Debate em Manaus finalizou com um consenso: o desmatamento da Amazônia exerce influência no volume de chuvas em outras regiões do país.
O debate “O Desmatamento da Floresta Amazônica e a Crise Hídrica no Brasil”, realizado no último dia 29 de abril, em Manaus, reuniu cerca de cem participantes e foi marcado pela diversidade de opiniões dos cientistas e posicionamentos da plateia, mas com um consenso: o desmatamento da Amazônia exerce influência no volume de chuvas em outras regiões do país.
Para os palestrantes, a população brasileira precisará enfrentar e se adaptar as mudanças climáticas decorrentes dos impactos ambientais causadas pela devastação da maior floresta tropical do mundo.
Primeiro evento promovido pela agência de jornalismo independente Amazônia Real, o debate aconteceu na Galeria de Artes do Instituto Cultural Brasil – Estados Unidos (Icbeu), no centro de Manaus, e contou com as presenças do anfitrião, Walter Kerr, adido cultural adjunto da Embaixada dos Estados Unidos, dos palestrantes Philip Fearnside, do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia), do meteorologista Gustavo Ribeiro, do Inmet (Instituto Nacional de Meteorologia), do geógrafo Carlos Durigan, diretor do programa Amazônia da WCS-Brasil, e do geólogo e superintendente do Serviço Geólogo Brasileiro, Marco Oliveira.
O debate teve transmissão ao vivo pela internet pela postv.org e contou com o apoio do Icbeu Manaus, Mídia Ninja, Coletivo Difusão. Estiveram presentes também a secretária-geral do Icbeu, Ruth Alencar Peixoto, e a gerente científica do Programa de Grande Escala da Atmosfera – Biosfera na Amazônia (LBA), vinculado ao Inpa, Muriel Saragoussi.
Por um problema técnico, os palestrantes Rafael Vilela (Conta D´Água) e Ricardo Guimarães (InfoAmazônia) não puderam participar via internet do debate.
Durante a saudação de boas-vindas aos presentes no debate, o adido cultural Walter Kerr disse que o governo dos Estados Unidos tem grande interesse nas questões ambientais, inclusive, sobre as que afetam a política da água e do desmatamento na Amazônia.
“Nós trabalhamos com o governo brasileiro sobre uma série de temas para abordar estas questões. Temos projetos sobre gestão de parques nacionais brasileiros para sensibilizar o público sobre eles e para reduzir o desmatamento, além de promover o monitoramento do desmatamento. Neste sentido, é com grande orgulho que podemos estar aqui com a agência Amazonas Real e com outros parceiros para discutir esses temas”, disse Walter Kerr.
Público ávido por informação de qualidade
Para receber o público no debate, a agência Amazônia Real abriu antes inscrições via e-mail. A receptividade foi maior do que o esperado na galeria do Icbeu. Compareceram cerca de cem pessoas ao evento, 40 a mais além dos 60 inscritos, entre jornalistas, professores, estudantes de jornalismo e de publicidade, profissionais das áreas de Ciências Sociais, Naturais e Ambientais, entre eles engenheiros, biólogos, ecólogos e antropólogos, entre outros.
O debate foi um evento multimídia, pois dispôs de acesso à internet disponibilizado pelo Icbeu, o que possibilitou as postagens nas redes sociais de textos e de fotografias produzidas simultaneamente pela equipe da Amazônia Real, entre eles, os repórteres Andrezza Trajano e Isaac Guerreiro.
O evento contou com a parceria na fotografia de Alberto César Araújo, do grupo FotoAmazonas. Atuaram na produção das quatro horas de transmissão os membros do Coletivo Difusão Kevin Thomé, Jonathan Chorona e Berg Lobato.
Para a mediadora do debate e uma das fundadoras da agência Amazônia Real, jornalista Kátia Brasil, o “O Desmatamento da Floresta Amazônia e a Crise Hídrica no Brasil” atingiu seu objetivo, que foi discutir os grandes temas da região amazônica fora do ambiente da redação, com os geradores do conhecimento científico e uma plateia ávida por informação de qualidade.
Elaíze Farias, editora e também fundadora da Amazônia Real, afirmou que o debate ajudou a aproximar os cientistas com o público que se interessa por temas socioambientais da Amazônia. Ela disse que a agência pretende realizar outros eventos semelhantes, sempre com a Amazônia como foco de debate.
Veja os principais destaques dos palestrantes.
A Amazônia é a caixa d´água do Brasil.
O primeiro palestrante a falar no debate “O Desmatamento da Floresta Amazônica e a Crise Hídrica no Brasil” foi o cientista Philip Fearnside. Ele é um dos maiores pesquisadores do planeta sobre mudanças climáticas e sobre impactos ambientais decorrentes de grandes empreendimentos na Amazônia. Ganhador do Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007, Fearnside disse, durante o evento, que a água produzida pelas folhas das árvores da floresta faz com que a Amazônia seja a caixa d´água do Brasil.
Segundo Fearnside, o que entra de água na bacia amazônica vem do Leste para o Oeste do Oceano Atlântico. São 10 trilhões de metros cúbicos de água por ano. O que sai da foz do rio Amazonas são 6,6 trilhões de metros cúbicos de água por ano. O que cai na floresta como chuva são 15 trilhões.
“Então é 50% maior do que entrou. A evapotranspiração, aquilo que sai pelas folhas das árvores, é de 8,4 trilhões de metros cúbicos por ano. Isso é muita água. Se transformar a região amazônica em pastagem, que é a tendência se ninguém fizer nada, aí não vai ter mais a evapotranspiração”, disse o cientista, que faz um alerta.
“A Amazônia é a caixa d´água do Brasil. Portanto, a água amazônica está presente nas chuvas em São Paulo. Elas provêm das florestas na porção oeste da grande bacia amazônica: Rondônia, Acre, oeste do Amazonas e Bolívia. O desmatamento nessas áreas terá um impacto mais direto sobre a chuva em São Paulo”, afirmou Philip Fearnside.
Eventos climáticos extremos como secas e enchentes
A apresentação do meteorologista Gustavo Ribeiro foi fundamental para compreender o clima da região na atualidade. Ele destacou que a Amazônia, por sua especificidade climática, tem apenas duas estações, chuvosa e menos chuvosa. Estações estas que se distinguem localmente entre si nos Estados da Amazônia devido à sua grandiosidade territorial. “Na própria Amazônia há períodos secos e chuvosos no mesmo período e na mesma região”, disse.
Ribeiro citou como exemplo o que acontece atualmente em Roraima, onde tem chovido abaixo da média, diferente de grande parte do Amazonas, que vive seu período chuvoso, com grandes impactos em muitas cidades do Estado. Ele destacou que nos últimos anos, a frequência de eventos extremos climáticos tem sido mais comum e apontou que a diversidade na região amazônica impõe o desafio para entender a distribuição espacial e temporal dos sistemas climáticos. “Nos meses chuvosos, o Amazonas tem a umidade elevada. Em Roraima é bastante seco. A Amazônia, por ser uma região muito grande, consegue ter essa diferença nas mesmas épocas”, disse o meteorologista.
Entender o sistema climático da Amazônia é um dos maiores desafios para a população, sobretudo para quem não mora na região. A Amazônia tem forte impacto de eventos como El Niño (aquecimento do Oceano Pacífico) e La Niña (resfriamento do Pacífico) e se estes acontecem em determinados períodos, os climas são agravados, com registro de grandes secas e grandes cheias na Amazônia, como as que aconteceram em 2005 e 2010, respectivamente.
Agenda ambiental retrocedeu e obras ganharam força
O geógrafo Carlos Durigan, que atua há mais de 20 anos na área de conservação e em projetos junto a comunidades ribeirinhas da Amazônia, fez uma análise da atual agenda ambiental do país, cuja opção dada pelos atuais governos impactam fortemente as ações de preservação da região amazônica. Ele também fez uma análise sobre os impactos das águas da bacia amazônica e sua perspectiva diante das mudanças do clima.
Na parte dedicada à pauta ambiental empreendida pelo poder público, Durigan observou que, nos últimos 10 anos, algumas agendas retrocederam e ações políticas de degradação, incluindo projetos de hidrelétricas, ganharam força.
“Até 2000 tivemos esforços muito grande da sociedade civil, ONG´s, movimentos sociais, redes sociais, movimentos indígenas e de agências de governo para o reconhecimento de territórios indígenas e unidades de conservação em diversas categorias. Cinquenta por cento da Amazônia brasileira tem algum tipo de proteção. Mas não adianta só criar. É preciso consolidar, caso contrário serão ameaçados pela onda de degradação”, relatou.
A perspectiva de se consolidar a pauta ambiental com ações de proteção da biodiversidade e da diversidade cultural amazônica, de gestão, de manejo e de geração de qualidade de vida caminhou até 2005, quando então os governos empreenderam o retrocesso e tudo mudou, segundo Durigan.
“De dez anos para cá uma nova realidade foi se conformando com base nas políticas desenvolvidas. Vem o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) nas questões de energia e ocupação da Amazônia, mas que não são ideias novas. São eixos de desenvolvimento pensados no final dos anos 60 e início dos anos 70 pelo regime militar e elites econômicas do Brasil, que viam a Amazônia como uma grande área a ser explorada e integrada ao resto do Brasil baseada na construção de rodovias e estabelecimentos e assentamentos rurais. O PAC é um plano antigo que foi retomado”, disse.
Conforme Durigan, a nova política de infraestrutura pressionada pelos interesses econômicos e pela articulação do capital, mais interessada em explorar a região, tirou de cena um cenário que propunha um projeto de desenvolvimento diferenciado.
“Este projeto mostrava que poderíamos desenvolver a região de uma forma diferenciada, com base em conservação. Mas sentimos que as políticas voltadas à consolidação de uma agenda socioambiental para a região perderam espaço para a agenda de infraestrutura. É importante mostrar que hoje só de hidrelétricas se fala que são mais de 150 projetos já consolidados em estudo para a Amazônia”, disse.
Carlos Durigan ressaltou que o posicionamento que defende não pode ser confundido com a mentalidade de quem é “contra o desenvolvimento”, mas que é preciso encontrar formas de desenvolver a região onde a manutenção e a sustentação da vida e de como ela é seja mantida. “São necessárias obras que incluem mitigação de seus impactos, obras bem planejadas e discutidas junto às comunidades e sociedade local e comunidade cientifica. É preciso um projeto diferenciado para a região. Temos condições de fazer isso, basta ter interesse político”, ressaltou.
Estiagem pode se prolongar em Roraima
O volume de água e a vazão das grandes bacias de água doce do mundo podem acabar? Para o geólogo Marco Oliveira, da CPRM, que há vários anos monitora os níveis dos principais rios da Amazônia e seu regime hidrológico, isso é pouco provável. Oliveira diz que as rochas, as fontes subterrâneas e o bloqueio provocado pela Cordilheira dos Andes, são responsáveis pela manutenção da produção hídrica da bacia amazônica.
E o que sobra para o restante do país? A julgar pelo cenário que se delineia na atualidade, regiões como Nordeste e Sudeste terão repetições de estiagens severas semelhantes como as que ocorrem atualmente, com prolongamentos de períodos de chuvas escassas.
Enquanto que, segundo ele, a Amazônia deverá ter aumento de umidade, com estações chuvosas mais pronunciadas e de forte impacto na população que não se adaptar. Somente nos últimos 10 anos, a Amazônia registrou cheias recordes. No rio Negro, em Manaus, por exemplo, foram registradas as maiores cheias em mais de 100 anos, uma em 2009 e outra em 2012.
Para suprir a demanda de água em outras regiões, seria preciso recorrer às águas da bacia amazônica. Neste sentido, Oliveira propôs que se discutam mecanismos de transposição de água da Amazônia.
“Se realmente houver mudança de clima, se a circulação atmosfera que vem da Amazônia começar a chegar com menos intensidade (nas outras regiões do país), não adianta fazer transposição do rio São Francisco ou do rio Paraíba, pois estes estão dentro do mesmo regime hidrológico, que é o do Nordeste. Então, esta é uma obra (transposição do rio São Francisco ou Paraíba) que se torna inócua. É preciso pensar de trazer água de outra bacia, onde existe essa água em abundância. Eu acho que deve ser da bacia amazônica”, destacou.
Apesar de defender um projeto de obra teoricamente tão vultosa, Oliveira enfatizou que se trata de políticas públicas de longo prazo, com uma engenharia que possua “concepção inovadora”, diferente da que se realiza na atualidade. “Seria uma obra que iria demorar duas dezenas de anos. Mas temos que pensar logo esse problema”, disse.
Conforme Marco Oliveira, a partir de sua nascente, o rio Solimões tem em torno de 50 mil metros cúbicos por segundo. A sua foz, possui mais de 234 mil metros cúbicos por segundo. A diferença para outros rios é extrema. O rio São Francisco, por exemplo, possui 1.200 metros cúbicos por segundo.
“Na Amazônia, existe uma oferta grande de água e uma população relativamente pequena. No Nordeste e Sudeste, há uma baixa oferta de água. Há um desequilíbrio. Ou a população vai migrar para a Amazônia ou teremos que dar um jeito de fornecer água para essa região”, disse.
Marco Oliveira contou que a região Sudeste já teve um período grande de estiagem, que foi entre os anos de 1935 e 1970. “Foi uma estiagem de mais de 30 anos. Só que naquela época São Paulo era uma cidade menor. O Brasil era um Brasil rural. Não foi tão percebida”, conta.
Durante o evento, o público também pode prestigiar a exposição “Maurbcaos” em cartaz na Galeria de Artes do Icbeu do artista plástico nascido Jandr Reis. Nascido em Óbidos (PA) e radicado em Manaus desde 1980, o artista produziu em tinta acrílica sobre grandes telas temas recorrentes da realidade urbana de Manaus, entre elas, as palafitas, as banquinhas de vendas de frutas e peixes regionais, é o que Jandr demostra na obra “Fast Food Baré”. A exposição estará aberta até o dia 8 de maio.
– Esta matéria foi originalmente publicada no Amazônia Real e é republicada através de um acordo para compartilhar conteúdo.