Em Humaitá, cidade localizada às margens do rio Madeira e no cruzamento de duas grandes rodovias amazônicas, um projeto de infraestrutura vem com a promessa de trazer crescimento e progresso. Mas provoca medo do desmatamento, enquanto a fronteira agrícola avança.
Vista do canteiro de obras do anel viário de Humaitá, com o intuito de evitar o tráfego de caminhões no centro da cidade e facilitar o acesso ao porto às margens do rio Madeira. Foto: Avener Prado.
Sozinho em um canteiro de obras nas calmas estradas de terra de Humaitá, município de 56.000 pessoas no sul do estado do Amazonas, um jovem pedreiro olha para o nada. O silêncio só é quebrado pelos sons da vida selvagem local.
Mas em breve, quando a terra vermelha for pavimentada com concreto, essas estradas vão ouvir outro tipo de barulho: o de inúmeros caminhões carregando soja — a grande maioria plantada e cultivada em outros estados — em direção aoporto de grãos de alta tecnologia recém-construído na cidade.
O “Cinturão da Soja” integrará Humaitá, cidade que tem sido assolada pelo desmatamento ilegal, ao corredor logístico fluvial da Amazônia, que já movimenta um quinto das exportações de soja do Brasil. Do novo porto, segundo especialistas locais, as cargas serão enviadas pelos rios Madeira e Amazonas antes de seguirem para o exterior, principalmente para a China e Europa.
A maior parte da soja que vai passar por Humaitá virá de Rondônia, um estado que, historicamente, tem sido associado à produção de carne e madeira — assim como ao desmatamento ilegal, incêndios e conflitos fundiários. Mas dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que nos últimos dez anos, Rondônia — que faz fronteira com o Mato Grosso, coração da indústria da soja no Brasil — quase triplicou a área utilizada para plantar soja. Produtores locais esperam que a produção de 2021 atinja 420 mil hectares.
Ainda é uma quantidade ínfima em comparação com o super produtor de soja Mato Grosso, que plantou 9,2 milhões de hectares em 2019, mas a produção de Rondônia já supera a dos vizinhos Amazonas e Acre, o que aponta para o avanço da fronteira da soja.
Em 2020, de acordo com os dados de exportação do ComexStat do Brasil, seis países — Holanda, Espanha, Turquia, México, Inglaterra e China — responderam por 80% das exportações de soja de Rondônia. Hoje, dois terços dos municípios de Rondônia estão produzindo soja.
A Moratória da Soja, um acordo cada vez mais impopular entre muitos produtores rurais, mas defendida por ambientalistas por acreditarem que tem protegido a floresta amazônica, bloqueia a compra de soja por parte de empresas multinacionais quando a commodity se origina de terras desmatadas após 2008.
Isso significa, na prática, que os produtores apenas plantam em terras que já foram abertas — para pastagens de gado, por exemplo — antes do prazo de 2008, em vez de desmatar novas áreas.
De acordo com o último relatório da Moratória, menos de 2% da área total de soja para o ano agrícola de 2018-19 na Amazônia correspondeu a “não conforme” [área em desacordo com a Moratória]. Mas de acordo com Cristiane Mazzetti, uma ativista florestal do Greenpeace, é comum que as lavouras de soja nos estados amazônicos sejam plantadas em biomas não cobertos pela Moratória, como o Cerrado. Para Mazzetti, falta transparência sobre as propriedades de plantio de soja em Rondônia, o que dificulta a prestação de contas.
No geral, de acordo com a Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove), a quantidade de soja cultivada em áreas “não conformes” cresceu 23% na safra 2019-2020. Em termos percentuais, a área de soja “não conforme” de Rondônia foi a que mais cresceu, com 4.500 hectares para a temporada — um aumento de 54% em relação ao período anterior, mas pouco mais de 1% da produção total do estado.
Ainda assim, a expansão da soja, uma das commodities mais lucrativas do Brasil, tende a deslocar também fazendas de gado de baixa produtividade, conforme analisa Ricardo Gilson da Costa Silva, geógrafo da Universidade Federal de Rondônia.
“A soja é uma mercadoria ligada ao mercado externo que exige quantidades crescentes de terra”, disse ele. Isso, por sua vez, empurra os mercados de madeira ilegal, criação de gado e especulação de terras para áreas rurais mais distantes, aumentando a pressão sobre as reservas indígenas e áreas protegidas, acrescenta.
É um processo que ele chama de “rondonização”: desenvolvimento desregulado, desmatamento, crescimento das cidades e eventual deslocamento de pequenas propriedades em favor dos grandes produtores.
Recentemente, a Assembleia Legislativa de Rondônia aprovou um projeto de lei que reduz drasticamente o tamanho de duas unidades de conservação florestal — em um total de 200.000 hectares — que haviam sido ilegalmente invadidas por grandes criadores de gado. Críticos classificam o projeto de lei como “grilagem legalizada”. O projeto de lei espera ser sancionado pelo governador de Rondônia, Coronel Marcos Rocha, um firme aliado do presidente de extrema-direita Jair Bolsonaro.
Polo Agroindustrial do futuro
Humaitá fica no entroncamento de duas das rodovias mais importantes da Amazônia — a BR-319 e a BR-230 “Transamazônica” — e fica às margens do rio Madeira, a segunda hidrovia mais importante para o transporte de grãos e outras mercadorias da região, atrás somente do rio Amazonas.
O município também é rodeado por áreas florestais protegidas, incluindo reservas indígenas e unidades de conservação destinadas a deter o avanço da fronteira agrícola.
Construído pelo governo estadual a um custo de 46,5 milhões de reais e com conclusão prevista para dezembro de 2021, o “Cinturão da Soja” é um sistema de anel viário que permitirá que caminhões que transportam soja contornem o centro da cidade, possibilitando um transporte mais rápido dos grãos.
Especialistas locais dizem que a vantagem é clara: uma balsa carregando soja, grãos ou outras mercadorias de um dos portos fluviais de Porto Velho, capital de Rondônia, leva em média 36 horas para chegar a Humaitá devido a um gargalo no rio. Além disso, dizem, durante a estação seca, quando o rio é mais raso, as balsas só podem operar com metade da carga e os acidentes são comuns.
Mas, como avaliam os especialistas, um caminhoneiro pode fazer a mesma viagem por estrada em apenas três horas para descarregar grãos que dali descem pelo rio Madeira até os portos de Itacoatiara e Santarém. De lá, os grãos são enviados para o exterior pelo Oceano Atlântico.
Proprietários de terras e líderes empresariais locais estão otimistas. O grupo acredita que o “Cinturão da Soja” vai viabilizar as exportações agrícolas locais e elevar os preços da terra. E com o fluxo de caminhoneiros, dizem, a cidade precisará de mais hotéis, postos de gasolina, farmácias e supermercados, gerando centenas de empregos.
“Humaitá será um grande centro de negócios do estado do Amazonas”, diz Luiz Schmidt, diretor da associação comercial local. Schmidt possui 10 mil hectares de terra na região, onde cria gado e cultiva diferentes lavouras. Schmidt plantou soja no passado. Agora, com a promessa de o porto gerar bons retornos devido aos baixos custos logísticos, ele espera começar de novo.
A cidade de Humaitá começou com o plantio de pequenas quantidades de soja no final dos anos 1990. Mas com a queda dos preços internacionais e aumento dos custos após 2006, a produção local despencou. A produção voltou a crescer em 2017, com a Fazenda Santa Rita, localizada no km 15 da na BR-319, sendo a pioneira. O local é responsável pela maior lavoura de soja do estado, com 250 hectares plantados em 2019, segundo a mídia local.
Valdenor Cardoso, presidente do Instituto de Desenvolvimento Agropecuário e Florestal Sustentável do Estado do Amazonas (Idam), diz que hoje o município tem 2700 hectares de soja plantada, praticamente respondendo por toda a soja registrada no estado do Amazonas. Ele espera um aumento de 50-100% nos próximos anos em áreas já abertas e prontas para plantar.
Para Cardoso, a temperatura da região combinada com seus ricos “campos naturais” (uma área de transição natural entre campos e floresta em Humaitá conhecida como “Campos de Humaitá”) a torna ótima para o cultivo de lavouras — entre elas a soja — sem a necessidade de desmatar.
Com o “Cinturão da Soja” e outros projetos de infraestrutura, Cardoso vê em Humaitá um potencial “inegável”. Como resultado, “tanto as médias como as grandes empresas do agronegócio estão se instalando por lá”.
“Humaitá está destinada a ser um grande pólo agroindustrial”, afirma.
Mesmo com um aumento de 100% na produção de soja, Humaitá dificilmente alcançaria a marca de 5 mil hectares necessária para entrar na lista de municípios monitorados pela Moratória da Soja. E nem seus “campos naturais” são um bioma monitorado sob o acordo.
Cristiane Mazzetti, ativista do Greenpeace, alerta que o alto volume de agrotóxicos necessários para a produção de soja pode danificar os solos locais a ponto de exigirem volumes crescentes de produtos químicos para garantir o cultivo.
“Qualquer que seja a conversão de um ambiente natural é problemática porque estamos vivendo uma crise climática”, disse ela.
A capital da soja do “Cone Sul” de Rondônia
Em 1995, a região do “Cone Sul” de Rondônia foi palco de um dos mais notórios massacres rurais do Brasil. Uma milícia rural de pistoleiros e policiais militares atacou um grupo de de centenas de pequenos agricultores que ocupavam uma propriedade rural no município de Corumbiara. Pelo menos dez pessoas foram mortas, incluindo dois policiais e uma criança de nove anos, enquanto outros teriam desaparecido.
Hoje, o “Cone Sul”, que faz fronteira com Mato Grosso — o maior produtor de soja do Brasil — é responsável pela grande maioria da produção de soja de Rondônia. A cidade de Vilhena é a maior produtora de soja, com 42 mil hectares plantados em 2019.
Vilhena é também a base do Grupo Masutti, que opera o porto de grãos em Humaitá e é tido como o maior beneficiário do Cinturão da Soja, uma vez que a via pública se conecta ao porto de carga do grupo, em frente ao rio Madeira. O grupo mudou-se do estado do Paraná, anteriormente o maior produtor de soja do sul do Brasil, para o Mato Grosso e depois para Rondônia.
Masutti não respondeu aos pedidos de entrevista do InfoAmazonia. De acordo com sua página no LinkedIn, o grupo possui mais de 100.000 hectares de terras em Rondônia e Mato Grosso.
Juca Masutti é presidente da filial de Rondônia da Aprosoja (Associação dos Produtores de Soja e Milho) e foi citado na mídia local como candidato a governador do estado nas eleições de 2018. Ao invés disso, ele decidiu apoiar o candidato de Jair Bolsonaro, Coronel Marcos Rocha.
Vilhena está entre as principais cidades do estado em termos de IDH e PIB per capita. Além de Masutti, outros gigantes do agronegócio brasileiro, incluindo Amaggi, operam por lá.
Mas para Adilson Alves, que vive no assentamento de reforma agrária Águas Claras, em Vilhena, com outras 150 famílias de pequenos agricultores, a soja trouxe pouco progresso. Hoje, ele reclama que o assentamento é sufocado pela produção de soja no entorno.
Temos uma fazenda de soja bem ao nosso lado… isso aumentou o valor da terra, mas também dificultou a nossa produção por causa dos agrotóxicos. E com o aumento dos preços da terra, algumas pessoas venderam suas terras ilegalmente.
Adilson Alves, pequeno produtor do assentamento Águas Claras, em Vilhena (RO).
Apesar da relativa prosperidade, a reputação da região quanto à violência dos conflitos fundiários continua. Desde 2015, de acordo com a Comissão Pastoral da Terra, que fiscaliza a violência no campo no Brasil, pelo menos oito trabalhadores rurais foram mortos em dois massacres na região motivados por conflitos de terra.
“No sul de Rondônia isso tem um nome, é a ‘matogrossização’: a instalação de monoculturas e a expulsão de pequenos produtores”, disse o geógrafo Ricardo Gilson da Costa Silva.
Pressão em Humaitá
Atualmente, dezenas de garimpos ilegais operam no rio Madeira, onde passam grandes balsas carregando soja e outras mercadorias.
Enquanto isso, foi inaugurado um matadouro em Humaitá no ano passado, com capacidade de abate de até 360 cabeças de gado por dia. Humaitá tem cerca de 23.000 cabeças de gado.
Em um relatório de 2020, Realidade, distrito de Humaitá a cerca de 100 km do centro da cidade, foi incluído em uma lista compilada pela Força Tarefa Amazônia do Ministério Público Federal de 10 regiões “hotspots” que foram responsáveis por cerca de 60% do desmatamento em 2019.
O desmatamento aumentou na região, devido aos planos de repavimentação do trecho intermediário da rodovia BR-319, que ligaria Porto Velho a Manaus.
“A pavimentação da BR-319 tem um impacto extremamente relevante sobre o desmatamento no sul do estado do Amazonas hoje”, disse Ana Carolina Bragança, coordenadora da força tarefa.
Junto da infraestrutura, devem ser implantadas medidas protetivas contra o desmatamento, como a criação de unidades de conservação, contratação de funcionários para essas unidades e projetos de desenvolvimento sustentável para a região
Ana Carolina Bragança, procuradora da República no Amazonas e coordenadora da FT Amazônia.
Para Ricardo Gilson da Costa Silva, o aumento do preço da terra em Rondônia — impulsionado em parte pela produção de soja — fez com que pequenos produtores vendessem e buscassem novas terras, e o distrito de Realidade em Humaitá é uma opção atraente.
“Quem não consegue terra em Porto Velho vai para Realidade”, disse. “Eles vão plantar algumas culturas para seu próprio sustento, mas o carro-chefe é o gado, e o carro-chefe com o gado é o desmatamento.”
Esta reportagem foi produzida em parceria com o Diálogo Chino.