Hoje em dia, diante de um clima cada vez mais irregular, algumas “das previsões baseadas no conhecimento tradicional dos ribeirinhos não são mais confiáveis”, afirma um técnico de pesca.
“Em qual universidade você se formou?”. A pergunta era inevitável nas rodas de conversa entre os pesquisadores do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM), no Amazonas. Ruiter Braga, 41 anos, nascido à beira do rio, filho de pescador, respondia um tanto sem graça: “Na universidade da prática”. Foi assim durante muito tempo, mas não é mais. Ruiter, agora, é biólogo.
“Falta apenas uma disciplina”, frisa o Técnico no Programa de Manejo de Pesca do IDSM. “As viagens interferiram nos estudos”, ele complementa. Ruiter ainda relata que a busca por uma formação acadêmica veio por incentivo de alguns biólogos do IDSM. “Foi difícil. Eu tinha terminado o ensino médio há 14 anos, mas consegui”, diz o biólogo prestes a ser graduado pela Universidade Estadual do Estado do Amazonas.
Quem já esteve na Amazônia sabe que, aos olhos urbanos, a vastidão de árvores e rios parece muitas vezes homogênea. Por isso mesmo, a leitura do ambiente feita pelos caboclos é impressionante. Capazes de distinguir minúcias imperceptíveis aos visitantes, eles conseguem apontar os pontos em um leito escuro de rio que podem custar ou não a vida do banhista (por causa dos agressivos jacarés-açu); os pescadores, desde sempre, souberam indicar os melhores locais para a pesca e a época adequada para as capturas.
Mas agora, diante de um clima cada vez mais irregular, algumas “das previsões baseadas no conhecimento tradicional dos ribeirinhos não são mais confiáveis”, afirma Ruiter. E é justamente por aliar o conhecimento ancestral com a fundamentação científica, que suas falas sobre a floresta devem ser ouvidas. Na entrevista a seguir, Ruiter compartilha percpeções do interior da Amazônia sobre os impactos das alterações climáticas.
É um biólogo dando voz aos pescadores. Ou um pescador compartilhando o drama de seus pares.
Como é o trabalho feito por você no Instituto Mamirauá?
Meu trabalho consiste na implementação de metodologias apropriadas para o manejo de recursos pesqueiros, assessorando as organizações de pescadores com informações das documentações obrigatórias à prática, legislação pesqueira, conservação e preservação dos recursos e a importância do manejo das populações de peixes. Durante a estação seca, acompanho a pesca de pirarucu manejado e contribuo para o monitoramento reprodutivo da espécie. Eu também tenho participação na produção de dois protocolos de manejo e sou um dos autores de uma cartilha de metodologia de contagem de pirarucu intitulada “Contagem e Censo populacional de Pirarucu”.
Pesquisadores e pescadores têm notado algo de diferente nas condições climáticas da Amazônia?
Nasci e cresci na Amazônia. Posso afirmar que, de uns 20 anos para cá, o clima mudou bastante na região. Antes, a partir do conhecimento empírico dos ribeirinhos mais antigos, era possível prever o início das estações e, dessa forma, planejar as atividades de plantio e colheita na várzea e saber a época ideal para dar início à pescaria sem o risco de uma seca extrema ou uma cheia antecipada.
Quais as alterações mais perceptíveis em Mamirauá? E quais os impactos para o manejo do pirarucu?
Em 2014, os pescadores que realizam o manejo de pirarucu foram prejudicados pelo nível do rio, que se encontrava muito elevado no período de realização da pesca (outubro e novembro). Os níveis dos rios Solimões e Japurá, na região do Médio Amazonas, se mantiveram elevados por causa da antecipação das chuvas. Para se ter uma ideia dos impactos nas 11 áreas de manejo que assessoramos, foram autorizados pelo Ibama 11.910 pirarucus adultos como cota anual de captura. Porém, os pescadores chegaram a apenas 8.307 indivíduos [o equivalente a 70%]. Em alguns lugares, a situação foi mais crítica do que em outros.
Pode explicar melhor o que ocorreu nos locais mais afetados?
Das 11 áreas de manejo, após a avaliação dos possíveis impactos negativos que poderiam causar, os pescadores optaram por não realizar a pescarias. O elevado nível da água nos ambientes de pesca dificulta a captura do pirarucu, que, tradicionalmente, é arpoado (fisgado com o auxílio de um arpão). Os mais de três mil pirarucus não capturados, juntos, poderiam equivaler a 211 toneladas de peixe. O dinheiro que viria daí (em torno de 900 reais por pescador no bimestre de pesca) fez muita falta às famílias.
Confira abaixo as áreas de manejo assessoradas pelo Instituto Mamirauá
Voltando ao clima, anos mais secos ou mais chuvosos do que outros não foram sempre comuns na Amazônia?
As previsões climáticas a partir do conhecimento tradicional não são mais confiáveis |
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Sim, isso sempre aconteceu. No entanto, a região era marcada por uma estação seca e outra chuvosa, ambas bem definidas e com períodos de enchente, cheia, vazante e seca. Agora, a sensação é a de que as datas dessas transições não estão mais regulares, como costumava ocorrer. Os pescadores mais antigos dizem que o “repiquete” (fenômeno que acontece entre os período de seca e enchente, é uma subida temporária do nível do rio, mas ainda não é a cheia “verdadeira”) em nossa região era esperado para o dia de finados (2 de novembro), mas, nas últimas duas décadas, a data tem sido bastante irregular, o que prejudica a pesca (o metabolismo e o comportamento dos peixes também são impactados). As previsões a partir do conhecimento tradicional não são mais confiáveis.
O que os ribeirinhos têm feito para se adaptar às variações irregulares?
Não há muito o que fazer, a não ser tomar ciência de que não é mais possível ter uma data definida para o início do período de pesca |
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Não há muito o que fazer, a não ser tomar ciência de que não é mais possível ter uma data definida para o início do período de pesca. Se adaptar à nova realidade é muito importante em uma região onde uma variação de água de apenas 80 centímetros para cima resulta na inundação de vários quilômetros de extensão e na dispersão dos peixes, o que dificulta a captura. Por outro lado, uma seca um pouco prolongada já é suficiente para desconectar alguns ambientes, dificultando o acesso e o transporte dos peixes capturados. Os pescadores estão tentando se preparar com antecedência para a pescaria sem ter mais uma data fixa na cabeça.
Pessoalmente, o que você pode dizer sobre o clima na região do Médio Solimões?
Embora eu tenha a formação em biologia, não me arrisco muito a falar das mudanças climáticas do ponto de vista científico. Meu trabalho é com dinâmica populacional de pirarucus, sua conservação e manejo. O que posso dizer é que faltam investimentos do governo em educação ambiental e controle, inclusive em nossa região, onde a fiscalização é bastante ineficiente – e não podemos esquecer que as mudanças climáticas têm relação direta com o desmatamento desordenado. Como caboclo aqui da região, sabemos que já estamos sofrendo com os efeitos das mudanças climáticas. O que podemos fazer é continuar trabalhando em prol da conservação dos recursos naturais por meio de uso ordenado e manejo sustentável, tentando conscientizar as pessoas do uso racional. A nossa parte está sendo feita!