Fita silver tape, rastros de pneu e pegadas. Foram nos vestígios mais improváveis que a Polícia Civil encontrou os indícios que levaram à comprovação da existência de uma milícia armada instalada na Assembleia Legislativa de Roraima (ALERR). Segundo as investigações, o grupo era comandado pelo deputado Jalser Renier (Solidariedade) e formado por policiais militares de elite, incluindo três coronéis e um major, todos lotados no Serviço de Inteligência e Segurança Orgânica da Assembleia (SISO). Entre 2015 e 2020, por ordens do deputado, o grupo teria praticado uma série de crimes, incluindo espionagem de adversários, sequestro, fornecimento de armas para garimpos ilegais e segurança armada para empresas e políticos. A polícia também identificou ligação do grupo investigado nos negócios da financeira By Money, que movimentou de forma ilícita mais de R$ 90 milhões no ano passado e que “faliu” logo após as primeiras prisões dos envolvidos.
O SISO foi criado pelo próprio deputado Jalser em 2016, quando ocupava a presidência da ALERR, e tinha como atividade principal a apuração de fatos relacionados ao parlamento roraimense. No entanto, as atividades do grupo iam muito além dos interesses institucionais da Assembleia.
A mando do deputado, policiais do SISO teriam planejado e executado o sequestro e tortura do jornalista Romano dos Anjos, durante as eleições municipais de 2020, além de promoverem uma série de interferência para atrapalhar as investigações do caso.
“Juntamente com o SISO, ele criou na ALERR uma verdadeira milícia, com especialistas em inteligência, oficiais e soldados militares de elite, leais a ele (incluindo integrantes de sua guarda pessoal) com a finalidade de servirem a seus caprichos e intimidarem seus adversários políticos”, definiu o Ministério Público de Roraima na denúncia apresentada em outubro do ano passado e que resultou na prisão de Jalser e outras 10 pessoas durante a Operação Pulitzer da polícia civil. Nove denunciados são policiais militares.
Jalser foi preso em 1º de outubro de 2021, na segunda fase da operação. Mas cinco dias depois, em 6 de outubro, conseguiu um habeas corpus no STJ e passou a usar tornozeleira eletrônica. Mesmo assim, o deputado ficou pouco tempo sob monitoramento da Justiça. Em dezembro do ano passado, em decisão colegiada, o Tribunal retirou o equipamento do parlamentar.
Apesar de a polícia e o Ministério Público entenderem que o deputado é o mentor intelectual da milícia, Jalser é o único entre os 10 denunciados que está solto, protegido por sua imunidade parlamentar. Todos os demais denunciados seguem presos preventivamente.
Planos de uma ordem hierárquica
As investigações apontam que o grupo seguia rigidamente a hierarquia militar. As ordens eram passadas aos coronéis Paulo Cézar, Natanael Felipe e Moisés Granjeiro, que por sua vez repassavam aos militares de baixa patente para execução.
O InfoAmazonia teve acesso à denúncia do MP, que tem como base o inquérito policial, com quase 4000 páginas, e depoimentos colhidos pela Força Tarefa designada para investigar o sequestro do jornalista.
O próprio governador de Roraima, Antonio Denarium (PP), afirmou em depoimento que foi procurado e ameaçado de morte pelo deputado, que teria dito que daria um tiro em Denarium e depois se mataria, se o governador não parasse a investigação.“Ele ficou aborrecido com a situação e naquele momento lá ele me falou que se por acaso [a investigação] chegasse no Coronel Paulo Cézar e que ele fosse preso ele me dava um tiro e se matava, ou seja, esquentou um pouco os ânimos ali e a conversa já terminou”, disse o governador em depoimento ao Ministério Público.
Coronel da reserva e na época chefe da segurança institucional da Assembleia Legislativa, Paulo Cézar teria planejado o sequestro e tortura do jornalista Romano dos Anjos a pedido de Jalser. Apesar de adotarem uma série de cuidados para não serem descobertos, como manter celulares desligados na noite do crime, 26 de outubro de 2020, e de serem criteriosos nas trocas de mensagens por telefone e internet, o grupo não contava com astúcia do delegado João Evangelista dos Santos, que se concentrou em detalhes para rastrear os criminosos que o levaram até o gabinete da presidência da Assembleia.
Os restos de uma fita adesiva do tipo silver tape —mais reforçada que as normais—, pegadas de coturno e marcas de pneus foram algumas das pistas deixadas pelo grupo. Além disso, os policiais fizeram uma varredura em torres de celulares e descobriram que membros da quadrilha monitoravam o jornalista dias antes do crime.
Jalser deixou claro a sua preocupação com o rumo das investigações do caso Romano. Antes mesmo de ser tido como suspeito, o deputado tentou articular a troca do delegado titular do inquérito. Sem sucesso, acabou dedurado pela cúpula da Segurança Pública, pelo governador Denarium e pelo chefe da Casa Civil, deputado e soldado da PM Sampaio (PCdoB) —atual presidente da ALERR—, que confirmaram as ameaças contra o chefe do executivo.
Ao delegado-geral da Polícia Civil, Herbert Amorim, procurado pelo deputado por telefone dias depois do crime, Jalser Renier teria dito: “Se tiver de matar alguém, eu vou lá e mato, se tiver que bater, eu vou lá e bato, eu não preciso mandar ninguém fazer isso não, isso é uma covardia que vocês estão fazendo”. Em depoimento à força-tarefa do MP, o delegado Herbert Amorim disse que Jalser se dirigia aos investigados como “meus coronéis”, afirmando que não poderiam ser presos.
Para a investigação, o desespero de Jalser soou como um “atestado de confissão”:
“O denunciado Jalser [Renier] não era apenas o superior hierárquico dos demais investigados, mas com participação ativa, dirigia finalisticamente os demais, não apenas criando e aparelhando a milícia composta, majoritariamente, de policiais das forças de elite de sua confiança, mas coordenando suas atividades criminosas e tentando interferir ilicitamente na investigação para se ‘blindar’ e proteger seus subalternos”, apontou o MP.
A mando do deputado, policiais do SISO também teriam monitorado outros deputados e parentes de membros do Ministério Público. O próprio jornalista Romano dos Anjos registrou boletim de ocorrência após o sequestro, quando foi intimidado por seguranças do deputado em frente a sua casa. Na ocasião, Romano foi procurado por um dos denunciados, que chegou na frente de sua casa, tirou foto e enviou por mensagem perguntando: “tá em casa?”.
Além de Jalser também foram denunciados na Operação Pulitzer os militares Paulo Cézar, Natanael Felipe e Moisés Granjeiro, todos os três coronéis, o major Vilson Araújo, o subtenente Clóvis Romero, e os praças Gregory Thomas, Nadson Nunes, Thiago Teles e o ex-servidor comissionado Luciano Benedicto Valério.
Jalser é visto hoje como um dos mais poderosos políticos do estado. Conhecido como “menino de ouro”, o deputado, que tem 28 anos como parlamentar e está em seu sétimo mandato, já esteve envolvido em outros casos policiais como o “Escândalo dos Gafanhotos” e as operações “Royal Flush” e “Cartas Marcadas”.
Perpetuação no poder
Segundo a Força Tarefa do Ministério Público de Roraima, a criação do Serviço de Inteligência na Assembleia tinha como principal objetivo “a perpetuação do comando” do deputado como presidente da ALERR. O que de fato se confirmou entre 2015 e 2021, quando Jalser Renier reinou praticamente soberano à frente do parlamento roraimense, se reelegendo ilegalmente de forma consecutiva para o cargo.
Com apenas 72 servidores efetivos e mais de 2.600 servidores comissionados, a ALERR se tornou um verdadeiro cabide de empregos. Em média, cada deputado tinha mais de 100 cargos de comissão nomeados. Todo esse contingente passava pelas decisões do presidente. Em 2019, os ministérios públicos do Trabalho e do Estado (MPT e MPRR) entraram com ação para obrigar a Assembleia a exonerar o número excessivo de servidores comissionados.
Jalser perdeu o comando da Assembleia no início de 2021, quando ia para o sexto ano como presidente do legislativo. Ele acabou afastado por decisão do ministro Alexandre Moraes, do STF, que apontou inconstitucionalidade nas seguidas reconduções do deputado ao cargo e determinou novas eleições. Por decisão do próprio STF, a reeleição no legislativo segue a mesma regra que para presidente do executivo, permitida uma única vez.
Na última quarta-feira, 09 de fevereiro, o presidente do STF, ministro Luiz Fux, também determinou a retomada do processo de cassação de Jalser por quebra de decoro na Assembleia de Roraima. No final do ano passado, o desembargador Mozarildo Cavalcanti, do Tribunal de Justiça de Roraima (TJRR), suspendeu os trabalhos da comissão no dia em que Jalser iria prestar depoimento. Sites locais apontaram relação de amizade entre Jalser e Mozarildo. Na denúncia da Operação Pulitzer, o desembargador se julgou suspeito. O TJRR redistribuiu o processo para o desembargador Almiro Padilha, que ainda não se manifestou.
O processo na comissão de ética foi retomado esta semana, com o retorno do recesso parlamentar. No entanto, ainda não foi definida data para o depoimento do deputado Jalser. O parlamentar ainda responde a outros dois pedidos de cassação do mandato.
Com a saída compulsória de Jalser da presidência, uma das primeiras medidas do deputado Sampaio (PCdoB), escolhido em votação secreta, foi extinguir o SISO e exonerar os policiais lotados no departamento. Da tribuna da Assembleia disse que ele próprio tinha sido monitorado pela organização.
“Do meu ponto de vista, tinha instituído dentro da Assembleia um serviço de arapongagem contra as pessoas que não compunham a base, vamos dizer, de alianças políticas do deputado Jalser”, declarou o deputado que disse ter flagrado policiais do SISO o vigiando ainda em 2019.
“Eu peguei as filmagens da câmera da minha casa, dos vizinhos, juntei todas, identifiquei o policial, inclusive é um dos que estão presos, trabalhava na inteligência com carro da Assembleia”, afirmou o atual presidente da ALERR.
Nas próximas duas reportagens, o InfoAmazonia mostra a relação da milícia de Jalser com o garimpo ilegal na terra Yanomami e como agiu dentro e fora da ALERR para ampliar o seu poder, sequestrando um jornalista e lucrando com serviços e operações financeiras ilegais.
PARTE 2 : O sequestro, as pistas e os negócios de uma milícia amazônica
PARTE 3 : Polícia investiga atuação da milícia no fornecimento de armas para garimpo na Terra Yanomami
Gostaria de receber matérias de vcs gosto do tipo investigativo
Gostaria de receber matérias de vcs
Graças a Deus e ao atual presidente da ALERR esse tal SISO foi desarticulado e extinto, pq isso era uma grande vergonha, mantido com o nosso dinheiro!
Sou do Rio e passei quase 2 anos em Boa Vista. Cidade maravilhosa, mas com problemas gritantes com a coronelagem típica dos feudos políticos. O preconceito com os grupos indígenas são reforçados no dia a dia junto a população vendendo a garimpagem como salvação econômica. O desprezo as causas ambientais pelas autoridades e latente. Espero que isso não se transforme em mais um caso de “falta de provas”..