Foi preciso que as duas maiores cidades do país, São Paulo e Rio de Janeiro, ficassem sob a ameaça de colapso no fornecimento para que a grave realidade se impusesse à negligência e incompetência do governo, e à insensibilidade da população.
Em ritmo de crise, como nunca antes, para lançar mão da frase célebre de Lula, o país toma conhecimento da extensão do problema e sua complexidade. Normalmente autossuficiente, beirando a arrogância, o paulistano passou a se interessar pela Amazônia não mais como um tema exótico e distante, mas como um elo da cadeia das suas dificuldades e temores.
De forma cada vez mais constante, o boletim do tempo nas emissoras de televisão incorpora informações sobre o fluxo de nuvens carregadas que saem da Amazônia na direção sul.
Rios voadores passou a ser expressão do dia a dia dos moradores de São Paulo, literalmente despejados diante de uma circunstância única dentre as grandes cidades do mundo: o racionamento drástico de água. Essa conjuntura tem, como uma das suas principais causas, a rigorosa estiagem sobre as áreas dos reservatórios da capital paulista, provocando uma seca recorde.
Mas a diminuição das chuvas não é um fenômeno recente. A tendência para a redução se apresentou em 1999, mantendo-se contínua a partir de então. Mas a vida continuou normal, indiferente a esse aviso da natureza. Por comodismo ou oportunismo, que se acentua em temporada de caça aos votos, as administrações públicas confiaram numa providência divina aleatória. Sem ela, a corrida agora é contra o tempo para evitar que se consume a ameaça inédita de privar de água milhões de pessoas por dias seguidos.
Nesse ponto, os paulistanos passaram a se interessar por um fenômeno muito bem mostrado através de um documentário (Dança da Chuva), realizado pela Fapesp, a fundação de pesquisa de São Paulo. O filme explica um enigma: como é que uma área situada no centro-sul do continente, mesmo estando nessa faixa do planeta, não tem características semelhantes às dos grandes desertos, localizados na mesma posição.
Nesse quadrilátero, que tem São Paulo como o seu centro, destinado naturalmente a ser uma área desértica, se concentra 70% do PIB da América do Sul, com a região sul-sudeste do Brasil e a Argentina. É onde se produz mais energia, estão as maiores indústrias e a principal agropecuária. A região é pulverizada de água abundante por nuvens trazidas pelos ventos da Amazônia. São os rios voadores, expressão que passou a figurar no cotidiano das áreas ameaçadas pela falta de água.
São 17 bilhões de toneladas de aerossóis atmosféricos desviados na direção sul, um volume de água comparável à do rio Amazonas, o maior de todos, com seus 20 bilhões de toneladas despejados no Oceano Atlântico. Esse incrível deslocamento de massa de vapor em suspensão causa chuvas torrenciais e eventualmente tragédias, mas não tem conseguido estancar a progressiva estiagem em alguns pontos da região.
Seria o efeito do desmatamento na Amazônia. As grandes árvores amazônicas são que retêm o vapor vindo dos oceanos, que são a maior fonte de chuvas na Terra, além de lançar água ao ar pela evapotranspiração, funcionando como bombas de captação e lançamento através das suas copas e raízes. Sem as árvores, esse processo se desfaz.
A derrubada da floresta nativa da Amazônia já se aproxima de 800 mil quilômetros quadrados, o equivalente a três vezes a extensão de São Paulo. O tamanho dessa alteração teria que modificar os processos da natureza. Alguns fazem essa afirmativa de maneira categórica. Outros a suscitam ainda como hipótese, carente de uma plena confirmação científica. Outros negam a relação causal.
Ninguém pode negar o fenômeno, qualquer que seja a explicação para a interferência humana nele. Mônica Porto, gerente de água da Escola Politécnica de São Paulo, uma das entrevistadas do documentário da Fapesp, argumenta que o desmatamento alterar o volume de água em circulação entre o verão e o inverno, mas em função da própria natureza, não da participação humana.
Ela diz que a água que escoa pelas raízes das árvores pode ser barrada quando as drenagens para as quais ela se dirige estão cheias, mas é liberada quando o nível dos cursos d’água baixa. Mas haverá sempre água circulando. A diferença estará no seu aparecimento superficial.
O esquema ignora que a supressão da cobertura vegetal acarreta o aquecimento do solo, que reduz a umidade e interrompe o ciclo da água, além de desencadear outros processos, como a compactação do solo e a erosão.
Ainda que o efeito dessa ação humana sobre a natureza não esteja cientificamente demonstrado em todas as suas etapas, ele se evidencia na própria região. É perceptível empiricamente a mudança de microclimas e até além deles nas áreas que perderam a sua vegetação original.
À parte essas complexidades, observadas há muito mais tempo do que podem sugerir os estudiosos de hoje, diferenciados dos mais antigos por sua parafernália tecnológica contra a percepção a olho nu (e inteligência ultra-aguçada), o conhecimento autoriza o pesquisador Antonio Nobre, do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), de São Paulo, a dizer que a Amazônia é uma “usina de serviço ambiental”.
Não quer dizer que a região deva cobrar uma taxa por seus rios voadores, seguindo a cômoda prática dos governos estaduais de reduzir as questões à cobrança de tributos e derivados. Esse é um serviço prestado pela natureza. Mas há um ingrediente humano nessa história: é a destruição do bem mais nobre da região, e que a define como tal: a floresta.
Se é útil ao quadrilátero mais rico do continente que a água continue a seguir sua rota natural de norte para o sul, o pagamento pode ser feito pelo apoio às pesquisas capazes de esclarecer esse processo e por medidas que não só inibam o desmatamento como disseminem uma nova cultura em seu lugar, a do uso da floresta.
Por sua nobreza, esse bem deve ser destinado a mais do que madeira sólida ou ser substituído por plantios de soja e pastagem de gado. Deve ser o fundamento do precioso serviço ambiental que a Amazônia presta à parte mais rica do Brasil e da América do Sul. Se as águas circulam numa direção pelo ar, por terra pode e deve ser feita a contrapartida de recursos materiais para sustentar esse ciclo e reduzir as desigualdades econômicas e sociais.
Para que esse enunciado não se torne uma utopia boba, as autoridades responsáveis pela questão devem utilizar sua competência e seu dever de ofício para conferir a autonomia que a questão da água merece e exige. Ou então a incrível crise hídrica que a região mais rica do país está vivendo (e sofrendo) não deixará as lições necessárias.
A água é um bem vital. Isso todos aprendem nos primeiros manuais escolares, mas poucos o transportam para suas vidas. Esse desligamento deixou de existir. Deve-se aproveitar o interesse, os sacrifícios e o sofrimento de centenas de milhares de pessoas para dar um sentido prático a esse saber essencial.
Não se pode mais continuar a maltratar a água no Brasil. Ela é a companhia diária de todos, nas suas muitas serventias. A principal delas deriva da sua potabilidade. Captar, tratar e distribuir água devia ter a prioridade que não lhe é dada no Brasil. Um novaiorquino abre a sua torneira e bebe uma das melhores águas do mundo.
Mas paga todos os anos para que os mananciais, em sua forma natural, sejam mantidos em condições de uso a uma distância de até 200 quilômetros da cidade. Por ser justo, é um pagamento que atrai os donos das terras onde estão essas fontes hídricas. Em muitos casos, preservar a água se tornou a principal fonte de faturamento desses proprietários rurais.
O suprimento de água potável no Brasil é uma calamidade pública. Talvez o impacto atual, especialmente em São Paulo, consiga mudar esse panorama. A conta do descalabro será cobrada de qualquer maneira e agora os maus administradores públicos já não contarão com o alheamento (em alguns casos, ignorância) da sociedade.
Gestão de água deverá ser a nova qualificação profissional requerida pelo mercado. Não uma gestão fracionada, esgotada em cada especialidade. Uma gestão multidisciplinar. A sociedade precisa estar bem informada (e formada) para não deixar mais que um assunto de tal gravidade seja conduzido apenas pelo governo. O chamado controle social é indispensável. Na Amazônia, que abriga a maior bacia hidrográfica do planeta, essa deve ser uma função de Estado.
Não são apenas os rios voadores que migram do norte para o sul: é também a energia, extraída dos cursos d’água e conduzida por longas e caras linhas de transmissão. A Amazônia tem sido apenas a base física desse processo. As decisões sobre onde, como e para quem destinar essa energia são tomadas fora da região e ignorando-a. Aos nativos cabe apenas as rusgas da resistência, exercidas através de manifestações de protesto que paralisam ocasionalmente as obras e retardam o seu cronograma físico e financeiro. Mas não as inviabilizam. Nem, eventualmente, modificam o seu perfil.
A Amazônia é província colonial para todos os usos da água. Mas não inevitavelmente tem que ser assim. Essa função é uma exigência de entidades mais poderosas, dentro e fora do país, que precisam de muita energia para sua produção. Tal premissa elide qualquer consideração que ameace essa demanda. Mas a posição amazônica podia estar melhor exercida se pudesse se consolidar com os conhecimentos e as informações adequadas.
A hidrelétrica de Belo Monte exemplifica essa tensão. Ela foi concebida originalmente como uma réplica de Tucuruí, projetada, construída e posta para funcionar no período do regime militar (sua inauguração ocorreu em 1984). Com a democracia, a hidrelétrica do Xingu foi submetida a questionamentos e contestações. O desenho original foi modificado para atender a principal crítica: a inundação de uma área extensa para a formação do reservatório.
O lago artificial foi reduzido a um terço da sua previsão inicial, que era de 1,6 mil quilômetros quadrados. Dos 503 km2 que restaram, 228 km2 correspondem à própria calha do rio Amazonas e seu transbordamento durante o período de cheias. Assim, a submersão de área nova será de 275 km2.
É água que dá apenas para acionar as seis turbinas bulbo que serão instaladas no vertedouro principal e manter a vazão mínima do rio Xingu na Volta Grande, que fica abaixo (a jusante) do barramento, em 700 metros cúbicos de água por segundo, acima da mínima normal, de 400 m3. Se mantido esse compromisso, poderá haver menos água na cheia nesse trecho, porém mais na seca. Ainda assim, as populações ribeirinhas de índios e caboclos temem prejuízos da nova situação do rio.
Apesar de aí, no sítio Pimental, estar o principal vertedouro do complexo hidrelétrico, sua estrutura abrigará apenas as turbinas de baixa potência, que funcionam com desnível de quatro metros, produzindo 2% da energia total do sistema. Daí se dizer, com certa impropriedade, que se trata de usina a fio d’água, capaz de produzir com vazão corrente, sem precisar de retenção da água.
As 18 grandes turbinas, que serão responsáveis por 98% dos mais de 11 mil megawatts de potência instalada, estarão a 140 quilômetros de distância. Sua grande vantagem (como do sítio escolhido pelos engenheiros para o aproveitamento energético) é o desnível de 90 metros nessa curta distância, que garante a velocidade da água, suficiente para acionar as imensas turbinas, que exigem quase 800 mil litros por segundo.
Parte substancial da vazão do Xingu será desviada do seu curso normal por canais de derivação para um reservatório complementar, que ficará fora da calha do rio. Esse lago, que aproveitará drenagens naturais e também áreas novas que serão inundadas, terá suas margens garantidas por diques de concreto. Eles terão múltiplas funções: reter água, manter a vazão controlada, drenar o excesso de água de volta ao rio e proteger os igarapés.Ninguém jamais concebeu um esquema desses para uma hidrelétrica no Brasil (e, talvez, no mundo).
A movimentação de terra para a construção do canal de derivação, que terá 20 quilômetros de extensão, 200 metros de largura e até 20 metros de profundidade, será bem maior do que a da construção do canal do Panamá (126 milhões e 95 milhões de metros cúbicos, respectivamente). Esses números dão uma ideia da grandiosidade da obra. E também da sua complexidade, sobretudo porque nada igual foi construído antes.
Tudo isso para eliminar o aspecto mais vulnerável de uma grande hidrelétrica na bacia de rios de baixa declividade natural e muita diferença entre o máximo e o mínimo de vazão durante o ano: o alagamento de extensas áreas, inclusive as cobertas por densa vegetação.
Mesmo com a compensação representada pelo reservatório complementar e o canal de derivação, não haverá água suficiente para acionar todas as 18 turbinas principais de Belo Monte durante três ou quatro meses do ano, quando a usina ficará parada. Por isso, sua potência efetiva o ano inteiro terá apenas 40% da capacidade nominal, de mais de 11 mil MW, que a coloca como a terceira maior hidrelétrica do mundo.
Vale a pena gastar tanto dinheiro e expor a natureza e a população local aos riscos dessa intensa intervenção humana para ter uma usina de geração firme tão inferior à da sua potência de projeto? Os engenheiros não hesitam em responder afirmativamente, mas seus cálculos não estão ao alcance da sociedade para avalizá-los agora. E estavam ainda menos acessíveis quando a decisão de construir Belo Monte foi tomada.
Espera-se que isso nunca mais se repita para que os custos da atual crise hídrica do Brasil rico sirvam de lição para todo o país. Em especial, sua maioria pobre.
– Esta matéria foi originalmente publicada no Amazônia Real e é republicada através de um acordo para compartilhar conteúdo.