientam o caminho em defesa do seu território.

No final da reunião com os líderes, Rubén assegura que continuará denunciando e buscando ajuda de entidades do Estado, da Igreja e de organizações internacionais para proteger a comunidade. Entretanto, quatro indígenas e um ancião decidem fazer uma das suas habituais visitas de vigilância aos seus locais sagrados. Eles se preparam para ir ao morro Hamaca.

 

Morros sagrados

Sobre o morro Hamaca, localizada a 20 minutos da comunidade Timbó de Betania, cinco indígenas vigiam o território. Foto: Luis Ángel.

A 20 minutos da comunidade Timbó de Betania, atravessando a selva, está o morro Hamaca, um dos locais sagrados dos povos ancestrais de Vaupés. No topo estão cinco indígenas vigiando o seu território. É protegido de pessoas que chegam sem permissão para explorar os recursos naturais. Eles estão 300 metros acima do solo amazônico, sobre uma rocha cinza gigantesca, sólida, em forma de cone. Dali eles vêem a imensa selva, densa de árvores e arbustos de todos os verdes – oliva, esmeralda, turquesa, escuro e claro. Outros morros também podem ser vistos, dez imponentes morros brotando da floresta, alguns muito próximos da fronteira brasileira. Para os nativos, a vida, as lendas e as memórias nascem destes lugares ameaçados pela mineração.

É meio dia e o clima é quente e úmido. A pedra arde sob os raios do sol. Um dos indígenas carrega um binóculo para observar a floresta. Outro dos homens aponta para a frente, para o monte Abejorro, e assegura que o medo existe desde que a comunidade soube que o governo o concedeu por 30 anos para a exploração de minerais.

Este grupo é liderado pelo ancião Jorge Ardila Ramirez, da etnia Guanano, um homem baixo, magro e de olhos negros. Ele é um dos três anciãos restantes em Timbó de Betania.

Em Vaupés, os morros são locais sagrados para os indígenas. Os mais velhos dizem que os povos surgiram destes lugares. Foto: Luis Ángel

Jorge nomeia e aponta os outros morros ao redor: Comején, Golondrina, Bastón, Cuya, Banco de Tigre, Lágrimas de Tela, Abejorro, Estantillo, Hueso e Tui. Ele diz que estas montanhas são espaços naturais e espirituais para a maioria das 27 etnias que vivem nas três reservas de Vaupés Indígena del Vaupés, Bacatí-Remanso de Arara Lagos de Jamaicuru e Yaigoje-Apaporis. Destes morros nasce a maioria dos 35 rios, igarapés e riachos que banham este departamento de 54 mil quilômetros quadrados, coberto por mais de 90% de floresta tropical. Os afluentes são caudalosos, navegáveis e são a fonte de alimento das comunidades.

“Se os mineiros chegarem, vão destruir os morros. E se fizermos mal, os seres da natureza cobram com a nossa vida, ou ficamos doentes, ou algo acontece. Não devemos tocá-los, devemos respeitá-los”, diz Jorge, apegado às suas crenças.

O ancião fecha os olhos, enquanto, com palavras místicas, relata que o seu espírito veio a este lugar para dialogar com os seus antepassados.

“No último sonho vi uma casa grande, a fizeram com lama, tinha janelas, a porta estava ali e aqui um quarto. Saía fumaça desta parte. Havia apenas um velho observando, perguntei-lhe no sonho sobre os demais e ele me disse que foram tomar chicha”, ele conta e explica que a sua ligação com o mundo espiritual é alcançada através de rituais.

O ancião Jorge Ardila Ramírez, da etnia Guanano, conta histórias míticas dos seus antepassados agrupados em dos vales do morro Hamaca. Foto: Luis Ángel.

Na sua aldeia eles usam a folha de coca e o tabaco para orações e medicina tradicional. Ao redor do morro Hamaca há plantações que se misturam com cultivos de mandioca brava e doce.

Jorge conta que todos os animais são os protetores do lugar, e mostra um passarinho com penas castanhas que aquece os seus ovos na pedra. Ele é conhecido como Juan Correo. “Por toda a selva há cobras, pacas, tatus, guarás, veados, tigres, vários animais. Eles são donos destas casas”, diz.

Os indígenas passam várias horas observando o território e depois se retiram em silêncio para respeitar seus habitantes, animais e plantas.

Este indígena observa a floresta e os outros morros à sua volta com a ajuda de binóculos. Foto: Luis Ángel

 

Conhecimento em risco

Os anciãos Reimundo Montalvo e Jorge Ardila Ramirez asseguram que, se minerais como o ouro forem retirados de seus territórios, haverá uma tragédia. Para eles, os antepassados usavam estes metais para a cura. Hoje, com orações eles cuidam do território “de todos”: a floresta. Foto: Luis Ángel

Em Timbó de Betania, um dos sábios que cuida dos morros, mas com orações, é o ancião Reimundo Montalvo. Ele tem 74 anos e pertence à etnia Desano. Está em sua casa, que tem um teto largo e caído até o chão, construído em madeira e folhas secas de palmeira. É magro e de olhos pretos. O seu rosto enrugado mostra o longo mapa da vida.

O ancião fuma tabaco enquanto reza por aqueles que vêm visitar a comunidade, para curar dores e doenças e para manter afastados aqueles que querem acabar com suas riquezas.

“Eu faço a proteção para que eles não entrem no território”, diz ele, se referindo aos mineiros. Ele só fala uma língua nativa, desano, então um de seus familiares, Wilmer Andrés Ardila Montalvo, ajuda com a tradução. Ambos explicam que o ouro e os minerais são elementos que eles usam para a cura e que há até uma oração alusiva ao precioso metal amarelo.

Ele também reza a cada vez que os índios vão trabalhar, no início e no fim de cada colheita, quando há um nascimento e uma morte e para pedir a harmonia dos seres da natureza.

O seu maior desejo é que as suas práticas ancestrais sejam aprendidas pelos jovens. Ele está ciente de que o conhecimento está sendo perdido cada dia que passa, especialmente o que protege locais sagrados como morros, fontes de água e rios.

“A geração que virá logo sofrerá a consequência disto, esse é o medo. Para que o conhecimento ancestral não se perca, estou convidando os jovens a vir, a vir até mim para ouvir as orações”, diz, referindo-se aos possíveis impactos que a mineração deixaria. Para Reimundo, herdar crenças é outra forma de defender o território.

A mesma defesa é feita pelas crianças indígenas da comunidade vizinha de Bogotá Cachivera, localizada a 20 minutos de Timbó de Betania. Na cabana, eles dançam uma dança tradicional, enquanto seu professor Leonardo Francisco Villa Morales, toca o casco de uma tartaruga e o carrizo (um tipo de flauta), dois instrumentos nativos.

As crianças, entre oito e treze anos de idade, usam coroas de penas na cabeça, maracás feitas de cabaças nas mãos e sementes que soam quando pisam o chão. Eles dançam em agradecimento à terra e aos seus antepassados.

Meninos e meninas indígenas da comunidade Bogotá Cachivera tocam instrumentos tradicionais em agradecimento a seus antepassados e ao território. Foto: Luis Ángel

Leonardo, de 46 anos de idade, da etnia Siriano, é o único ancião de conhecimentos culturais que resta na sua comunidade. Ele diz que todas as quartas-feiras ensina aos 27 alunos da escola Bogotá Cachivera as danças, canções e instrumentos que aprendeu com seu avô, que também têm sido ameaçados. Para Leonardo, a entrada da cultura ocidental, das religiões e das diversas explorações que a Amazônia teve (como borracha, peles e madeira), tirou-lhes conhecimento ancestral e agora temem por conta da mineração.

O indígena Siriano Leonardo Francisco Villa Morales, ancião da comunidade Bogotá Cachivera, assegura que suas canções, línguas e danças estão em risco. Por esta razão, ele os ensina às crianças e aos jovens. Foto e cartografia: Luis Ángel

Em Bogotá Cachivera, onde vivem 22 famílias pertencentes às etnias Sirianos e Desanos, a exploração mineral não lhes é estranha. De acordo com as histórias dos anciãos do lugar, há onze anos no morro Bastón, localizado a menos de dois quilômetros da aldeia, brasileiros, alguns índios, obtiveram ouro em bateias. Agora, eles estão preocupados com o efeito da concessão outorgada entre Timbó de Betania e Murutinga.

Ali também não foram consultados lá para a extração das terras negras. Eles, como nos povoados acima mencionados, viram o contrato e estão preocupados com as suas consequências. Na escola e na cabana há cartazes com fotografias da mina de carvão El Cerrejón, em La Guajira, mostrando os danos causados ao povo indígena Wayuu. Os impactos sociais, sanitários e culturais que podem ser gerados pela exploração mineral de média e grande escala têm sido relatados, por isso não concordam com nenhum tipo de mineração. Eles também aprenderam sobre a consulta prévia e seus direitos coletivos, que foram orientados pela Pastoral Social de Mitú.

“Espero que esta concessão não venha para explorar nosso departamento, que eles não tenham permissão”, diz Victor Villa Morales, que há mais de quatro anos é capitão em Bogotá Cachivera, uma comunidade que tem o nome da capital da Colômbia porque o vento sopra frio por lá.

“Enquanto eles [os mineiros] não estiverem lá, nós ainda estamos bem, dançamos e vivemos bem, tocamos todos os instrumentos, e quando os mineiros chegarem para explorar, tudo acabará porque já seremos como escravos, teremos que ir trabalhar lá, então o ensinamento que tivemos culturalmente, nos deixa do outro lado”, é o medo de Leonardo, que toca e mostra uma maracá de cabaça pintada com figuras representando o nascimento do sol, um morro e uma cabana de cabeça para baixo.

Víctor Villa Morales, capitão da comunidade de Bogotá Cachivera, mostra o mapa do seu território. Os locais sagrados, incluindo o morro Bastón, estão impressos no papel. Foto e cartografia: Luis Ángel

Nesta região de Vaupés, um dos extremos do sudeste da Colômbia, a vida indígena é forte, sábia e, sobretudo, suas comunidades resistem com sua cultura, suas tradições e suas vozes em defesa dos morros, do território e da vida.

 

Direitos desrespeitados

Vários indígenas habitantes das comunidades Murutinga, Timbó de Betania e Bogotá Cachivera, em Vaupés, disseram à Agenda Propia que se sentiram enganados durante os estudos prévios do território, a partir do qual foi entregue a concessão para a exploração de terras negras ou coltan.

Gilma Román, uma profissional indígena da etnia Huitoto, disse que foi contatada por um intermediário da empresa mineira para realizar uma consultoria independente sobre a reserva indígena como “área de proteção e reserva florestal”, mas nunca lhe foi dita “a verdade das coisas”. Pareceu a ela que esta consultoria foi para obter informações que mais tarde seriam utilizadas para a concessão.

A mulher menciona que foi após a visita do engenheiro geólogo às comunidades, em 2017, que souberam que “havia alguns interesses em explorar os recursos”. Depois, junto com seu marido, Libardo Medellín, ex-deputado de Vaupés, chamaram a atenção da Defensoria Pública para o caso, esperando por uma investigação.

Ela também diz que em 2018 eles se encontraram com um dos sócios da empresa mineira num centro comercial na cidade de Bogotá, e o informaram que os indígenas são contra qualquer exploração, e que seria necessária uma consulta prévia para entrar no território. “O senhor disse que se fosse inconveniente, que não interferiria mais. E isso é tudo”, disse Gilma, que terminou esclarecendo: primeiro, que eles não conhecem Claudia Patricia Gómez González, a representante do título mineiro; segundo, que o trabalho de consultoria não foi concluído, e terceiro, que ela também não recebeu nenhum pagamento pelo trabalho.

Este relato foi corroborado por Fernel Eladio Estrada Ramírez, representante da Associação de Autoridades Tradicionais da Estrada ao redor de Mitú – Bogotá Cachivera (Aatac), que reúne uma dezena de comunidades nativas. Fernel diz que depois de comunicar os concessionários que os povos indígenas não queriam mineração em seus territórios, a questão tem sido mais tranquila na região.

Agenda Propia questionou sobre a informação das pessoas por trás do contrato de mineração na Reserva Indígena Vaupés. Nos documentos anexos ao contrato obtido havia um número de celular e tentamos localizar as pessoas em 2 de dezembro de 2019. Quem respondeu, através da WhatsApp, disse que se chamava Carlos, sendo “sócio da concessão mineira”. Sobre Claudia, a proprietária da concessão, ele disse “eu a represento”. Carlos disse: “Lá nunca foi feita exploração mineral, tudo está sendo feito como exigido na lei, sustracción de ley segunda, e depois haverá socialização e estudos ambientais. Neste momento, só temos a concessão assinada desde 2009”. A sustracción de la ley segunda é um procedimento legal que permite ao governo colombiano autorizar extração de recursos naturais em reservas florestais.

Já em janeiro de 2020, este veículo de comunicação foi para um endereço em Bogotá registrado nos mesmos documentos, que correspondia a um edifício residencial. Lá, um dos porteiros que, segundo ele, está no trabalho há três anos, disse que nunca ouviu falar de nenhum escritório de uma empresa mineira que lá operasse. Portanto, não sabemos se existe um endereço atualizado, ou se há talvez um erro nos dados escritos nos documentos. Tendo esgotado os recursos para conversar com os titulares da concessão, antes da publicação desta reportagem, aguardamos uma resposta às denúncias aqui apresentadas pelos líderes indígenas.

O que está acontecendo em Vaupés vai contra a autonomia dos povos. Para o padre Edwin Balarezo, ex-diretor da Pastoral Social de Mitú, o próprio governo viola e ameaça os direitos coletivos dos grupos étnicos ao conceder concessões para a exploração dos recursos.

O padre explica que a forma como estas autorizações funcionam é que os contratos são dados aos colombianos, que depois os cedem a “empresas estrangeiras para a exploração destes territórios que são ancestrais, que gozam do privilégio de ser uma reserva e que têm uma comunidade de seres humanos ao seu cuidado”.

A instituição religiosa, que acompanha o processo com aconselhamento jurídico, sabe que uma empresa espanhola teria uma relação direta com este contrato de concessão. Agenda Propia descobriu que a mesma empresa também estaria processando um título no departamento de Guainía e tem conexões com uma dúzia de mineradoras em várias regiões.

“Aqui nunca se vem para consultar”, diz o Padre Edwin num tom irritado. Ele assegura que as entidades, sejam estatais ou não, em muitos casos “pagam aos capitães, levam-nos a Bogotá (capital do país), colocam-nos em bons hotéis e depois enviam-nos com algumas listas para serem assinadas nas comunidades”.

Segundo a Corte Constitucional, a consulta prévia é um instrumento “básico para preservar a integridade étnica, social, econômica e cultural das comunidades indígenas e para garantir, por fim, a sua subsistência como grupo social”. Além disso, a Amazônia colombiana é “sujeita de direitos”, pelo que, desde 2018, a Corte Suprema obrigou o Estado a estabelecer medidas urgentes para sua proteção e a dos que ali vivem.

Na Colômbia, a Lei 685 de 2001 estipula que “os minerais de qualquer tipo e localização, localizados no solo ou subsolo, em qualquer estado físico natural, são propriedade exclusiva do Estado”. Isso tem gerado debates em organizações indígenas que afirmam que o que está estabelecido na lei é contrário às suas crenças, porque no subsolo existem seres espirituais e elementos sagrados para as suas culturas.

Os afluentes, ricos em minerais, são protegidos pelos povos indígenas porque são o seu sustento e a única forma de mobilidade na região. Foto: Luis Ángel

“Esses locais [onde o contrato de mineração foi outorgado] são territórios Sirianos, são locais sagrados, temos que ver como a chegada da mineração vai afetá-los”, diz Julio César Estrada, indígena assessor da Organização Nacional dos Povos Indígenas da Amazônia Colombiana (Opiac). Por isso, exigem que seus lugares sagrados sejam respeitados, “porque fazem parte dos direitos fundamentais que não são regulamentados, são praticados”, diz o líder.

A Agência Nacional de Mineração (ANM) respondeu a um pedido de informação enviado por Agenda Propia sublinhando que os contratos de concessão mineira são concedidos quando empresas ou pessoas físicas apresentam uma série de documentos e todas as etapas estabelecidas pela Lei 685, também conhecida como Código Mineiro, são cumpridas. Entre estas fases, a ANM executa “um programa de relacionamento no território” e uma audiência prévia para verificar situações sociais, de “atividades de influência e observações da comunidade”. Quando esta reunião se esgota sob o princípio da economia administrativa, ordena-se a audiência e participação de terceiros, sem prejuízo da proteção especial de grupos etnicamente diferenciados”. Além disso, o artigo 121 da Lei estabelece que “qualquer explorador ou operador de minas é obrigado a realizar as suas actividades de forma a não prejudicar os valores culturais, sociais e económicos das comunidades e grupos étnicos ocupantes, efetiva e tradicionalmente, da área coberta pelas concessões ou títulos de propriedade privada no subsolo”.

A única licença ambiental existente em Vaupés foi emitida em 30 de dezembro de 2019, conforme informou Miguel Antonio Villamil Vargas, que entregou o cargo de diretor regional da Corporação para o Desenvolvimento Sustentável do Norte e do Leste Amazônico (CDA) no último dia 31 de dezembro. A licença foi outorgada à Associação de Mineiros Independentes de Vaupés (Asomiva) para explorar ouro durante dez anos no município de Taraira. A licença foi concedida após o relatório de viabilidade ter sido apresentado pela Autoridade Nacional de Licenciamento Ambiental (ANLA).

No caso do contrato de mineração nos territórios das comunidades do Timbó e Murutinga, os procedimentos para a licença ambiental não avançaram no CDA e não se sabe se o processo está avança perante a ANLA. Além disso, na área onde a concessão está localizada, um processo de sustracción de la ley segunda deve ser realizado porque está em uma reserva florestal.

“Nós, como corporação ambiental, temos dado seguimento, acompanhamento com o Exército e a Polícia, e com o próprio Capitão da comunidade, mas até agora não encontramos nada”, disse Miguel Villamil, do CDA, em entrevista a Agenda Propia, em setembro de 2019.

Na Amazônia colombiana, 53 títulos mineiros foram outorgados entre 2014 e setembro de 2019. Naquele período, o único feito em Vaupés é o investigado por esta reportagem. Há várias solicitações de título em curso perante à ANM para este departamento. O mesmo é registrado pela Fundação Gaia Amazonas, que em seu Geovisor apresenta informações sobre um pedido de concessão para a extração de ouro, platina, nióbio, tântalo, vanádio ou zircônio em 1.910,5 hectares, localizada na jurisdição de Mitú, muito próxima ao local já sob concessão.

O interesse pela exploração na Colômbia aumentou após o governo de Juan Manuel Santos (2010-2018) ter promovido a “locomotiva mineira”, e, em 2010, a janela foi aberta para que muitos territórios, incluindo a Amazônia, estejam na mira de grandes indústrias.

Enquanto os procedimentos legais para estabelecimento dos mineiros no território parecem avançar em um momento que ainda não é tão claro, os indígenas querem fazer ouvir suas vozes, canções, crenças, línguas, orações e tradições para dizer ao resto da Colômbia e da Amazônia que eles existem, vivem e querem cuidar da floresta, do seu lar e da casa de todos, mas eles precisam que o Estado e a sociedade os respeitem e os ajude em seu desejo de preservar seus costumes e o meio ambiente.

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