Os Cinta-Larga vivem uma situação parecida com a da grande maioria dos agricultores familiares da Amazônia. Carecem de tudo. Mas eles moram em cima da maior mina de diamantes do mundo.
Por Ana Aranda, especial para a Amazônia Real
Espigão D´Oeste (RO) – Os indígenas Cinta Larga, falantes da língua Tupi Mondé, vivem uma situação parecida com a da grande maioria dos agricultores familiares do interior da Amazônia. Suas casas não têm sistema de esgoto, nem água encanada. As escolas e os postos de saúde são precários e o que produzem nas roças é ineficiente à sobrevivência, pois faltam maquinário, insumos, assistência técnica e crédito bancário. Mas eles moram em cima da maior mina de diamantes do mundo, com capacidade para exploração de um milhão de quilates de pedras preciosas por ano, com receita anual estimada em US$ 200 milhões (ou R$ 760 milhões).
A exploração ilegal das pedras preciosas, que ganhou força em 1998 e chegou a reunir 5 mil garimpeiros, em 2004, mudou a vida dos índios. O Ministério Público Federal estima que vivem cerca de 2.500 Cinta Larga nas Terras Indígenas Roosevelt, Serra Morena, Parque Aripuanã e Aripuanã, que ficam na divisa dos estados de Rondônia e Mato Grosso.
O garimpo levou às reservas danos ambientais às florestas rios e lagos, drogas, prostituição, mortes, processos na Justiça, e aos índios a fama de milionários e o estigma de assassinos e bandidos. Há 11 anos, um grupo de guerreiros Cinta Larga matou 29 garimpeiros. O massacre ocorreu devido à disputa por jazidas de diamantes. O caso, que ganhou repercussão internacional, não foi julgado ainda.
O estigma da criminalização contra a etnia voltou a tomar força esse mês. No dia 08 de dezembro, a Polícia Federal deteve, por cinco dias, seis lideranças Cinta Larga entre as sete pessoas presas na operação Crátons, um desmembramento direto da operação Lava- Jato, que investiga o esquema bilionário de desvio e lavagem de dinheiro na Petrobras.
Na Crátons (nome de estruturas geológicas que dão origem à formação de diamantes), a PF desarticulou uma organização criminosa que promoveu crimes ambientias para extração e comercialização ilegal de diamantes na região do “Garimpo do Lage”, conhecido também como Garimpo do Roosevelt.
De acordo com a PF, o esquema foi descoberto a partir de informações sobre a atuação do doleiro Carlos Habib Chater, o primeiro preso da Lava Jato, em março de 2014. Os investigados da Lava Jato estavam financiando o garimpo dentro da reserva, como a compra de equipamentos, combustível, pagamento de mão de obra de indígenas e não-indígenas, diz a polícia. Uma associação indígena também é investigada como envolvida na organização criminosa, que teria investido R$ 1 milhão para render ao grupo até R$ 6 milhões em 90 dias.
Segundo as investigações, participavam da organização empresários, comerciantes, garimpeiros, advogados e índios. Entre os seis índios que foram presos estão os caciques Nacoça Pio Cinta Larga e Marcelo Cinta Larga. Curiosamente, apenas os nomes deles foram divulgados pela imprensa de Porto Velho. A Polícia Federal diz que os nomes de todos os acusados estão em sigilo devido as investigações e, por isso, não os divulgou. Os acusados foram indiciados em crime de financiar, gerir e promover a exploração de diamantes no “Garimpo Lage”.
A Amazônia Real apurou que os seis indígenas cumpriram prisão temporária em regime domiciliar nas aldeias e na sede da Funai, em Cacoal. Eles foram soltos no dia 12 de dezembro depois de assinarem um acordo de delação premiada, o que permitirá à Polícia Federal investigar a exploração ilegal de diamantes e madeira dentro da reserva.
Lideranças defendem garimpo legal
A agência Amazônia Real estava finalizando esta reportagem sobre o que pensam as jovens lideranças Cinta Larga sobre a exploração ilegal de minérios em suas terras, as perspectivas de preservação da cultura e a educação universitária, quando veio a notícia de que Nacoça Pio e Marcelo estavam presos por acusação de crimes de extração de recursos minerais sem autorização, dano à unidade de conservação, usurpação de bem da união, receptação, organização criminosa, associação criminosa e lavagem de dinheiro por conta da operação Crátons.
O líder da etnia, Nacoça Pio Cinta Larga, foi um dos dez indígenas indiciados pela Polícia Federal de Vilhena (RO), em 2004, pelas mortes de 29 garimpeiros na Terra Indígena Roosevelt. Os crimes aconteceram nas proximidades do “Garimpo Lage”, que agora é alvo da operação Crátons.
No dia 23 de outubro, a Amazônia Real visitou a aldeia Roosevelt dos Cinta Larga, acompanhando a “Caravana da Esperança”, realizada pelo Grupo Clamor (Cinta Larga: Amigos em Movimento pelo Resgate), formado por voluntários da sociedade civil em parceria com o procurador da República Reginaldo Trindade.
Com a “Caravana da Esperança”, o MPF conseguiu levar cerca de 300 autoridades dos três Poderes do Estado, inclusive o governador Confúcio Moura (PMDB), à aldeia Roosevelt. O objetivo da viagem foi fazer com que essas autoridades conhecessem a realidade do povo indígena em razão do garimpo de diamantes e a omissão do poder público, e destinasse recursos na ordem de R$ 1,4 milhão para a realização de projetos sociais e de educação, visando a garantia dos direitos humanos e indígenas, além da proteção aos índios dentro da reserva.
O acesso à Terra Indígena Roosevelt é feito partindo de Porto Velho até Espigão do D´Oeste, um percurso de 500 quilômetros de veículo pela rodovia federal BR 364, que liga a região Norte ao Centro-Oeste do país. De Espigão até a reserva são mais 80 quilômetros de viagem por uma estrada empoeirada e sinuosa, um caminho em zigue- zague por um terreno acidentado e cheio de pedras.
Apesar de reparos recentes, o trajeto de cerca de duas horas é penoso. Em dias de chuva, quando o leito de tabatinga (terra argilosa) vira um sabão, a situação fica pior, de acordo com os moradores da região. A manutenção da estrada está a cargo da prefeitura de Espigão. Há dificuldades da população, principalmente para buscar atendimento médico urgente. No posto de saúde da aldeia são feitos apenas atendimentos básicos.
Na aldeia Roosevelt, Nacoça Pio Cinta Larga concedeu uma entrevista à Amazônia Real, 46 dias antes de ser preso pela Operação Crátons da Polícia Federal. Ele disse que a formação da “Caravana da Esperança” foi um pedido dos próprios indígenas.
“É para que governo possa dar uma solução aos problemas, porque o pessoal fica falando, falando e as coisas estão acontecendo. Nós queremos que o governo, olhando, possa ver que a gente precisa trabalhar para sustentar nossas famílias”, disse.
Pio reclamou da pressão provocada pelo interesse no garimpo. “As pessoas que conhecem o garimpo e até gente de longe ficam querendo ir lá para trabalhar. Ficam só pressionando”, afirmou.
A Constituição de 1988 permite a mineração em terra indígena apenas se houver uma regulamentação específica para o tema. Atualmente, tramita em regime de urgência no Congresso Nacional o Projeto de Lei 1610/96, de autoria do senador Romero Jucá (PMDB), que pretende regulamentar a mineração em terra indígena.
Diferente de outras etnias da Amazônia, os Cinta Larga se declararam favoráveis à exploração mineral em suas terras, desde que a atividade seja exercida pelos próprios indígenas.
À reportagem, Pio defendeu a legalização do garimpo para que os índios tenham condições de trabalhar em paz e sustentar suas famílias.
“Nossas necessidades são muito grandes. Nossos filhos precisam de faculdade. E precisamos de sustentabilidade. Não é mais aquele tempo, planta uma mandioquinha e está bom”, afirmou Pio.
A liderança Cinta Larga diz que seu povo vive sob pressão de interessados no garimpo ilegal. “Temos os diamantes, mas se nós trabalhamos, nós não podemos vender. Este garimpo é a pior coisa que nós temos na vida. Precisamos de advogado para nos defender. Precisamos de dinheiro. Precisamos da legalização para trabalhar direitinho”, afirmou Pio.
Depois da prisão dos indígenas, a reportagem não conseguiu localizar nem os caciques Pio e Marcelo Cinta Larga e nem o advogado deles para que dessem suas versões sobre as acusações da Polícia Federal.
“O pior é a discriminação”
Na aldeia Roosevelt, a Amazônia Real encontrou uma nova geração dos índios Cinta Larga, que busca na educação uma saída para reverter a situação em que vive o povo. Para isso, os jovens precisam se deslocar à sede de Espigão ou até a capital Porto Velho. São poucos que têm esse privilégio. Além falta de recursos financeiros para estudar longe de casa, eles enfrentam dificuldades para vencer a barreira do vestibular, resultantes das deficiências do ensino Fundamental e Médio, que inicia nas aldeias. Nas cidades, onde buscam um futuro melhor, se deparam com o racismo e o preconceito, e precisam se adaptar a um mundo do qual sabem muito pouco.
Diogo Cinta Larga, 25 anos, nasceu e se criou na aldeia Roosevelt, localizada a poucos quilômetros da mina de diamantes “Garimpo Lage”. Ele é estudante do terceiro período da faculdade de Biologia de uma instituição particular, em Porto Velho. O acesso ao estudo aconteceu por meio de uma parceria firmada entre a faculdade e o Ministério Público Federal. O indígena trabalha como estagiário na Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, que fica em Porto Velho.
Para Diogo, o pior impacto do garimpo é a discriminação, manifestada inclusive por índios de outras etnias, além da comunidade do entorno da Terra Indígena Roosevelt, incluindo postos de saúde e entidades não governamentais, entre outros, afirma.
“ [Eles] falam que não precisam atender a gente, porque temos dinheiro e tal, mas o dinheiro do garimpo não atende a toda a comunidade”, relata o jovem, que é um dos cinco indígenas da etnia que chegaram ao ensino superior.
Diogo Cinta Larga conta que antes da exploração dos diamantes, ”o pessoal se virava, vendia castanha, tinha roça, bastante boi”.
“Antes da descoberta dos diamantes, a venda de madeira ilegal também servia de fonte de renda para os indígenas, mas quando o garimpo começou a funcionar todo mundo ia garimpar aos 13, 15 anos de idade. As antigas atividades ficaram esquecidas”, disse Diogo.
O jovem reconhece a dependência crescente dos Cinta Larga ao entorno da terra indígena. “A nova geração vai acostumando com as coisas, celular, computador, aparelhos eletrônicos e não vai dar mais importância para a flecha, o cocar. Essa dependência começa pela alimentação. É só carne de boi, caça é pouca”, disse Diogo Cinta Larga, explicando que para abastecer a despensa, os indígenas recorrem ao mercado de um pequeno vilarejo localizado a cerca de dois quilômetros da aldeia, conhecido como ‘Bradesco’. Lá funcionou um posto do referido banco para atender os garimpeiros.
O despertar das tradições esquecidas
Os índios da principal aldeia da TI Roosevelt também contam, há cerca de cinco anos, com uma linha de ônibus. Ela passa na aldeia três vezes por semana com destino à Espigão do Oeste. A aldeia principal também tem uma pista de voo. As mulheres, segundo Diogo Cinta Larga, estão mais distantes das tradições do que os homens.
“Principalmente as meninas. Não se interessam em fazer colar. Raramente se vê alguma fazendo artesanato. Já os jovens se dedicam à caça e à pesca, como os antepassados. Na roça, só os mais velhos. O dinheiro do garimpo incentiva os jovens, que podem, a morar na cidade”, conta o universitário.
No ano passado foi realizada a Festa do Porcão, evento tradicional dos Cinta Larga que não ocorria há 26 anos. O evento despertou o interesse da comunidade pelas antigas tradições. A própria festa deverá se repetir neste ano. Está marcada para este mês de dezembro.
O projeto de vida de Diogo Cinta Larga inclui uma especialização em mastofauna para fazer o monitoramento das onças pintadas na sua terra. O jovem se inspirou em um projeto desenvolvido pelos Cinta Larga que habitam no Mato Grosso em parceria com fazendeiros do entorno da terra Indígena, chamado de ‘Amigos da Onça’. “As onças pintadas estão no topo da cadeia alimentar e são um ponto de equilíbrio do meio ambiente”, afirmou o estudante.
“Chamam a gente de ladrão, assassino”
À agência Amazônia Real o jovem Aritano Cinta Larga, 23 anos, disse que se deparou com a má fama do seu povo em postagem de uma rede social na internet. “Um deputado, falando da PEC 215, chamou a gente de ladrão, assassino. Isto magoa demais A gente não está roubando ninguém. Esta terra pertence à gente. Se o garimpo fosse regularizado, não teria tanta polêmica sobre nós”, desabafa.
Aritano é estudante universitário de Contabilidade e também estagiário da Kanindé, que oferece acomodações para os indígenas na capital. Terceiro filho mais velho de dez irmãos, ele é o primeiro integrante da aldeia Capitão Cardoso, conhecida como Sapecado, no interior da Terra Indígena Roosevelt, a cursar uma faculdade.
“Foi incrível (entrar na faculdade). Uma alegria não só para a família como para os demais da comunidade. Mas o meu sonho é cursar Direito. Quero me tornar o primeiro advogado Cinta Larga para poder ajudar a defender o meu povo e entender melhor o mundo dos não índios”, afirma Aritano, contando que seu os pais, extrativistas e agricultores, o aconselharam a estudar.
“De acordo com o que nós vivemos, acho que é uma necessidade estudar. Estamos cada vez mais próximos da sociedade não-indígena. A vida na cidade é bem diferente. É bom, pelo lado de estar estudando, mas é difícil se adaptar, porque morei desde criança na aldeia. O que mais incomoda é a agitação e o barulho”, disse.
O jovem Cinta Larga diz que estudou as primeiras quatro séries do Ensino Fundamental na escolinha da aldeia Capitão Cardoso e da quinta à nona no distrito de Pacarama, a 15 quilômetros da aldeia. O Ensino Médio, segundo ele, foi em escola de Espigão do Oeste.
Fora da aldeia, ele afirma que se deparou com o preconceito e o racismo. “Todo o dia a gente é discriminado. Apesar de não falar ou agredir você fisicamente, dá para ver nos olhos das pessoas, claramente, o sentimento de desprezo e raiva. Mas isso me dá mais força para seguir no que estou pretendendo. Sinto que não há obstáculo para mim”, revelou Aritano Cinta Larga.
O estudante afirma que quer uma escola melhor para o seu povo e a oportunidade de os alunos continuem estudando a língua materna depois das quatro primeiras séries. “Na primeira escola aprendi a ler e escrever na nossa língua, mas fora da aldeia, estudei só o português. Deixei de aprender mais sobre a do meu povo”, relata o jovem, que tem uma namorada na aldeia, de 17 anos. “Ela quer estudar. Pretendemos nos casar depois de terminar a faculdade”, disse.
O governo de Rondônia criou uma Política Estadual de Desenvolvimento Sustentável e Assistência Social. Para o estudante, essa política deve estar voltada para o fortalecimento da educação, saúde e cultura e garantir o desenvolvimento sustentável.
“A exploração ilegal da madeira e de minérios traz muitos problemas. Precisamos pensar também nas futuras gerações. O que falta é capacitação, para que o próprio índio possa pensar e gerar emprego dentro das aldeias”, afirmou Aritano Cinta Larga.
Sobre a mineração na reserva, o universitário Aritano Cinta Larga defende que o garimpo do Roosevelt seja regularizado, podendo ser uma forma de incentivar a implementação do Plano de Gestão elaborado em cima de um levantamento social, étnico e geográfico do território dos Cinta Larga pela Associação Etnoambiental Kanindé, com a participação de líderes das aldeias, Funai e Paajaamaj.
“A maioria do povo, principalmente no Roosevelt, só vê o lado do garimpo, mas poderia também trabalhar em outros setores”, acredita.
Um povo à beira da extinção
Coordenador da “Caravana da Esperança” e um dos fundadores do Grupo Clamor (Cinta Larga: Amigos em Movimento pelo Resgate), o procurador da República Reginaldo Trindade acompanha a trajetória dos Cinta Larga desde o início da exploração do garimpo de diamantes e teme pelo destino da etnia.
“É uma comunidade à beira da extinção, senão física, ao menos étnica e cultural. Mas se for para ficar apenas com a violência física, imagine o quão terrível, absolutamente inominável não será caso ocorra alguma tragédia envolvendo os próprios índios. Pena que o Governo Federal não enxergue (ou não queira enxergar) a gravidade da situação”, afirma Reginaldo Trindade.
Desde 2004, ano marcado pela morte de 29 garimpeiros no Roosevelt, Reginaldo Trindade vem cobrando, por meio de ações civis e recomendações, que o Governo Federal propicie condições para os Cinta Larga viverem de forma sustentável, sem depender do garimpo e da venda ilegal de madeira.
Os alertas do procurador a respeito da sobrevivência étnica dos Cinta Larga e do cenário de conflito iminente em seu território se baseiam na descrença dos indígenas nas reiteradas promessas do Governo Federal de atender as necessidades básicas e oferecer um programa de desenvolvimento sustentável para a comunidade, à falta de um aparato de segurança que detenha a entrada de estranhos na TI e ao surgimento relacionado ao garimpo de novas lideranças entre os indígenas, provocando conflitos dentro da própria comunidade.
A estes fatos, juntam-se a prostituição, o alcoolismo e uso de outras drogas e casamentos “espúrios” entre garimpeiros e indígenas, “ultimamente envolvendo adolescentes de 14, 15 anos e anciãs de 60”, cita Trindade.
Ele afirma que a partir do momento em que o Governo Federal não se desincumbe de suas responsabilidades mais elementares, “propicia que outras pessoas, nem sempre bem-intencionadas (aliás, raramente bem-intencionadas) se aproximem dos Cinta Larga. O vácuo deixado pela não atuação do Estado é preenchido por pessoas que só querem roubar os índios”.
Entre as pessoas mal-intencionadas citadas pelo procurador Reginaldo Trindade, está incluída uma intrincada teia formada por organizações poderosas que comandam o contrabando de pedras preciosas no Brasil e no mercado internacional. “Assediados e vulneráveis, os Cinta Larga respondem a um grande número de processos judiciais de toda ordem, “penais, trabalhistas, cíveis etc”, afirma o procurador.
Levantamento feito pela indigenista Inês Hargreaves aponta a existência de mais de 1.500 processos. O grande número de processos é agravado pela falta de uma adequada assistência jurídica.
“Embora se deva reconhecer o trabalho de alguns procuradores da Funai, certo é que o rodízio de procuradores é muito grande ou mesmo eles acabam cumulando as funções de defesa do Povo Cinta Larga com várias outras responsabilidade e tarefas, às vezes coisas que não têm nada a ver com os índios, e isso acaba prejudicando muito o trabalho a ser desenvolvido. Já não é de hoje que sustentamos a imperiosa necessidade de se assegurar, efetivamente, a assistência jurídica aos indígenas. Já tivemos casos de estarrecer… Sem falar que em determinado processo coletivo em que a Funai, em vez de atuar do lado do MPF, na defesa dos interesses dos índios, acabou atuando contra o MPF e contra os índios”, lamenta o procurador Reginaldo Trindade.
A reportagem procurou a Fundação Nacional do Índio (Funai) para comentar as acusações do procurador. O órgão alegou que há “dificuldade de fixação de Procuradores Federais em parte da região norte do país. Além disso, ainda que as vagas sejam providas, a rotatividade é muito grande”.
Segundo a Funai, a defesa dos indígenas compete aos órgãos de execução da PGF nos termos da Portaria AGU nº 839/2010. As demais questões são de competência da defensoria pública, ou, a cargo de advogado privado, acaso os indígenas assim queiram, já que são capazes para decidir.
Na região de Cacoal atuam a Procuradoria Seccional Federal em Ji-Paraná e a PFE-FUNAI/Ji-Paraná. Essa foi reforçada com a presença de dois procuradores federais. A Funai lembra que a decisão de não permanecer na localidade é pessoal de cada Procurador.
Barril de pólvora no garimpo
No primeiro semestre deste ano, o MPF expediu uma recomendação, assinada pelo procurador Reginaldo Trindade, para que a Polícia Federal retirasse cerca de 500 garimpeiros que atuavam dentro da Terra Indígena Roosevelt. Na ocasião, “havia centenas de pessoas armadas, ameaçando e desdenhando dos índios”, explica. Para ele, esta situação retrata “o mesmo pano de fundo da tragédia de abril de 2004”, quando 29 garimpeiros morreram no local.
O procurador denuncia a precariedade da fiscalização feita pela PF nos principais acessos da TI. “Não raro, bastam desvios de alguns poucos metros para driblar as barreiras”, afirma. “As dificuldades começam pelo repasse de recursos e servidores, que jamais foi feito a contento”.
O procurador Reginaldo Trindade afirma que a exploração ilegal de madeira na região “também é muito grande e grave”. “A exploração é visível a olho nu. As terras do Povo Cinta Larga, as do Suruí e as do Povo Zoró (MT) estão próximas umas das outras. O lugar denominado Pacarana (Distrito de Espigão D’Oeste/RO), por exemplo, é uma imensa madeireira ilegal a céu aberto. Ainda que, eventualmente, áreas próximas às reservas indígenas estejam legalizadas, não raro elas são utilizadas para ‘esquentar’ madeira extraída do interior das áreas indígenas. O desafio, no tocante à madeira, é tão grave e difícil quanto em relação ao diamante”. disse o fundador do grupo Clamor.
Localizado a 30 quilômetros da aldeia Central da Terra Indígena Roosevelt, o garimpo ocupa uma faixa de terra de cerca de 13 quilômetros de cumprimento. Uma mancha de terra nua, marcada por crateras, no meio da floresta.
“O rasgo do garimpo na mata cresceu 30% desde 2013, o que comprova que a atividade vinha sendo exercida a pleno vapor, em uma das maiores jazidas do mundo, com diamantes de ótima qualidade”, informou para a Agência Brasil o delegado Bernardo Guidali Amaral, da Superintendência da PF em Rondônia, um dos responsáveis pela Operação Crátons.
A Polícia Federal monitora o garimpo desde 2013 e até o meio do ano, havia cerca de 700 garimpeiros trabalhando no local. “Só com o que foi extraído de madeira no último ano, visando ao funcionamento do garimpo, contabilizamos mais de R$ 1 milhão, valor que já está estipulado como dano mínimo ambiental”, segundo o delegado Guidali Amaral.
A extração dos diamantes chegou a ser paralisada em várias ocasiões, sob promessas de medidas de apoio aos indígenas do governo federal. Promessas não cumpridas que aumentaram a desconfiança dos índios, que já não acreditam em propostas e acordos.
Em 2004, depois do conflito que resultou nas mortes dos 29 garimpeiros, o Governo Federal criou uma força tarefa e firmou um termo de compromisso com metas que incluíam melhoria na saúde, educação e desenvolvimento da agricultura, pecuária e piscicultura na TI Roosevelt. Das promessas, só restaram os postos da Polícia Federal na entrada das quatro principais entradas da terra dos índios, para impedir a entrada de equipamentos e combustível utilizados na exploração das pedras. Uma medida que não impede o acesso de garimpeiros na reserva, que tem 2,4 milhões de hectares, e já provocou muita reclamação dos indígenas, contra a necessidade de terem que passar por revistas para entrar na própria terra.
O procurador Reginaldo Trindade acredita que a situação dos Cinta Larga é mais grave hoje do que o cenário sombrio de 2004. “O envolvimento com o garimpo cria a ameaça deles saírem das aldeias para a cadeia”, lamenta o procurador. Para ele, os indígenas apoiadores do garimpo não acreditam mais nas promessas do governo. “Já perderam a esperança. Jogaram a toalha”, disse.
Legalização do garimpo evitaria conflitos
Tão certo quanto é grande o impacto do garimpo à integridade do povo Cinta Larga é a certeza de que a exploração das pedras deve ser legalizada para evitar conflitos maiores. Os indígenas e órgãos ligados à questão concordam neste ponto.
A Constituição Brasileira determina que a mineração das Terras Indígenas deve ser regulamentada pelo Congresso Nacional, mas o ex-deputado federal Mariton Benedito de Holanda (PT), que presidiu a Frente Parlamentar de Apoio aos Povos Indígenas no período de 2011 a 2014, alerta que este pode não ser um bom momento para colocar o assunto em pauta no Congresso porque há uma clara tendência de grande parte dos parlamentares de retrocesso em relação aos direitos já assegurados aos indígenas e, caso ocorra, “há a necessidade de ratificar a participação dos povos indígenas nesta discussão, já que o Brasil é signatário da Convenção 169 da OIT”, considera ele.
Já o procurador Reginaldo Trindade não acredita na legalização da mineração em terras indígenas “num curto, médio ou talvez até bem longo espaço de tempo”.
“As pessoas não se entendem a respeito. Ainda mais agora que a pauta tem sido conduzida pela bancada ruralista e que não temos quase ninguém se levantando para defender os índios. Por isso, trabalhamos com uma regulamentação excepcional, para valer apenas para o Povo Cinta Larga, como uma espécie de projeto-piloto, laboratório, que possa servir, quem sabe, para tirar as dúvidas e indecisões no tocante às demais terras indígenas. Esperamos apresentar a proposta o quanto antes ao Governo e ao Parlamento”, afirma o procurador.
Plano de Gestão valorizaria a etnia
A Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé elaborou um Plano de Gestão dos recursos do território Cinta Larga embasado em levantamento feito por técnicos juntamente com os indígenas. O Plano inclui a valorização da cultura indígena e melhorias nas escolas, entre outros aspectos.
Para a economia, foi citada uma série de atividades que possam contribuir para o desenvolvimento sustentável dos indígenas, como piscicultura, extrativismo, ecoturismo, entre outros. Mas falta recursos para implementar o Plano.
A Presidência da Funai diz em nota enviada à reportagem que apoia “qualquer plano de economia sustentável para os Cinta Larga, se o mesmo for pactuado com os indígenas e a equipe da Fundação, conforme as disponibilidades orçamentárias, financeiras e de recursos humanos”.
A Funai afirma que procura fortalecer a cadeia produtiva da castanha em todo o chamado corredor Tupi-Mondé, que inclui os Cinta Larga, além dos Zoró, os Paiter-Suruí, Arara (Karo-Rap) e Gavião (Ikolen). Os apoios em projetos diretos da Funai se dão por meio das Coordenações Regionais de Cacoal, Ji-Paraná e Juína, com fornecimento de combustível, sacaria e insumos. Além disso, por meio de Cacoal, nos últimos dois anos a Funai tem apoiado o Projeto Xikaaba, de produção de artesanato das mulheres Cinta Larga.
Segundo o órgão responsável pela política indigenista no país, há também, em paralelo, a agremiação de outros parceiros e de recursos externos para ampliar os apoios aos índios Cinta Larga: “foi estruturada uma Chamada Pública para elaboração e implementação de Planos de Gestão Territorial e Ambiental, sendo que Rondônia foi contemplada; há um Termo de Cooperação Técnica em tramitação a ser assinado entre a Funai e a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater-RO); e há uma aproximação entre o Instituto Chico Mendes, a ONG Pacto das Águas e a Funai para trabalhar a cadeia da castanha envolvendo Terras Indígenas e Unidades de Conservação da região”, diz a nota da Funai.
O que prometem as autoridades?
Na visita à aldeia Roosevelt dos Cinta Larga pela “Caravana da Esperança”, o governador de Rondônia, Confúcio Moura (PMDB) se comprometeu em apoiar os indígenas em suas reivindicações. “Nossa missão aqui é conhecer, bem de perto, a situação problemática da extração ilegal de diamantes na Reserva Roosevelt e promover uma resposta rápida aos anseios do povo Cinta Larga”, afirmou.
O governo estadual mantém, juntamente com a Universidade Federal de Rondônia (Unir), o projeto Açaí, que forma professores indígenas bilíngues para lecionar nas cinco primeiras séries nas aldeias indígenas. Em sua terceira edição, o projeto atende 120 professores de 30 das 54 etnias residentes no Estado, incluindo os Cinta Larga.
Em 2010 a Assembleia Legislativa de Rondônia aprovou a Lei Complementar 578, que criou a carreira de professor indígena no magistério estadual. Recentemente, o Ministério Público Federal, em um esforço do procurador Reginaldo Trindade, criador do grupo Clamor, formado por profissionais de diversas áreas com o objetivo de apoiar o povo Cinta Larga, conseguiu firmar parceria com 15 faculdades particulares de Rondônia para oferecer ensino gratuito aos indígenas.
Para levar o ensino médio para as aldeias e outras localidades de difícil acesso, o governo estadual está implantando o projeto Ensino Médio com Mediação Tecnológica com ensino à distância, por meio de vídeo conferências.
A Universidade Federal de Rondônia (Unir) oferece um curso de formação intercultural de professores bilíngues para os indígenas, do Projeto Açaí, “onde já se nota que eles querem mais do que a licenciatura”, assegura a reitora, Berenice Tourinho.
“Eles querem ser médicos, advogados, enfim, profissões que possam atender as suas próprias demandas de políticas públicas. Não têm mais o foco apenas na Licenciatura. Querem ser protagonistas e precisam ser contemplados com formação de profissionais que entendam o seu universo”, considera a reitora.
Em 2014, o Conselho Superior (Consea) da Universidade aprovou o aumento do percentual das cotas de 15% para 50% para os indígenas, tendo em vista as dificuldades dos mesmos de conquistar as vagas. Com isso, a Unir se antecipou a uma resolução do MEC de oferecer 50% das vagas das cotas para os indígenas até 2016.
“Eles têm dificuldades de superar as médias das cotas de escolas públicas, do preto, do pardo, das populações locais (ribeirinhos). Mesmo dentro das cotas eles já saíam perdendo”, explica Berenice Tourinho.
Massacre foi descrito no Relatório Figueiredo
Esse povo falante da língua Tupi, da família linguística Mondé, é denominado de Cinta Larga pelo uso de uma faixa da entrecasca da árvore tuari na cintura. Eles se autodenominam Panderj, que significa “nós somos pessoas humanas”. Habitam territórios demarcados no noroeste do Mato Grosso e Rondônia, nas Terras Indígenas Roosevelt e Serra Morena, Parque Aripuanã e Juína. Os primeiros contatos com os não índios datam da década de 1950 e foram marcados pela violência.
Habitantes de um território de 2,4 milhões de hectares, divididos entre os estados de Rondônia e Mato Grosso, o Marechal Cândido Mariano Rondon percorreu as terras dos Cinta Larga no início do Século 20, em companhia do ex-presidente dos Estados Unidos Theodore Roosevelt.
Na década de 1960, os Cinta Larga foram protagonistas do chamado ‘Massacre do Paralelo 11’, que ficou famoso na comunidade internacional pelos meios cruéis utilizados para a sua extinção. O episódio resultou em uma condenação contra o Brasil no cenário internacional, obrigando o País a extinguir o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e a criar outro organismo de apoio aos indígenas, a atual Fundação Nacional do Índio (Funai). Na época, a etnia era formada por cerca de 5 mil indivíduos. Da tentativa de extermínio, só restaram 1.760, conforme dados do Instituto Socioambiental.
O repertório de crueldades que fez a fama do ‘Massacre do Paralelo 11’ incluiu a distribuição de açúcar envenenado com estriquinina e objetos infectado de varíola, bombas lançadas por aviões, estupros e índias penduradas e retalhadas por facões, além de brinquedos envenenados para as crianças. Uma destas ações foi registrada em depoimento do seringueiro Ataíde dos Santos dado a uma comissão liderada pelo procurador Jader de Figueiredo Correia – que apurou a matança de comunidades inteiras, torturas e toda sorte de crueldade praticadas contra indígenas em todo o País na década de 1960.
Segundo o depoimento de Ataíde dos Santos, ele foi contratado pelo seringalista Antônio Mascarenhas de Junqueira para expulsar os Cinta Larga de suas terras em Rondônia e resolveu contar o que sabia porque não recebeu do comparsa a quantia tratada para participar do massacre.
No depoimento, Santos conta como foi morta uma mulher que sobrou viva em meio a dezenas de corpos que se estendiam no chão, depois de uma emboscada feita em uma aldeia Cinta Larga.
“O local ficou parecendo um frigorífico humano, com corpos e sangue por todo o lado. A mulher trazia uma criança de cinco anos pela mão. O pequeno, que chorava muito, foi morto com um tiro na testa. Ela, pendurada em uma árvore, foi cortada ao meio e esquartejada”, relatou o seringalista.
O Relatório Figueiredo, como ficou conhecido o documento, revela um quadro dantesco de violência em ações deliberadas para extermínio de indígenas, na década de 1960, quando a política governamental era a ocupação dos “espaços vazios” da Amazônia.
Formada para julgar os crimes praticados por agentes do governo durante o regime militar, o Relatório Figueiredo não chegou a ser analisado pela Comissão Nacional da Verdade, formada com este fim, deixando de fazer justiça aos milhares de indígenas que foram vítimas de ações do governo na época.
Supostamente eliminado em um incêndio no Ministério da Agricultura, o documento foi encontrado no Museu do Índio, no Rio de Janeiro, em 2013, com mais de 7 mil páginas preservadas e contendo 29 dos 30 tomos originais. O documento relata os crimes cometidos contra os povos indígenas por agentes do governo e latifundiários. Calcula-se que oito mil índios foram mortos durante a construção de grandes rodovias na região Norte.
– Esta matéria foi originalmente publicada no Amazônia Real e é republicada através de um acordo para compartilhar conteúdo.