A declaração é do geógrafo Carlos Lisboa Travassos, titular da Coordenação Geral de Índios Isolados da Funai. Ele reafirmou que a disputa territorial iniciou o conflito entre as etnias.

Depois de várias solicitações, Carlos Lisboa Travassos, titular da Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém Contatados (CGIIRC) da Fundação Nacional do Índio (Funai), concedeu uma entrevista exclusiva à reportagem da Amazônia Real sobre o conflito envolvendo indígenas Matís e Korubo da Terra Indígena Vale do Javari, localizada no extremo oeste do Amazonas, na fronteira com o Peru.

Carlos Travassos reafirmou que o conflito entre os Matís e Korubo tem origem na disputa territorial entre os povos. “Houve uma reocupação territorial do povo Matís que, de alguma forma, chocou quando se aproximou da área de ocupação dos Korubos do Coari”, diz o coordenador.

Travassos acredita que um surto epidemiológico pode ter influenciado no conflito. Segundo ele, num sobrevoo realizado em 2015, constatou-se uma redução drástica do tamanho das malocas dos índios isolados Korubo. “Isso nos leva a crer que o surto mais grave ocorreu em 2014. Por isso, acreditamos que esse fato contribuiu bastante para o ataque Korubo aos Matís no final de 2014”, disse. No ataque, os Korubo mataram as lideranças Matís, Damë e Ivã Xukurutá, da aldeia Todowak.

Por causa do conflito, que segundo a Funai desencadeou as mortes de ao menos oito Korubo num revide, lideranças de quatro etnias ocupam há um mês a sede da Coordenação Regional Vale do Javari da Funai em Atalaia do Norte, no Amazonas. Eles pedem segurança e monitoramento nas aldeias Matís e a exoneração do coordenador regional, Bruno Pereira, que é subordinado à Carlos Travassos, mas que teria desrespeitado as lideranças.

O coordenador da GCIIRC defendeu Pereira na entrevista e negou que ele ameaçou os Matís após o chamado contato “provocado” com os índios isolados Korubo, em setembro de 2015, como denunciou a liderança Marke Matís em reportagem publicada aqui. “É importante deixar bem claro que o Bruno Pereira, coordenador da Funai em Atalaia do Norte, não ameaçou os Matís. Ele tinha consciência de seu dever institucional. (…) Nossos servidores estavam lá para salvar e proteger vidas, e não o contrário”, disse.

Carlos Travassos durante oficina de Saúde Povos Indígenas Isolados (Foto: Mário Vilela/Funai)

Carlos Travassos durante oficina de Saúde Povos Indígenas Isolados (Foto: Mário Vilela/Funai)

Geógrafo, Carlos Lisboa Travassos, de 36 anos, ingressou na Funai em 2007 como chefe do Posto da Frente de Proteção do Vale do Javari. Em 2009, ele assumiu a coordenação da Frente de Proteção Etnoambiental do Médio Purus, em Lábrea (AM). Em março de 2011, foi nomeado como coordenador da CGIIRC em Brasília. Leia a entrevista abaixo:

Amazônia Real – O contato de setembro de 2014 dos índios isolados Korubo foi o segundo em 18 anos. Em 1996, a Funai tinha formalizado o primeiro contado com o chamado grupo da Mayá, hoje com 33 índios Korubo vivendo nas proximidades da Funai na Terra Indígena Vale do Javari. Nas duas ocasiões, índios Matis participaram do contato como interpretes. Qual é o motivo a aproximação dos Korubo com outros indígenas da TI Vale do Javari?

Carlos Lisboa Travassos – Primeiramente, é necessário neutralizar alguns equívocos. O primeiro grupo Korubo foi, de fato, contatado em 1996. O contato ocorreu entre o rio Ituí e o rio Quixito. Esse grupo permanece, até os dias de hoje, estabelecido nessa região. Hoje em dia, suas aldeias localizam-se nas proximidades da margem do rio Ituí. A região faz parte do que se considera território Korubo na Terra Indígena Vale do Javari.

No contato de 1996, os Matís participaram determinantemente como intérpretes do contato. Além deles, participaram também indígenas Marubo e Matsés (Mayoruna). Já com relação ao contato com o segundo grupo, em 2014, foram os próprios Korubo contatados em 1996 que protagonizaram a interlocução.

Na realidade, o que ocorreu no rio Coari foi o inverso, os Matís se aproximaram dos Korubo. Um grupo Matís decidiu, em 2010, se estabelecer permanentemente no alto rio Coari. O que ocorre é que essa região escolhida pelos Matís em 2010 para constituir nova aldeia é realmente território ancestral Matis. No entanto, após o contato com a Funai, na década de 1970, o povo Matís saiu da região e se concentrou num afluente do Ituí, no Igarapé Boeiro e, posteriormente (final da década de 1990) às margens do próprio rio Ituí. Esse movimento ocorreu por conta de uma crise epidemiológica que quase dizimou o povo Matís após o contato, no início da década de 1980. Ou seja, após mais de 30 anos de ausência, os Korubo isolados acabaram ocupando essas regiões. A região onde os Korubo isolados do rio Coari habitam é historicamente contígua ao território tradicional Matís. Quando os Matís voltam a se estabelecer permanentemente no rio Coari e Branco (2011), há anos que os Korubo já haviam ocupado essas regiões.

 

Amazônia Real – Os Matís questionam a interferência da Funai no contato com os Korubo. Dizem que os conflitos entre os Korubo isolados e o grupo de Mayá recém-contatado desencadearam divergências internas entre esse povo. Os Korubo se espalharam pelas margens dos rios Itaquaí, Coari e Ituí. A partir desse momento os isolados começaram a chegar próximo a aldeia Todowak, dos Matís. O que o senhor tem a dizer sobre esses fatos?

Carlos Travassos – O grupo da Mayá, contatado em 1996, possui relações próximas de parentesco com os isolados Korubo. Num passado recente – na década de 1970 – moravam relativamente próximos. Os conflitos com não índios aos quais foram vítimas ao longo das décadas de 1970, 1980 e 1990, provocaram uma série de divisões internas. Se antes coabitavam em uma mesma região, se dividiram em diferentes grupos que passaram a ocupar regiões distintas. Os Korubo apareciam nesse rio muito antes do conflito descrito abaixo.

Em 2011, se formos observar por determinado aspecto, os Korubo da Mayá estavam em uma permanente crise. Diminutos demograficamente e com suas rígidas regras de casamento comprometidas. Eles constantemente expressavam sua vontade em contatar os parentes isolados, em ir atrás, rever seus parentes, abrir o leque de possibilidades de casamento que viabilizassem suas regras sociais. Naquele ano, após saberem por meio de um indígena Matis que havia descido o Rio Ituí, que os Korubo estavam aparecendo na margem daquele rio, decidiram ir lá por conta própria. O primeiro contato com eles foi pacífico. Entretanto, no segundo, semanas depois, houve um desentendimento. Assim que soubemos do ocorrido fomos, de imediato, no resgate deles. Quando chegamos, dois indígenas Korubo “da Mayá” estavam feridos.

Nesse mesmo ano, foi feito um monitoramento das malocas que previamente se conhecia no rio Coari e constatamos que aparentemente estavam bem. Não havia quaisquer sinais de redução demográfica, cisões internas, ou outros indícios de instabilidade desse grupo que fundamentassem qualquer tipo de intervenção por parte da Funai.

Com relação à aldeia Todowak, trata-se de uma retomada Matís de parte de seu território que, naquele momento, já estava sendo ocupado pelos Korubo.

Maloca dos índios Korubo  (Foto: Fabrício Amorim/Acervo CGIIRC Funai, 2012)

Maloca dos índios Korubo (Foto: Fabrício Amorim/Acervo CGIIRC Funai, 2012)

 

Amazônia Real – Segundo os Matís, a Funai forneceu um barco para o grupo da Mayá. Alguns dos índios Korubo fazem farinha e ganham dinheiro com a venda do produto pela Funai? Esse será o futuro dos isolados Korubo?

Carlos Travassos – No contexto de pós-contato do grupo “da Mayá”, a Funai assume um papel privilegiado de interlocutor com a sociedade externa a eles, apesar de não ser a única. Implementar uma política pública qualificada que garanta a proteção dos direitos daquele povo, que assume o papel institucional de interlocutor junto ao grupo e que, ao mesmo tempo, promova sua autonomia, é um desafio para a política indigenista atual. Se formos desenvolver o tema apenas sob os aspectos teóricos, já perceberemos que a questão é por demais complexa. Se formos para o campo prático e introduzirmos estes conceitos nas práticas do dia a dia das equipes da Funai junto àquele grupo, começamos a ter dimensão do enorme desafio.

A tradição da política indigenista tutelar ainda possui raízes profundas na relação com os povos indígenas, e a mudança de práticas deve ser resultado de um trabalho que envolve planejamento, recursos humanos qualificados e uma capacidade de avaliação crítica constante.

A partir de 2006, a Frente de Proteção Etnoambiental Vale do Javari iniciou um trabalho com os Korubo na perspectiva de desenvolver ações que respeitassem sua autonomia. Os Korubo cobravam muito o acesso e a posse de bens de nossa sociedade, assim como a intenção de compreender e dominar os códigos de nossa sociedade. Ou seja, a Frente de Proteção passou a desenvolver um papel importante junto àquela sociedade, e a discussão sobre o acesso e posse de bens traz necessariamente o esclarecimento sobre as relações monetárias de nossa sociedade. Até aquela data, a Funai havia evitado essa discussão junto aos Korubo. Quando Rieli Franciscato, que coordenou a Frente entre setembro de 2007 a 2010, estabelece os primeiros diálogos junto aos Korubo, ele percebe que é necessário trazer um outro olhar para o trabalho. Na mesma época, tivemos uma importante colaboração e participação do linguista Sanderson Oliveira e de alguns indígenas Matís. Decidiu-se, institucionalmente, iniciar um trabalho que trouxesse uma nova perspectiva com os Korubo. Eles buscavam compreender as lógicas de mercado, o que é o dinheiro, a matemática, como os brancos compram coisas.

Essa decisão sobre lhes dar acesso a esses códigos, foi demandada pelos Korubo que, a partir de diálogos constantes, passaram a viver suas primeiras experiências com a venda de farinha, a venda de artesanato e as primeiras compras de objetos. Eles muito legitimamente não queriam mais “pedir” à Funai, e sim saber como obter, segundo as nossas lógicas. Ou seja, esse processo não foi uma decisão arbitrária nossa. Gradualmente, acompanhamos literalmente os índios na venda de artesanato, banana e farinha a preços justos nas cidades de Tabatinga (Amazonas) e Letícia (Colômbia). No início, venderam tanta banana que acabaram com seu roçado. Ficaram um tempo sem comer banana, aprenderam, e abriram novos roçados, maiores, cada qual com sua função: aquele é para comer e aquele é para vender. No início, ficaram extasiados em ter acesso aos bens por meio dessas lógicas de mercado.

Hoje, estão mais tranquilos. Bem, naquela época acumularam algum dinheiro e decidiram comprar um motor para a aldeia. A compra desse motor pode ser vista no contexto de pós-contato como resultado desse processo de afirmação de sua autonomia. Infelizmente, o motor não durou muito, quebrou por falta de manutenção. Uma nova fase de trabalho se iniciou, outras lógicas foram trazidas e discutidas, como a constante manutenção dos bens e a dependência que ela gera. Enfim, consideramos uma boa experiência para eles e para nós, enquanto executores de uma política pública. O motor deu acesso a novas áreas de caça, a deslocamentos rápidos para a base da Funai em caso de emergências. Os fatores positivos se sobrepuseram aos negativos. Valeu a pena, pelo menos essa é minha avaliação, que está aberta a discussões, e que os Korubo participem delas. É bom saber o que eles acham dessa história de motor, antes de nós, dos Matís, dos Marubo e dos “especialistas”.

Quem deve decidir o futuro dos Korubo não é a Funai, nem os povos Matís, Marubo ou Mayoruna. Inclusive, esse projeto de futuro é fundamentado pelos longos anos que dialogaram com os Matís, que nunca deixaram de ser também um interlocutor privilegiado junto aos Korubos e sempre influenciaram muito em suas decisões. Hoje, os Korubo “da Mayá” possuem grande clareza e discernimento dessa relação que estabelecem com a sociedade externa à deles, e exercem com protagonismo esse diálogo. Há, inclusive, alguns Korubo que já compreendem e falam a língua portuguesa e a língu Matís, Mayoruna e Marubo; que são poliglotas.

Os índos Matís e Korubo durante intercâmbio no rio Branco (Foto: Vitor Goes/Acervo CGIIRC/Funai/2014)

Os índos Matís e Korubo durante intercâmbio no rio Branco (Foto: Vitor Goes/Acervo CGIIRC/Funai/2014)

Amazônia Real – Após o segundo contato, em 05 de dezembro de 2014, seis Korubo matam as lideranças Matís, Damë e Ivã Xukurutá. Há uma vingança, segundo relatos dos próprios Korubo. Os Matís mataram oito índios isolados e ferem três com arma de fogo. Os Matís confirmaram o revide em entrevista à Amazônia Real, mas dizem que se defenderam. Por que os Korubo mataram os dois Matís?

Carlos Travassos – A ocorrência de surtos epidemiológicos e a aproximação de ocupação territorial podem ter influenciado. Acreditamos que houve uma série de surtos epidemiológicos entre os Korubo do Coari, em decorrência de sucessivos contatos que ocorreram entre 2010 e 2014 envolvendo os Matís no rio Coari. Por meio de ações de monitoramento aéreo das malocas Korubo, efetuadas anualmente, verificamos que não havia alterações expressivas em sua população, exceto no sobrevoo de 2015. Nesse sobrevoo, constatou-se a redução drástica do tamanho de suas malocas. Isso nos leva a crer que o surto mais grave ocorreu em 2014. Por isso, acreditamos que esse fato contribuiu bastante para o ataque Korubo aos Matís no final de 2014. Além disso, durante os contatos que ocorreram antes de 2014, os Korubo revelam que os Matís sovinavam objetos solicitados e os mandavam embora quando se aproximavam da região de suas malocas. Isso é constatado em um vídeo que existe, filmado e editado por indígenas Matís. São informações que ainda precisam ser devidamente qualificadas. A nossa lógica de nexo causal não é a mesma do grupo Korubo, por isso é difícil se definir o “real” motivo para o conflito.

 

Amazônia Real – Os Matís dizem que Damë e Ivã foram mortos a cacetadas. Eles tiveram os corpos dilacerados, o que classificaram como algo inédito em conflitos. O que o senhor tem a dizer?

Carlos Travassos – Historicamente verifica-se, na farta documentação existente sobre ataques Korubo, que estes dilaceravam suas vítimas. Não é inédito, muito pelo contrário, é algo comum.

Amazônia Real – A Funai negou a ocorrência da vingança de dezembro de 2014 até 27 de novembro de 2015, quando divulgou uma nota informando que os Korubo revelaram a existência do revide?

Carlos Travassos – A Funai só constatou a ocorrência do revide em 2015, quando os Korubo nos contaram. Antes disso, em nenhum momento os Matís revelaram ter revidado.

Amazônia Real – A Funai diz que os Korubo estão em segurança, mas não explicou se pediu reforço de equipes, antropólogos e da Polícia Federal, que atua em conflitos em terras indígenas.

Carlos Travassos – Os Korubo estão bem, constituindo novas malocas. Não há a presença de forças policiais. Em nenhum momento no trabalho de pós-contato foram acionados órgãos de segurança, que fique claro.

Equipe da Funai e Lideranças Matís na aldeia Todowak (Foto: Acervo CGIIRC/Funai/2014)

Equipe da Funai e Lideranças Matís na aldeia Todowak (Foto: Acervo CGIIRC/Funai/2014)

 

Amazônia Real – Como não podemos ouvir a verdade dos Korubo, se não podemos chegar até eles? E respeitamos a integridade desse povo e dos profissionais que estão acompanhando a situação na TI Vale do Javari, precisamos que o senhor diga o que eles pensam dessas divergências com os Matís?

Carlos Travassos – Em primeiro lugar, é necessário considerar a vulnerabilidade epidemiológica desse grupo, daí as restrições de acesso a eles. Em segundo, é sempre necessário respeitar e considerar a boa-fé dos servidores desta instituição. Sobretudo no que diz respeito à equipe da Funai no Vale do Javari, considerada referência. De fato, a Funai não representa os Korubo e não seria adequado se manifestar em seu nome. Há horas de vídeos gravadas em conversas com eles, com as respectivas traduções, onde eles revelam algumas de suas vontades. Esses vídeos revelam que, no início, o medo permeava bastante os discursos Korubo, seja com relação à Funai – por não conhecer – seja com relação aos Matís – pelos conflitos anteriormente ocorridos.

Com o passar do tempo, fomos compreendendo melhor o que eles não queriam do que aquilo que queriam. Eles não queriam ficar no local onde estavam; não queriam ir embora dali sozinhos, a pé, pelas ameaças de perseguição feitas pelos Matís; não queriam voltar a morar com o outro grupo Korubo que permaneceu em isolamento, em decorrência de conflitos internos. Por meio de intérpretes Korubo, fomos mostrando fotos e vídeos dos Korubo contatados em 1996. Reconheceram a Mayá, a mulher mais velha do grupo. Por conta do conflito ocorrido em 2011, se mostraram desconfiados, mas acabaram topando sair dali e ir para o igarapé Quebrado. Essa decisão ocorreu após eles falarem com a própria Mayá no rádio: descobriram que a gente não estava mentindo, que a Mayá existia e estava viva.

A partir daí a confiança cresceu e se reproduz até hoje. Não há qualquer momento de tensão depois do deslocamento deles do local do contato até o Quebrado, onde atualmente permanecem. Eles insistem em se mudar para a maloca da Mayá, mas por hora a equipe da Funai resiste em proporcionar essa mudança em decorrência dos cuidados epidemiológicos. Além disso, há uma preocupação em promover a reocupação dos Korubo no rio Coari. Por enquanto eles resistem e nossa expectativa é a de que isso seja apenas uma fase.

Amazônia Real – Os Matís continuam divulgando relatos de agressões, como raptos e destruição de roças, por parte dos Korubo. Como a Funai vai pacificar esse conflito?

Carlos Travassos – Estamos trabalhando para enviar uma equipe ao rio Branco. A Funai, antes mesmo de promover a retirada dos Korubo do rio Branco, no ano passado, chegou a acordar com os Matís, em uma reunião em que estive presente na cidade de Atalaia do Norte, a presença permanente de uma equipe em suas aldeias, conduzida por um experiente servidor que atua na Frente de Proteção Etnoambiental Madeira Purus (FPEMP), com vistas a realizar o monitoramento de isolados Korubo em suas redondezas. Com vistas a cumprir o que foi acordado na reunião, a CGIIRC deslocou o chefe de serviço da Frente de Proteção, Rogélio Alves, indigenista com mais de 15 anos de experiência e que, com uma postura neutra naquele contexto, poderia conduzir com qualidade o monitoramento de índios isolados Korubo na área onde se localizam as aldeias Matís. Contudo, a Funai foi comunicada por rádio e por nota da Associação Matís de que não seria aceita a presença de Rogélio e de nenhum outro servidor da Funai em suas aldeias.

Amazônia Real – Em 26 de setembro de 2015, a Funai anunciou o terceiro contato de um grupo de dez Korubo, mas desta vez diz que o encontro foi “provocado” por indígenas Matís, da aldeia Tawaya, às margens do rio Branco, contrariando a política pública de proteção aos povos indígenas isolados. O que é um contato “provocado”?

Carlos Travassos – O contato pode ocorrer por iniciativa ou protagonismo do grupo isolado ou pelo ator “externo”. Historicamente, o SPI [Serviço de Proteção Indígena, criado em 1910 e extinto em 1967] e a Funai desenvolveram inúmeras metodologias de contato, por meio dos processos de atração. Obviamente, no processo de contato, existem certas nuanças e após o contato propriamente dito se consolidar, surgem sempre controvérsias dos diferentes pontos de vista de quem contatou quem. No caso do contato ocorrido no ano passado com os Korubo, poderíamos, de forma branda, dizer que os Matís fizeram o contato por meio de coerção.

Amazônia Real – O que de fato acontece nesse momento?

Carlos Travassos – Nesse momento existe parte do grupo Korubo do Coari que permanece isolado e parte que se encontra contatado.

Amazônia Real – Como os Matís contrariaram a política de proteção?

Carlos Travassos – A política pública de proteção aos povos indígenas isolados tem na Funai sua executora e especificamente a CGIIRC possui essa atribuição exclusiva. Contudo, os povos indígenas contatados que compartilham territórios ou terras indígenas com presença de índios isolados também possuem suas próprias políticas territoriais e de relacionamento com seus vizinhos isolados. Uma política deve entender e interagir com a outra. A política institucional passa a ser contrariada quando se desconsidera, com atos e ações, a condição dos povos isolados como sujeitos detentores de direitos.

Amazônia Real – A situação se agravou entre as duas etnias. Os Matís afirmam que pediram a instalação de uma Coordenação Técnica Local (CTL) próximo de suas aldeias na Terra Indígena Vale do Javari. Qual o motivo da Funai não atender o pedido dos índios, já que eles estavam em conflito com os Korubo?

Carlos Travassos – A demanda da CTL voltada para o povo Matís surgiu antes do conflito com os Korubo. Existe já há muito tempo. A expectativa cresceu quando ocorreram as mudanças das aldeias do Rio Ituí para o Rio Branco e o Rio Coari – entre 2010 e 2011, e foi reivindicada em ata de reunião ocorrida em 2015.

As causas de as reivindicações não terem sido atendidas não podem ser respondidas por mim. Não trabalho com o conjunto das terras indígenas do Brasil e muito menos nos diversos setores da Funai. Coordeno a área de índios isolados e de recente contato, vejo a Terra Indígena do Vale do Javari como quem olha para um grande país. Se dependesse de mim, não só os Matís, mas todos os povos do Vale do Javari teriam um atendimento da Funai muito melhor, com mais servidores e melhor estrutura. Mas a realidade não é essa, a Funai vem sendo massacrada pelos sucessivos cortes orçamentários, inanição de recursos humanos e enfraquecimento político no Executivo. Volto a dizer que, sem sombra de dúvidas, as equipes da Frente de Proteção e da Coordenação Regional do Vale do Javari são compostas por servidores com alto grau de competência, abnegação e comprometimento.

Amazônia Real – Os Matís negam que há uma disputa territorial com os Korubo, como a Funai afirma. O que é essa disputa territorial?

Carlos Travassos – Tentar traduzir ou representar o que seria o território Korubo, ou o território Matís, pode levar anos de estudos, diálogo, reestudos, debates e, possivelmente, não termine nunca. Os processos são dinâmicos. Porém, acabamos, de uma forma ou de outra, nos acostumando a afirmar “o território Korubo é este”, o ”dos Matís é aquele”. É preciso ser cuidadoso. Os processos de pertencimento a um determinado lugar não se dão dentro de parâmetros que sejam muito inteligíveis para nós. Cada povo indígena possui uma cosmologia própria, sua autoidentificação e uma identificação sobre o outro, ou sobre os outros. Como já dito, houve uma reocupação territorial do povo Matís que, de alguma forma, chocou quando se aproximou da área de ocupação dos Korubos do Coari.

Amazônia Real – Os Matís afirmam que em 2010 realizaram as mudanças das aldeias Todowak e Bakuak do rio Ituí para rio Coari, território tradicional da etnia. Qual é a relação desse fato com os conflitos entre as etnias?

Carlos Travassos – Podemos afirmar que o conflito se originou com as mudanças dos Matís para o rio Coari. A aldeia de Txami [cacique e irmão de Damë] naquele rio é anterior à mudança dos Matís para o Rio Branco, o que de fato ocorreu no ano de 2011.

Após 35 anos de aldeamento, longe do seu território de ocupação tradicional, os Matís investiram em um plano de futuro, que envolve retornar ao seu território tradicional e se afastar das novas “Frentes de Atração” da modernidade – urbanização, estudar na cidade, a vida na casa de apoio de missionários que prometem desenvolvimento e “civilidade”. Ocorre que este processo de retorno ao seu território tradicional poderia acarretar situações de contato com Korubo isolados que sabidamente habitam as bacias dos rios Coari e Branco e, consequentemente, a transmissão de doenças infectocontagiosas.

No ano de 2007, ao assumir a Coordenação da Frente de Proteção Etnoambiental do Vale do Javari, o indigenista Rieli Franciscato, que havia trabalhado na Frente de Contato do Vale do Javari quase uma década antes, ficou sabendo que Txami Matís abrira roçados no rio Coari. Em diálogo com Txami, Rieli expressou toda a preocupação da Funai sobre a iniciativa, considerando ser uma área de ocupação Korubo, e as vulnerabilidades dos Korubo para as doenças que os Matís já possuíam. A liderança Matís se justificou, à época, dizendo que a pequena aldeia fora aberta para que ele e sua família pudessem ali permanecer no período das cheias do rio Coari, período em que, segundo o mesmo, a região não seria frequentada pelos Korubo.

A preocupação com a proximidade dos Matís em território Korubo surgiu também após a abertura de roçados, pelos Matís no rio Branco, o que exigiu a realização de duas reuniões realizadas nas antigas aldeias Matís Beija-Flor e Aurélio, conduzidas por mim e com a presença dos coordenadores da Coordenação Regional Vale do Javari, Bruno Pereira, e da Frente de Proteção Etnoambiental Vale do Javari, então Fabricio Amorim, em 2011. As lideranças Matís disseram, na ocasião, que mesmo sabendo da possibilidade de contatos, disseminação de doenças e conflitos, eles não iriam ficar mais no rio Ituí, que lá não era território deles. Solicitaram também que, antes da mudança para as aldeias do rio Branco, fosse feito o monitoramento da região de ocupação dos índios isolados. A Funai, por diversos motivos – orçamento insuficiente, baixo efetivo de servidores qualificados, entre outros, não cumpriu com a totalidade das ações pactuadas com os Matís. Ainda que obtendo apoio do órgão indigenista para a mudança de suas aldeias, os Matís não puderam aguardar o “tempo da Funai” para o cumprimento de todas as ações pactuadas e ocuparam duas novas aldeias abertas no rio Branco, além da já existente no rio Coari.

Amazônia Real – Os Matís invadiram o território dos Korubo com as mudanças das aldeias?

Carlos Travassos – Não diria que essa é a forma correta de descrever o contexto.

Amazônia Real – Os Matís dizem que querem dialogar com a Funai, mas que seja também em seus termos. Eles querem que sua forma de entender essa situação (aproximação dos isolados, contato, conflito) seja ouvida pela Funai. Como conciliar o modo de compreensão dos Matís com a política de contato da Funai, que defende o não-contato ou apenas o contato voluntário?

Carlos Travassos – A política indigenista de proteção aos povos indígenas isolados, que historicamente foi pautada pela premissa do contato para proteção, mudou sua premissa após algumas décadas de contatos forçados com povos indígenas isolados, impulsionados por uma política desenvolvimentista e totalitária do período militar que assolou as comunidades indígenas nas décadas de sessenta, setenta e em parte dos anos oitenta, dizimou etnias inteiras e tentou extinguir dezenas: o contato oficial com povos indígenas isolados, conduzido pela agência oficial indigenista, passou a exigir que, previamente às tomadas de decisões de se estabelecer o contato, houvesse a manifestação clara dos grupos isolados em sua intenção de interagir efetivamente com a sociedade envolvente a ele. Ainda, passou-se a considerar que em situações de ameaça física em que a proteção do grupo isolado estivesse comprometida, o contato deveria ser realizado, mesmo que à revelia do grupo isolado, para protegê-lo.

Portanto, o que a Funai defende é que mesmo sendo deliberado pelos Matís que a Funai deva empreender o contato, isso não será feito à revelia dos isolados. Não deixamos de dialogar com os Matís e nem de tentar compreendê-los. Acredito que também tenham se esforçado para inversamente tentar entender os motivos da Funai. O dia a dia da instituição não facilita, sem lamúrias. Se alguém estiver interessado em saber sobre os pedidos de melhoria no orçamento, recursos humanos, apoio de outras instituições, essas coisas, acredito que ajudaria também a entender nossas dificuldades. As respostas que temos tido do Ministério da Justiça e do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão nos últimos cinco anos pelo menos, nesse tema, são dignas de serem observadas por mecanismos de proteção internacional de Direitos Humanos.

Fato é fato, os deveres e atribuições da Funai são incompatíveis com os gastos destinados para seu cumprimento. Muito incompatíveis. Podemos, na CGIIRC, nos tornar um bando de servidores passivos e incontestes, ou resistir com responsabilidade e coragem com o que temos. Ainda que tenhamos que ouvir críticas pertinentes e legítimas de uns, ou manifestações revoltosas de outros, decidimos, servidores da CGIIRC e das Frentes de Proteção Etnoambiental, pelo segundo caminho. Esperemos que quem tanto critica a gestão da CGIIRC possa, de fato, um dia conseguir olhar de forma mais abrangente, menos míope e mais propositiva.

 

Bruno Pereira (de blusa bege) e Carlos Travassos (de branco) em audiência com lideranças do Vale do Javari (Foto: Mário Vilela/Funai)

Bruno Pereira (de blusa bege) e Carlos Travassos (de branco) em audiência com lideranças do Vale do Javari (Foto: Mário Vilela/Funai)

Amazônia Real – Os Matís também afirmam que a Funai os separou dos Korubo. A reportagem apurou que o motivo seria que um grupo de guerreiro Matís invadiu um acampamento dos Korubo e levou mulheres e crianças para “amansá-los”. Também prenderam o servidor Fabrício Amorim. Foi neste momento que o coordenador Bruno Pereira ameaçou tirar as armas dos Matís e denunciá-los à Polícia Federal, daí passaram a pedir a demissão de Bruno. O que o senhor tem a dizer sobre esses fatos?

Carlos Travassos – Cabe esclarecer a própria pergunta. Os Matís capturaram as crianças durante o primeiro contato com os Korubo, foi dessa forma que ocorreu o primeiro contato [em 26 de setembro de 2015]. A invasão do acampamento Korubo ocorreu semanas depois, num momento em que a Funai e Sesai desenvolviam o plano de contingência, com rígidos protocolos e procedimentos de quarentena. Nessa invasão não houve rapto de ninguém. O servidor Fabrício Amorim foi preso [pelos Matís] durante o deslocamento dos Korubo do local onde estavam para outro mais adequado.

O deslocamento dos Korubo, pela equipe da Funai e Sesai, é o ponto central da questão. Em primeiro lugar, a Funai (e a Sesai) atua por meio de diretrizes que norteiam a política pública, não atua de forma arbitrária. A autonomia de determinado povo jamais se deve sobrepor à autonomia de outro, em síntese é isso que ocorre.

A decisão em deslocar o grupo Korubo do rio Branco ocorreu em função de diversos fatores, tendo como objetivo primordial a preservação da integridade física do grupo Korubo. A região onde ocorreu o contato – onde os Korubo estavam acampados – era bastante escassa de recursos de caça e pesca (proteína). Os Korubo estavam debilitados, em decorrência das doenças que contraíram durante o contato provocado pelos Matís. O acampamento Korubo localizava-se na margem do rio Branco, entre duas aldeias Matís, sendo constante o trânsito de embarcações Matís: era iminente a quebra de quarentena e transmissão de doenças. Esse local era totalmente inadequado para viabilizar uma barreira epidemiológica e a efetiva proteção do grupo. Atrelado a isso, infelizmente, alguns indígenas Matís intimidavam a equipe da Funai e Sesai, tornando o clima ainda mais tenso.

Por último, e mais importante, os Korubo não queriam permanecer ali, como já dito nesta entrevista. Compreendemos a importância do diálogo com os Matís, e de fato ele foi feito durante anos, tanto que a invasão dos Matís no acampamento Korubo – e a consequente quebra de quarentena – ocorreu após uma reunião na aldeia Tawaya – entre os Matís, a Funai e Sesai. Era exatamente uma reunião de diálogo sobre a necessidade de deslocamento dos Korubo daquele ponto. Ou seja, foi a tentativa de manutenção de um diálogo constante que culminou na invasão. Essa invasão acarretou um novo ciclo gripal entre os Korubo. Essas doenças respiratórias evoluem incrivelmente rápido entre grupos recém contatados. Além disso, a invasão provocou um tensionamento ainda maior, colocando em risco de vida dos Korubo e a equipe da Funai e Sesai. Era necessário urgentemente tomar uma decisão, e ela foi tomada. Naquele momento, a prioridade absoluta era salvaguardar as decisões e a integridade física e psicológica do grupo Korubo.

Como já dito, o contato com o grupo Korubo foi efetivado pelos Matís por meio de coerção. Lembremos que o mesmo grupo Korubo sofreu um ataque de revide dos Matís menos de um ano antes. Mães que tiveram seus filhos assassinados e que carregam fragmentos de chumbo na pele (devido ao ataque), crianças que se tornaram órfãs após o conflito, essas pessoas não queriam permanecer no local. Nesse contexto, o desejo dos Matís em terem os Korubo junto não se sobrepôs ao desejo dos Korubo em saírem dali. Jamais pactuaríamos com isso. É importante deixar bem claro que o Bruno (Bruno Pereira, coordenador da Funai em Atalaia do Norte) não ameaçou os Matís. Como coordenador, ele tinha consciência de seu dever institucional. Em diálogo comigo, deixei claro ao coordenador que, se houvesse dentro daquele contexto ameaça de violência aos servidores da Funai ou aos Korubo, no intuito de impedi-los de realizar a mudança do acampamento Korubo, acionaríamos as forças policiais competentes e solicitaríamos a aplicação da legislação federal vigente, empreendendo uma intervenção para pôr fim ao conflito. Nossos servidores estavam lá para salvar e proteger vidas, e não o contrário.

Amazônia Real – Os Matís dizem que trabalham nas ações da Frente Etnoambiental Vale do Javari. Um desses trabalhos é de intérpretes. Quais são as demais atividades dos Matís. Como é esta relação de trabalho?

Carlos Travassos – Esta relação de participação dos Matís, Marubo, Matsés e Kanamari nos trabalhos da Frente existe desde o início do processo de regularização fundiária da Terra Indígena Vale do Javari. O primeiro passo dado foi a desintrusão da terra indígena de madeireiros e antigos moradores. Na etapa seguinte, foi constituída a base na foz dos rios Ituí e Itaquaí. Em uma região onde os únicos meios de locomoção são embarcações pelos rios ou caminhadas na mata densa, estabelecer uma base permanente na confluência e sob o limite da terra indígena significa reduzir as invasões territoriais em uma escala brutal. A participação e colaboração dos indígenas nos trabalhos de vigilância territorial foram determinantes para o sucesso do sistema de proteção empregado. Muitas vezes criticada, a metodologia de restrição de acesso garantiu a preservação ambiental de uma área com mais de um milhão de hectares daquelas bacias hidrográficas. Após as bases do Ituí e Itaquaí, foram abertas as bases dos rios Quixito, Jandiatuba e Curuçá. O objetivo primordial da participação dos índios é incentivar e dar protagonismo à vigilância da Terra Indígena pelos próprios índios. Aos que criticam isso, respeitamos e estamos abertos ao diálogo. Mas, até então, é o caminho que acreditamos ser o correto. Se compararmos as terras indígenas às áreas de mata protegidas por legislação ambiental específica, veremos que os povos indígenas possuem uma intrínseca relação com o ambiente e são responsáveis pelos resultados de sua proteção. Por outro lado, temos nos articulado com os órgãos de polícia e de fiscalização ambiental para que as redes criminosas de exploração de recursos naturais em terras indígenas sejam combatidas.

Amazônia Real – Eles são remunerados? Qual o valor dessa remuneração?

Carlos Travassos – A remuneração parte do princípio de que é uma ajuda de custo que está regulamentada por portaria interna da Funai. A quantia em um mês equivale a um salário mínimo.

Amazônia Real – Quantos Matís mantêm essa relação?

Carlos Travassos – São quatro equipes de quatro Matís que se revezam ao longo do ano.

Amazônia Real – Outros povos também trabalham na Frente ou na própria Coordenação Regional?

Carlos Travassos – Sim. Como dito, é uma relação de colaboração e parceria: Matsés (Mayoruna), Kanamari, Marubo também participam.

Amazônia Real – Como são as estruturas físicas das Frentes Etnoambientais e da Coordenação de Índios Isolados?

Carlos Travassos – Possuímos 12 Frentes de Proteção Etnoambiental. A elas estão subordinadas 24 Chefias de Serviço, que em geral são servidores/as que não se encontram no quadro de efetivos da Funai. Desses serviços, 20 atuam em Bases de Proteção Etnoambiental dispostas em locais estratégicos nas Terras Indígenas com presença de índios isolados e de recente contato.

Amazônia Real – Qual o orçamento da CGIIRC?

Carlos Travassos – Possuímos duas Ações Orçamentárias aprovadas pelo Projeto de Lei Orçamentária Anual 2016: uma de “Localização e Proteção de Índios Isolados”, cujo valor aproximado para custeio foi de R$1.600.000,00, e de “Investimento” foi de R$700.000,00. A outra de “Promoção aos Direitos dos Povos de Recente Contato”, para custeio foram aproximadamente R$ 510.000,00 e para “Investimento” R$ 22.000,00. Faz três anos que o deputado federal Chico Alencar (PSOL/RJ) disponibiliza por Emenda Parlamentar R$ 490.000,00 para a CGIIRC. Fora esse inestimável gesto do parlamentar carioca, o que recebemos todos os anos são cortes, contingenciamentos e atropelos de toda ordem para liberação de recursos no tempo em que a realidade requer.

Amazônia Real – A limitação orçamentária impede quais ações?

Carlos Travassos – Considerando que os custos operacionais para atuação em áreas de ocupação de índios isolados são altíssimos, por estas serem extensas, ermas ou extremamente violentas, como é o caso de terras indígenas nos estados do Maranhão, Mato Grosso e Roraima, trabalhamos na ponta do lápis, com o apoio de parceiros e muita dedicação de nossos servidores e servidoras.

As ações prejudicadas são quanto à localização de índios isolados, manutenção e implementação de novas bases para o devido monitoramento de grupos indígenas isolados já identificados. Também não conseguimos avançar em temas importantes como a segurança à saúde de nossos servidores e colaboradores. Não temos, na maioria dos casos, a opção de uma remoção aero médica em lugares ermos para situações de acidente de nossos servidores e colaboradores, por exemplo. Nossos meios para deslocamentos ainda são precários. Apesar de um aumento na equipagem dos últimos anos, continuamos, muitas vezes, realizando embarcações de baixo custo operacional, mas morosas e exaustivas. Também as ações junto aos povos contatados do entorno das populações isoladas não são devidamente realizadas. Esse ponto é importantíssimo para a efetiva proteção dos povos isolados. Sem uma população indígena do entorno em boas condições de bem viver, a vulnerabilidade dos isolados cresce. O que posso dizer é que, para mantermos o mínimo funcionando, a conta nunca fecha. O final do ano se torna um momento de pressão muito grande, como uma panela de pressão prestes a estourar, é preciso pagar os fornecedores, atender urgências, dar respostas sem saber se se honrará os compromissos.

Amazônia Real – É preciso fazer sacrifícios em determinadas áreas para cobrir outras, consideradas mais graves?

Carlos Travassos – Este exercício é recorrente. Chama-se política de prioridades. Estabelecer critérios, indicadores e estratégias de monitoramento, não é feito no “achismo”. Ainda buscamos muitos apoios junto a outras instituições, junto ao Judiciário, junto à sociedade civil e muitas vezes aos próprios índios que, em certas situações, adquirem melhores condições de realizar a vigilância e proteção aos povos isolados do que a própria Funai.

Amazônia Real – O quadro de servidores está suficiente?

Carlos Travassos – Não.

Amazônia Real – É preciso mais servidores?

Carlos Travassos – Sim, no mínimo sete vezes mais, segundo estudo que propomos. Ainda é preciso capacitação e qualificação desses servidores. Tornar as condições de carreira mais atrativas, considerando a periculosidade e insalubridade que realmente existem, em minha opinião, no exercício da função.

Amazônia Real – Quais são as maiores dificuldades de manter funcionários atuando nestas áreas (bases das Frentes)?

Carlos Travassos – Além de tudo que já foi dito, acredito que o concurso público, da forma rígida como é estipulado, deva ser revisto. Ele não permite o ingresso de trabalhadores que possuem um alto grau de conhecimento sobre a floresta, sobre os índios e sobre o uso de equipamentos. A concorrência, se é que se pode dizer assim, é desleal. Alguns servidores que entraram no último concurso possuíam perfil, mas a grande maioria não. O resultado foram evasões, processos trabalhistas, desgastes de gestão de pessoas, enfim, um desastre.

Amazônia Real – Em entrevista concedida à nossa reportagem, o sertanista Antenor Vaz diz que o senhor se afastou dos coordenadores das Frentes de Proteção e se perpetuou no cargo. Ele também diz que é necessário “envolver os povos indígenas contatados (principalmente os que compartilham territórios com os isolados) na formulação e implementação da política de proteção, tanto para os isolados quanto para os povos indígenas de recente contato”. O que o senhor tem a dizer sobre esses comentários?

Carlos Travassos – Antenor Vaz, que é um reconhecido indigenista, foi meu coordenador enquanto eu era chefe de posto no Suruwahá (índios isolados do Amazonas) e depois coordenador da Frente de Proteção Etnoambiental Purus. Com grande capacidade de trabalhar aspectos de aprimoramento metodológico e com uma aptidão para realizar a capacitação das equipes de campo, era coordenador de políticas de povos de recente contato quando assumi a Coordenação Geral da CGIIRC, em 2011.

Discordo da sua postura que atribui a mim e à equipe da CGIIRC todos os problemas enfrentados pela política indigenista voltada aos povos isolados e de recente contato. A situação precária de trabalho e as dificuldades que enfrentamos hoje não são piores do que as de antes. Se ele ou qualquer outra pessoa quiser analisar os Programas de Povos de Recente Contato desenvolvidos pela CGIIRC em um debate técnico, honesto e respeitoso, eu acharia ótimo. Mas debater aqui essas questões não faz sentido.

Segundo a Funai, esta e a Base de Proteção Etnoambiental na confluência dos rios Itui e Itaquai (De Heriverto Vargas/Acervo CGIIRC/Funai/ 2016)

Segundo a Funai, esta é a Base de Proteção Etnoambiental na confluência dos rios Itui e Itaquai (De Heriverto Vargas/Acervo CGIIRC/Funai/ 2016)

 

Alojamento da Base da Funai no Vale do Javari (Foto: Antenor Vaz)

Alojamento da Base da Funai no Vale do Javari (Foto: Antenor Vaz)

A foto (acima) que Antenor apresenta à Amazônia Real, da Base Ituí da Funai, é de uma casa velha, substituída por outra ao lado, que não aparece (leia aqui a resposta do sertanista). O quadro de servidores que ele possuía quando coordenou a Frente de Proteção até 2007 era menor do que o de hoje. Os índios colaboradores apoiavam seus trabalhos lá como ainda apoiam hoje. Ele possuía apoio de projetos do Centro de Trabalho Indigenista com o qual arcava com grande parte dos custos que tinha. O diálogo com os povos indígenas “contatados” está na teoria e na prática de nossas equipes.

Amazônia Real – A Funai está disposta a analisar e até mesmo de rever seu modus operandi diante de novas situações envolvendo os isolados?

Carlos Travassos – O exercício de análise, avaliação e a busca pela superação faz parte, acredito, de toda prática profissional. Agora, se você está querendo perguntar se a Funai irá começar a contatar índios isolados por desejos de outros povos indígenas ou pressão de seguimentos da sociedade, a resposta é não.

Amazônia Real – O sertanista Antenor Vaz afirma que a maior ameaça às etnias isoladas da Amazônia é o sucateamento da Funai. As bases no Vale do Javari estão abandonadas, sem estrutura. O que o senhor tem a dizer?

Carlos Travassos – É importante qualificar o que é sucateamento para não alimentarmos discursos vazios. A falta de recursos humanos e financeiros traz uma série de consequências. A falta de empoderamento das ações da Funai junto a outras instituições do Executivo e do Judiciário traz outras consequências. A soma disso faz com que a instituição, que deveria manter-se imponente na defesa dos direitos indígenas sobre todos os outros seguimentos de nossa sociedade, não o faça ou, pelos menos, não na proporção como deveria. Mas façamos jus, o preconceito social aos povos indígenas, a corrupção generalizada, o crime organizado de exploração de recursos naturais, ou seja, a falta de um Estado pluriétnico de direito que atinja e proteja os povos indígenas, isolados e contatados, é com certeza a ameaça em si.

Amazônia Real – Antenor Vaz lamentou ainda que a Funai não apresente à sociedade as informações sobre os contatos com os Korubo. O que o senhor tem a dizer?

Carlos Travassos – Falar sobre conflitos interétnicos é uma questão delicada. Estamos falando de pessoas, que em maior ou menor grau terão acesso a esse debate, e de alguma forma não estão sendo consultadas sobre a divulgação de sua condição. Outro ponto é que a forma como este tema está sendo tratado por alguns meios de comunicação e nas redes sociais é totalmente desqualificada, mal escrita e mal informada. Não quero ofender os indigenistas que têm se manifestado ou os especialistas, mas o debate está sendo feito no lugar errado. A imagem de povos indígenas, de servidores da Funai e de outros profissionais está sendo tratada com extremo desrespeito. Parece-me que se perdeu o bom senso.

Amazônia Real – Como tem sido seu o trabalho diante dos problemas de falta de recursos para atuar junto aos isolados?

Carlos Travassos – Extenuante.

Amazônia Real – Segundo a União dos Povos Indígena do Vale do Javari (Univaja), a Funai firmou um convênio com a ONG CTI () no valor de R$ 19 milhões para ações junto aos povos isolados da Amazônia que vigorarão 36 meses, a contar de dezembro de 2014. Os recursos são do Fundo Amazônia/BNDES. Desde sua implementação, quais foram as ações já desenvolvidas com estes recursos?

Carlos Travassos – O projeto contém diversas ações e me estenderia ainda mais se fosse aqui elencá-las. De forma geral, as ações têm foco no apoio operacional à Funai para a realização de expedições de localização de índios isolados em ao menos 20 registros, aprimoramento metodológico da pesquisa de referências de índios isolados e armazenamento dos dados em sistema de informações, capacitação das equipes das 12 Frentes de Proteção, além do desenvolvimento de ações voltadas aos povos indígenas do entorno de 6 regiões com presença de índios isolados (estados do Amazonas, Acre, Maranhão, Mato Grosso e Pará), inclusive, com apoio para uma agenda dessas populações junto às populações indígenas de mesma condição em outros países da Amazônia. O projeto foi concebido tendo como um dos eixos centrais a questão do compartilhamento e contiguidade territorial entre isolados e povos contatados. A iniciativa civil também tem seu papel na conscientização e no diagnóstico sobre o entorno dos povos indígenas, logo as ações estão também fortemente direcionadas nisso. Elas são desenvolvidas no estado do Amazonas, Acre, Pará e Maranhão, em diversas regiões onde ocorrem questões ligadas ao compartilhamento territorial. Algumas expedições foram realizadas com o aporte financeiro do projeto, aumentando o conhecimento, por parte da Funai, sobre a presença de índios isolados em diversos pontos na Amazônia Legal. Cada vez mais é necessário estabelecer parcerias com instituições idôneas para a proteção desses grupos, já que temos pela frente um cenário não muito favorável com cortes orçamentários profundos por parte do Governo.

Entendo ser importante levar em conta que o CTI, tal como outras organizações indigenistas, tem um longo histórico de atuação direta em terras indígenas, com parceria com a Funai. Não há confusão entre o papel do Estado e dessas organizações na garantia dos direitos constitucionais dos povos indígenas, em especial dos índios isolados. Para além dessa parceria, o CTI mantém outros projetos com a Funai no Vale do Javari (PGTA, educação etc) e em outras terras indígenas nos biomas Amazônia, Cerrado e Mata Atlântica.

Amazônia Real – Por que este recurso não foi destinado diretamente para o orçamento da própria Funai?

Carlos Travassos – O Fundo Amazônia/BNDES apoia iniciativas voltadas para a preservação ambiental da Amazônia, o que envolve também ações para a gestão de territórios indígenas. Podem acessá-los instituições governamentais e da sociedade civil, desde que o projeto se enquadre nas propostas de apoio do Fundo. A Funai está em diálogo com o Fundo Amazônia/BNDES, com o intuito de apresentar um projeto factível, que ela tenha condições de executar. No caso do projeto apresentado pelo CTI, avaliamos, no final do ano de 2011, que não seria possível executar aquele rol de atividades pela própria Funai. Ainda, as regras do banco são claras e o Fundo Amazônia não pode passar a arcar com custos que são de atribuição exclusiva do Estado, devendo seguir, no limite, o princípio de adicionalidade.

Amazônia Real – Sobre a ocupação da sede da Coordenação Regional do Vale do Javari, em Atalaia do Norte, a Funai enviou o antropólogo Walter Coutinho para uma reunião com as lideranças Matís. A Funai abriu o diálogo?

Carlos Travassos – Cabe esclarecer que esse antropólogo nada mais é que o Diretor de Proteção Territorial, ou seja, a Funai enviou um dos seus mais altos gestores para o diálogo com os representantes da ocupação. A Funai sempre esteve em diálogo com os Matís. Para dar um exemplo, em dezembro, em Brasília, foi realizada uma reunião com lideranças Matís e de outras etnias do Vale do Javari com o presidente da Funai, João Pedro Gonçalves da Costa, durante a Conferência Nacional de Política Indigenista, para tratar das reivindicações do povo Matís apresentadas na reunião em Atalaia do Norte. Essa reunião ocorreu de forma franca e direta e foi quando as lideranças Matís presentes apresentaram sua pauta: a exoneração do Coordenador Regional Bruno Pereira e a criação de uma unidade local da Funai exclusiva para os Matis. Tirou-se como encaminhamento, depois de muitas ponderações de ambos os lados, que um diálogo nas aldeias Matís seria o melhor, com o Presidente da Funai se comprometendo em ir pessoalmente às aldeias Matís, em fevereiro, discutir as questões apresentadas por eles. A agenda do presidente foi definida e marcada para ocorrer entre os dias 20 a 24 de fevereiro. Contudo, no dia 19 de janeiro um grupo de indígenas Matís ocupou a sede da Funai em Atalaia do Norte, exigindo que as suas reivindicações fossem atendidas de forma imediata, independentemente da ida do presidente da Funai para as aldeias. Continuamos dialogando para superar essa situação e retomar a agenda da Presidência da Funai na região.

Amazônia Real – O senhor está disposto a dialogar com os indígenas Matís ou já tem mantido esse diálogo?

Carlos Travassos – A Funai tem mantido o posicionamento de busca por diálogo, não sou o único servidor que tem buscado isso, e o diálogo está ocorrendo.

Amazônia Real – Com que frequência o senhor vai às bases das Frentes Etnoambientais?

Carlos Travassos – Em minha opinião vou bastante. Procuro ir sempre que necessário.

 

– Esta matéria foi originalmente publicada no Amazônia Real e é republicada através de um acordo para compartilhar conteúdo.

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