Nos rios Teles Pires e Juruena, índios Apiaká, Kayabi, Munduruku e Rikbaktsa somam forças para defender seus direitos frente a construção do complexo de usinas hidrelétricas

Encontro dos povos indígenas Kayabi, Apiaká, Munduruku e Rikbatsa – 21 a 24 de abril. Foto: Mídia Ninja

Em novembro, estive na região do Tapajós, no oeste do Pará, e pude observar de perto a luta que os Munduruku travam dia após dia para garantir seu direito de viver, cultivar e caçar na terra da qual dependem. A notícia de construção de hidrelétricas na região exige deles um esforço dobrado: agora, se dividem entre o trabalho pesado da roça e o da organização política. É uma força admirável que vem do único caminho possível, batalhar pela sobrevivência.

Só que o caso não é isolado. Seus vizinhos Apiaká, Kayabi e Rikbaktsa, que vivem na divisa do Pará e do Mato Grosso, também estão brigando feio pelo cumprimento da lei. Ali na fronteira, um complexo de quatro hidrelétricas está sendo construído no rio Teles Pires, formador do rio Tapajós. O plano do governo federal é que as usinas de Sinop, Colíder, Teles Pires e São Manoel se juntem ao complexo de hidrelétricas planejadas para os rios Tapajós e Jamanxim, a oeste do Pará, e formem um sistema de fornecimento de energia para o sudeste e o centro-oeste.

Hoje, as etnias lançaram um manifesto em que reafirmam sua união e exigem que se cumpra a consulta sobre os projetos hidrelétricos em curso (leia o manifesto no fim do texto). É importante ouvi-los. O anúncio que fazem é de uma gravidade imensa. É o anúncio do aniquilamento de um modo de vida do qual dependem e, em última instância, da sua própria vida. É difícil esquecer o modo como o cacique Juarez Saw, da Terra Indígena Sawré Muybu, nos falou com tanta tranquilidade lá no Tapajós: “pra eu sair daqui, só se o governo me matar”.

O problema fica ainda mais sério porque os trâmites da burocracia judiciária seguem por caminhos tortuosos – e muito pouco seguros. Só para ter uma ideia, o caso da usina de São Manoel, no Teles Pires, já teve cinco vitórias para aos indígenas e ribeirinhos, a pedido do Ministério Público Federal. A última, no final do ano passado, foi uma liminar dada pela Justiça, que paralisou a construção de São Manoel. Mas em janeiro ela voltou a seu curso planejado, a pedido da União que justifica: “a paralisação das obras implicaria prejuízos econômico e social”.

As barragens de Teles Pires e Colider, já construídas, mostram a força de destruição sobre a vida dos indígenas que vivem na fronteira entre o Pará e Mato Grosso. Além de lugares sagrados, como a cachoeira de Sete Quedas e o Morro do Macaco terem sido destruídos, a morte de peixes, a alteração nas cheias e secas do rio, a poluição que contamina as águas próximas às usinas e impede seu consumo, trazem o anúncio de um caminho sem volta. “O Governo está assumindo os riscos de um genocídio”, declaram Apiaká, Kayabi, Munduruku e Rikbaktsa em sua carta-manifesto.

Naquela região ainda vivem populações de Apiaká em isolamento voluntário, que podem ser severamente afetadas pela construção de São Manoel. A barragem está planejada para ser construída a menos de um quilômetro de distância dos limites da Terra Indígena Kayabi, que ainda não teve seu processo de demarcação concluído. Falta a terra ser registrada, a última etapa do processo. Ao mesmo tempo, no Pará, o projeto da usina de São Luiz do Tapajós pode alagar parte da terra gerida pelo cacique Juarez.

Hoje, no campo da batalha judicial, a notícia veio a favor dos indígenas: a Justiça decidiu que a Funai deve prosseguir com o processo de demarcação da Sawré Muybu num prazo de até 15 dias, com riscos de pagar multa aos Munduruku caso não cumpra a decisão. O órgão indigenista já reconheceu em estudo que a terra é dos Munduruku e desde 2013 tem o relatório pronto, mas não o publica oficialmente (leia mais sobre o relatório, publicado com exclusividade pela Pública). A publicação desse estudo é o primeiro passo para dar continuidade ao processo. A decisão é um sopro de esperança que deve ser comemorado. Mas diante das tantas vitórias e derrotas na Justiça, isso não basta.

Enquanto isso, em Brasília, os indígenas se unem para tentar barrar ao menos seis propostas que tramitam no Congresso Nacional e ameaçam suprimir as garantias já conquistadas. Uma delas, a PEC 215/2000, transfere do Poder Executivo para o Legislativo o já difícil processo de reconhecimento das terras indígenas. Em resposta, de 14 a 16 de abril, mais de 1,5 mil lideranças indígenas, incluindo lideranças Munduruku, se reuniram na capital federal para garantir o cumprimento e estabilidade do mínimo que têm: seus direitos. As denúncias de violações de direitos também chegaram à Organização das Nações Unidas (ONU), pelo Fórum Permanente Para Questões Indígenas. A Relatora Especial sobre Direitos Indígenas da Organização das Nações Unidas (ONU), Victoria Tauli-Corpuz, anunciou ontem que só aguarda convite oficial do governo para visitar as comunidades afetadas no país.

Para os índios, diante do abismo que os afasta dos olhos do resto da população brasileira e os separa dos interesses do Estado, o que está em jogo é sua própria existência.

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Leia abaixo o manifesto:

Manifesto da Aliança dos Povos Indígenas Apiaká, Kayabi, Munduruku e Rikbaktsa

Aldeia Teles Pires, Terra Indígena Kayabi, 24 de Abril de 2015

Nós, Povos Indígenas Apiaká, Kayabi e Munduruku do baixo Teles Pires e Rikbaktsa do baixo Juruena, reunidos na aldeia Teles Pires entre os dias 21 a 24 de abril de 2015, reafirmamos nossa aliança e união em defesa dos rios Teles Pires, Juruena e Tapajós. Continuaremos lutando por nossos direitos coletivos, pelo direito constitucionalmente garantido ao uso exclusivo dos recursos naturais de nossas terras, e pela posse permanente de nossos territórios de ocupação tradicional, de forma que continuem permitindo nossa sobrevivência física e cultural, hoje gravemente ameaçada pelas barragens para usinas hidrelétricas, sendo construídas pelo Governo Federal, liderado pela Presidente Dilma, em conjunto com grandes empreiteiras.

As usinas de Sinop, Colíder, Teles Pires e São Manoel estão mudando radicalmente o rio Teles Pires e afetando nosso modo de vida tradicional. As barragens de Teles Pires e Colider já mataram toneladas de peixes e milhares de animais. Abaixo das barragens, os peixes também estão morrendo em nosso território por conta das cheias e baixas repentinas do rio descontrolado, que já levou muitas canoas. Com a água suja das barragens não conseguimos mais pescar com arco e flecha, enquanto aumentam os problemas de saúde com a água contaminada, especialmente nas aldeias mais próximas das usinas. Até mesmo o baixo rio Juruena tem diminuindo a sua água de repente, afetando as aldeias Apiaká, quando a usina seca a água do rio Teles Pires.

Nós que moramos nas terras indígenas Kayabi, Apiaka e Munduruku do Teles Pires e Terra Indígena Apiaká e Pontal dos Isolados somos responsáveis pela conservação de milhares de hectares de floresta e da biodiversidade, patrimônio da humanidade, que o não índio tem se mostrado incapaz de governar e cuidar. Nessas áreas vivem índios isolados, que já foram vistos por diversas pessoas da comunidade, mas até agora não estão claras quais serão as medidas de proteção para a sobrevivência desses povos, cada vez mais ameaçadas por hidrelétricas e outros grandes projetos.

O governo constrói barragens com estudos apressados e incompletos, sem buscar entender as consequências da destruição da natureza para nossas vidas, autorizando o funcionamento das barragens sem dar uma resposta aos indígenas de como seguirão suas vidas sem peixe, sem água, sem caça. Tenta esconder seus impactos negativos sobre nossas vidas, nossos rios e nossos territórios. O governo não traz informações que entendemos, nas nossas aldeias e nas nossas línguas, não oferece alternativas para a nossa sobrevivência física e cultural.

O Governo Federal não tem respeitado o nosso direito a consulta e consentimento livre, prévio e informado, garantido pela Constituição Federal e pela Convenção 169 da OIT, antes de tomar suas decisões políticas sobre a construção de barragens no rio Teles Pires. Jamais fomos consultados ou demos nosso consentimento para a destruição de nossos rios, nossas florestas e nossos lugares sagrados, como a cachoeira de Sete Quedas e o Morro do Macaco.

Vários juízes já viram que nossos direitos estão sendo violados em decisões sobre ações ajuizadas pelo Ministério Público contra essas ilegalidades, mas os Presidentes do Tribunal Regional Federal, do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal suspendem essas decisões, usando uma manobra da época da ditadura, chamada “Suspensão de Segurança”. Tudo a mando do Poder Executivo. Denunciamos que o Poder Judiciário, por meio de seus presidentes de Tribunal, estão negando independência ao Poder Judiciário, dando andamento a obras que privilegiam poderosos grupos econômicos e políticos, quando a primeira defesa do direito deve ser a vida humana, os direitos humanos, a dignidade da pessoa humana. Assim, comprometem a democracia, a República e envergonham o direito que o próprio não-índio criou.

Vivemos na região do baixo rio Teles Pires e do rio Juruena imemorialmente. Nossos avós, bisavós, tataravós e os que vieram antes deles já estavam aqui. Em 1988, quando a nova Constituição Brasileira foi aprovada, já estávamos aqui. Mesmo assim, o Supremo Tribunal Federal vem recusando terminar o registro de nossos territórios, como no caso da TI Kayabi.

A Usina de São Manoel está sendo construída a poucos metros do limite da TI Kayabi, muito próximo a várias de nossas aldeias, também sem qualquer processo de consulta prévia. Com mais essa barragem, não vai só matar mais peixe e estragar ainda mais a água de nosso rio, mas pode morrer gente também.

Assim, o Governo está assumindo os riscos de um genocídio. O que o governo vai falar para o mundo se os povos indígenas tiverem que sair de suas aldeias por falta de condições mínimas de sobrevivência? Ou mesmo se morrerem? Vai contar que não cumpriu com a Constituição Brasileira e as leis internacionais de proteção dos direitos humanos? Que liberou empreendimentos sem seguir as leis ambientais do Brasil, utilizando dinheiro do povo? Que o que o se queria não era gerar energia, mas sim alimentar esquemas de corrupção com empreiteiras e partidos políticos, como as investigações do Ministério Público Federal e da Polícia Federal na Operação Lava Jato vem demonstrando?

Resumindo, informamos a todos os poderes de Estado, que NUNCA fomos consultados, que JAMAIS demos o nosso CONSENTIMENTO para a construção de barragens para hidrelétricas no rio Teles Pires.

Exigimos que o governo traga informações de qualidade. conforme a determina a legislação ambiental, sobre os riscos de construir escadas de barragens no Teles Pires, Juruena e nos outros rios da bacia do Tapajós, e que respeite o nosso direito a consulta e consentimento livre, prévio e informado.

Considerando os graves atropelos de nossos direitos que já aconteceram, exigimos a imediata suspensão da construção da usina de São Manoel, e que nossos direitos sejam plenamente respeitados.

Queremos que o Governo cumpra com seu dever de demarcar e homologar nossos territórios, de garantir políticas públicas de saúde e educação de qualidade, levando em conta a nossa realidade. Que apoie nossos planos para cuidar de nossos territórios. Enfim, que se comprometa em respeitar nossos direitos e o que é necessário para garantir nossa sobrevivência de verdade, com autonomia e autodeterminação sobre o nosso presente e futuro.

Assinam: representantes dos povos indígenas Apiaká, Kayabi, Munduruku e Rikbaktsa

https://medium.com/@carta_tapajos/aldeia-munduruku-rio-teles-pires-49511e6cbbf7

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