Às margens do rio Negro, manauaras aproveitam a grama que surgiu durante a estação seca, criando um espaço propício para relaxar. No entanto, com a retomada do nível normal do rio, a vegetação pode causar desequilíbrio ambiental e até propagar doenças.
Nas tardes de sábado durante a estação seca amazônica, dezenas de manauaras foram às margens do rio Negro, na capital do Amazonas, para desfrutar da grama macia. Adolescentes aproveitaram para jogar futebol, enquanto casais levaram cadeiras de praia para ouvir o canto dos pássaros, agora misturado ao funk que saía de algumas caixinhas de som.
O novo passeio de Manaus traz uma ironia: apesar de ser uma opção de lazer “verde”, é resultado da seca histórica que levou o rio Negro aos níveis mais baixos de sua história, deixando hectares de terra exposta para as gramíneas florescerem. A paisagem inclui formações rochosas e uma vista das águas sob a sombra da ponte Jornalista Phelippe Daou.
A seca deste ano, um exemplo do impacto que as mudanças climáticas podem ter na Amazônia nos próximos anos, levou alguns dos principais rios da região aos níveis mais baixos em 122 anos. O fenômeno privou comunidades de sua única fonte de água potável, renda e transporte. Segundo a Defesa Civil, centenas de milhares de pessoas foram afetadas apenas no estado do Amazonas.
Os impactos negativos do parque
Manaus não conta com muitos espaços verdes como esse novo “parque”. Apesar de estar localizada dentro do bioma Amazônia, a cidade possui uma das menores taxas de arborização entre as capitais brasileiras e dispõe de apenas um punhado de parques, espalhados entre suas estradas movimentadas e congestionadas.
Assim, em setembro deste ano, os moradores de Manaus descobriram o lado positivo da grama que surgiu nas proximidades do rio Negro e começaram a atravessar a ponte Jornalista Phelippe Daou, também conhecida como Ponte Rio Negro, para passar o tempo livre. No entanto, especialistas entrevistados pela InfoAmazonia alertam que, com a subida do rio, a decomposição das gramíneas pode desequilibrar o ecossistema aquático e favorecer a propagação de doenças.
Flávia Costa, bióloga do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), explica que o crescimento de gramíneas em áreas anteriormente submersas é um fenômeno relativamente comum na Amazônia. “O tempo todo há partes do rio sendo ‘quebradas’ e outras formadas”, disse. “O processo natural começa com as graminhas; depois surgem plantas um pouco maiores, arbustos, e, eventualmente, chegam as árvores… Então, isso é normal, não há nenhum problema”.
No entanto, é incomum que esse fenômeno ocorra em margens secas de rios que logo voltarão a ser submersas, como na área próxima à ponte onde o parque natural se formou. “A extensão em que isso está acontecendo agora é fora do comum, assim como o local”, explicou Costa. “Não é uma nova praia que foi formada, mas uma área que normalmente está debaixo d’água e que só está passando por essa colonização [das plantas] porque o rio baixou demais”.
Com a subida do rio, essas gramíneas podem bloquear parte do fluxo da água, criando áreas propícias à reprodução de mosquitos transmissores de doenças, segundo Costa. Além disso, as plantas podem dificultar a entrada de luz solar no rio, provocando alterações significativas no ecossistema.
A decomposição das gramíneas submersas também reduz os níveis de oxigênio e pH da água, que se torna imprópria tanto para o consumo humano quanto para a fauna aquática. “Não é uma água boa para os peixes, nem para a maioria dos insetos invertebrados”, alertou. A especialista explica que alguns impactos ambientais podem ser temporários, mas os problemas associados a eles, como o aumento de mosquitos e as doenças decorrentes do consumo de água não potável, podem ser duradouros e precisam ser monitorados pelo governo.
Lazer temporário e a importância das áreas verdes
Os moradores de Manaus relatam sentimentos contraditórios em relação ao novo espaço, dadas as circunstâncias ambientais. Jovanio Gomes, que estava à beira do rio ensinando seu filho a pescar em uma tarde de novembro, afirmou que, apesar do ambiente agradável do parque, a seca trouxe “mais prejuízo que benefício”.
Anderson José, morador de Manaus, disse que faz “muita falta para o manauara um ambiente como esse, onde as famílias podem chegar, sentar, conversar e se divertir”. Por outro lado, disse que o parque natural é “lindo”, mas “estranho e também assustador”.
Segundo Yêda Arruda, líder do projeto Árvores do Asfalto, grupo de pesquisa da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) dedicado ao estudo da arborização urbana, há razões históricas para Manaus não ser uma cidade arborizada. Originalmente, os europeus colonizadores da cidade associaram a vegetação ao primitivismo e começaram a trabalhar “dizendo que o progresso é o concreto”.
Essa visão de planejamento urbano inicial se combinou mais tarde com o crescimento rápido e horizontal da cidade, que foi em grande parte não planejado, especialmente após a criação da Zona Franca e a migração de trabalhadores rurais para Manaus. “Com isso, criou-se uma característica de invasão na cidade de Manaus”, disse Arruda. Isso dificultou que o governo, mais tarde, conseguisse reivindicar espaço dos moradores para construir parques em meio a uma das capitais da Amazônia.
“Parques criam um ambiente harmônico de natureza perto do indivíduo. Estudos já mostram que esses ambientes trazem muitos benefícios para o ser humano, tanto para a saúde física quanto para a saúde mental”, defende Arruda. A especialista pontua, no entanto, que “fica triste” pelo novo parque ter surgido em função de um problema ambiental como a seca.
A mesma visão tem Flávia Costa, do INPA: “a população está tão sem opções que precisa acontecer uma desgraça como a seca de 2023 e de 2024 para as pessoas terem um lugar de lazer”.