Enquanto o sudeste angustia-se com reservatórios de água em situação crítica, o Estado do Acre, no extremo oeste do país, vive realidade absolutamente oposta. Com a cheia histórica, o rio Acre bateu seu próprio recorde de altura.
Relato da viagem de dois paulistas açoitados pela crise hídrica à maior cheia da história do estado amazônico.
Por Laura Capriglione da Ponte com fotos de Mídia NINJA
Enquanto o sudeste angustia-se com reservatórios de água em situação crítica, e dá boas vindas às águas de março, o Estado do Acre, no extremo oeste do país, vive realidade absolutamente oposta. O nível do rio Acre atingiu os 17,80 metros na segunda-feira (2/03), em Rio Branco, a capital. Com a cheia histórica, o rio bateu seu próprio recorde de altura, obtido em 1997, quando cravou a cota de 17,66 metros acima do leito normal.
Já se contam mais de 8.000 desabrigados em todo o Estado, 5.450 apenas na capital, divididos em cinco abrigos públicos. A cheia atinge 40 dos 212 bairros da cidade. E as águas não param de subir.
Nas ruas, no comércio, o Acre só fala nisso. Em períodos normais de chuvas, o rio sobe de seis a oito metros. Nas estações secas, desce três metros.
“Eu nunca vi uma situação como esta”, disse Raimundo Nonato da Silva, 85 anos, seringueiro aposentado, que perdeu tudo na atual cheia.
Com o nível do rio subindo dia após dia, Raimundo foi pouco a pouco subindo as coisas de casa. A televisão foi para cima do armário, a geladeira ficou deitada em cima da mesa, roupas escalaram os ganchos mais altos da rede.
Mas a cheia do rio surpreendeu e ultrapassou o teto da casa do seringueiro, no bairro 6 de Agosto –nesta segunda-feira quase totalmente submerso. Isso apesar de a casa ficar em cima de palafitas.
Raimundo só saiu no último instante, quando um bote de resgate da Defesa Civil do município propôs-lhe a derradeira chance de ainda tentar a retirada de umas coisinhas, agora pelo telhado da casa. Não deu tempo.
O prefeito de Rio Branco, Marcus Alexandre (PT), decretou no domingo o estado de calamidade pública. Estado e município cancelaram as atividades normais do funcionalismo e pediram a todos os servidores públicos que ajudem na assistência aos desabrigados.
O Acre está assustado com a cheia inédita, mas está também encantado com o espetáculo promovido pelo rio amazônicos.
No domingo, enquanto o rio Acre subia rapidamente, e engordava, avançando sobre o calçadão da Gameleira, um dos principais cartões postais de Rio Branco, milhares de moradores saíram de suas casas para apreciar o espetáculo da corredeira.
Carrinhos vendendo pipocas verdes, amarelas e vermelhas, as cores da bandeira do Acre, disputavam terreno com camelôs que ofereciam balões coloridos do Mickey, dos Angrybirds, de Minions (R$ 10 cada).
Meninos jogavam-se no rio feroz e cheio de galhos arrancados das florestas por onde passou. Eram arrastados até a ponte velha, de lá emergindo. E, de novo, jogavam-se no rio. E, de novo.
Os ricos exibiam-se em acrobacias a bordo de jet skis.
“É triste ver as pessoas perderem tudo com a cheia do rio, mas que é bonito ver essa força das águas, ah, isso é!”, disseram, com variações pequenas, todas as pessoas que entrevistamos.
“Trata-se de uma outra relação com o rio, com a natureza, com os ciclos da vida”, explicou–nos a irmã Maria Amélia, uma freira católica gaúcha que morou em São Paulo durante oito anos. Ela também se admirava com o espetáculo fluvial, enquanto conversava com outra freira, traçando planos de viagem para Brasiléia, na fronteira com a Bolívia, para ajudar os desabrigados de lá.
Banhada pelo rio Acre, Brasiléia é um município difícil de definir, por causa das incríveis contradições que contém. É por lá que entram os haitianos trazidos por coiotes (especialistas em tráfico de gente). São centenas (já foram milhares) esperando a documentação de refugiados no posto da Polícia Federal.
Também se veem cholas e bolivianos em geral andando pelas ruas, sempre acompanhados por suas famílias. Provêm do vizinho município de Cobija, onde se pode comprar muambas variadas, já que possui uma zona franca à moda de Ciudad Del Leste, no Paraguai. “Chegou Notebook — HP, Asus, Apple, Celulares”, lê-se à guisa de boas vindas, na fronteira.
Separados de Brasiléia apenas pelo rio Acre, os bolivianos pobres de Cobija percorrem as ruas brasileiras, investigando o lixo que os acrianos jogam fora. Reaproveitam quase tudo.
Com as inundações atingiram o centro comercial de Brasiléia como um tsunami fluvial, os brasileiros descartaram de tudo: de mesas com a madeira inchada pela água, roupas e sapatos sujos de lama, fantasias, fogões, geladeiras, colchões, pedaços de vidraças estouradas pela força das águas, pacotes de alimentos e até remédios.
Tudo que aparecesse envolto em um creme cor de chocolate, mas que pudesse recuperar alguma função uma vez lavado era ente recolhido pelas famílias bolivianas, e levado para o outro lado da fronteira.
A inundação criou uma apreensão absolutamente original (e em boa parte imaginária) em Brasiléia. Nos bairros Leonardo Barbosa e Samaúma, situados em uma curva do rio Acre, a cheia ilhou os moradores brasileiros dentro do território boliviano.
“Minha família perdeu quase tudo. Estamos sem energia, sem água; estamos agora ilhados. Perdemos muito, porque não acreditamos que a água fosse subir tanto. Mas não perdemos a vida e o amor pelo Brasil. Não aceito, a esta altura da minha vida, virar boliviano”, disse Francisco Nogueira Cavalcanti, casado, uma filha, enquanto acompanhava a movimentação de uma retroescavadeira cedida pela Prefeitura, que recompunha a ligação entre os dois bairros e o Brasil. Ufa!
A cheia dos rios da região amazônica é diferente da cheia dos rios em outras regiões do país. Na bacia amazônica, as cheias fazem parte do regime hidrológico da região. Quando chove, um rio não transborda imediatamente, como acontece em São Paulo, por exemplo. Como vasos comunicantes, os rios sofrem o impacto das cheias nas regiões altas, que “descem” por gravidade para as partes mais baixas do leito fluvial.
Eis porque Rio Branco viveu em suspense toda a semana passada, acompanhando as notícias sobre o comportamento do rio Acre quando passou por Brasiléia primeiro e, depois, por Xapuri. Se subisse fortemente em Brasiléia, se mantivesse a mesma força ao varrer Xapuri, provavelmente as águas chegariam desvastadoras em Rio Branco.
Foi o que aconteceu.
– Esta matéria foi originalmente publicada no Amazônia Real e é republicada através de um acordo para compartilhar conteúdo.