Para driblar atrasos e obedecer ao novo cronograma de construção da hidrelétrica de Belo Monte, a concessionária Norte Energia vai remover nos próximos dois meses mais de 2.000 famílias das áreas que serão alagadas.
ELISA ESTRONIOLI, colaboração para a agência Amazônia Real
DE ALTAMIRA (PA) – Para driblar atrasos e obedecer ao novo cronograma de construção da hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, a concessionária Norte Energia vai remover nos próximos dois meses mais de 2.000 famílias das áreas que serão alagadas pela usina no município de Altamira, no sudoeste do Pará. O número de famílias que receberão novas casas é exatamente o mesmo que a empresa levou um ano para reassentar nos bairros construídos por ela na cidade, em 2014.
O município de Altamira tem cerca de 150 mil habitantes, segundo a prefeitura. A concessionária Norte Energia fez um cadastro de 7.790 famílias (cerca de 38.000 pessoas) que serão atingidas pela barragem de Belo Monte.
O primeiro prazo para remoção das famílias foi o mês de novembro de 2014. A previsão de enchimento do reservatório da hidrelétrica e começo da venda de energia era para o final de janeiro de 2015. Com o atraso nas remoções das famílias, o novo prazo para começar a encher o reservatório é a partir de novembro de 2015.
Em janeiro de 2014, uma média de seis famílias foram realocadas ao mês para os locais chamados pela Norte Energia de “Reassentamentos Urbanos Coletivos”, localizados na periferia de Altamira.
As mudanças começaram lentas, com uma média de cinco a dez famílias transferidas por semana, em um período de inverno rigoroso – o rio Xingu subiu oito metros e mais de 2.000 famílias tiveram que ir para abrigos provisórios. No final do ano, com a construção de mais casas, o processo acelerou e no início de novembro a empresa transferiu a milésima família. Agora são realizas cerca de 80 mudanças por semana, segundo a empresa.
Iniciadas em 2011, as obras civis de Belo Monte já estão 70% concluídas. Segundo o jornal Folha de S. Paulo, são justamente as mudanças das famílias da área do reservatório que estão atrasando o cronograma.
Oficialmente, a Norte Energia, grupo formado por empresas estatais e privadas, liderado pela Eletrobras, não admite atraso em seu cronograma e vem rebatendo notícias na imprensa nacional sobre o assunto. Na cidade de Altamira, no entanto, é comum ouvir de funcionários de vários escalões da empresa que obra está atrasada “pelo menos um ano”.
A construção da obra, uma das mais questionadas por ambientalistas, lideranças indígenas e movimentos sociais devido aos impactos sociais e ambientais na bacia do Rio Xingu, é de responsabilidade do Consórcio Construtor Belo Monte (CCBM), formado por um grupo de empreiteiras, entre elas, Andrade Gutierres, Camargo Correa, Odebrecht e Queiroz Galvão. Deve custar R$ 30 bilhões, de recursos previstos pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo federal.
As consequências das rápidas remoções
No começo de 2013, quando as obras da hidrelétrica de Belo Monte não estavam nem na metade, o pedreiro Cláudio Costa começou a construir sua casa de alvenaria em um terreno comprado em uma área baixa no bairro São Domingos, na periferia da cidade de Altamira. Quando o pé direito alcançava 1,60 metros, apareceu uma placa nos arredores: “Atenção. Não construa. Essa área será reurbanizada. Consulte o plantão social.”
A placa trazia a logomarca da concessionária Norte Energia. Diante do risco de perder tudo que fizesse a partir dali, Cláudio Costa interrompeu a construção e passou a pagar R$ 250 de aluguel em outra casa também no baixão, como são chamadas em Altamira as áreas ao redor dos igarapés, que alagam durante o inverno amazônico e onde predominam casas de palafita. Mais tarde, essa casa também teve de ser removida devido à construção da barragem.
Costa mudou-se para outro bairro na periferia de Altamira, o Paixão de Cristo, onde passou a pagar um aluguel de R$ 500.
Agora, a Norte Energia só me oferece R$ 26 mil em indenização. Eu queria era a casa!”, conta o pedreiro Cláudio Costa, que se sente pressionado a negociar, pois não aguenta mais pagar o aluguel.
Ele repete uma frase muito ouvida pelos atingidos: “Essa indenização não paga nem o terreno hoje em Altamira!”, disse o pedreiro.
A história de Cláudio Costa é só um exemplo entre tantos outros para ilustrar os problemas vividos pelas cerca de 10 mil famílias que deverão ser removidas de suas casas nas áreas alagadiças da cidade de Altamira para dar lugar ao reservatório da hidrelétrica de Belo Monte. A Norte Energia afirmou nas reuniões com famílias e em uma nota oficial que pretende remover todos os moradores até o final de março deste ano. E quanto mais a empresa tenta acelerar as mudanças, mais visíveis são as consequências da implantação da barragem.
Em janeiro de 2014, há um ano, portanto, a Norte Energia começou a fazer a mudança das famílias para os cinco loteamentos chamados de “Reassentamento Urbano Coletivo” ou “Novos Bairros”, localizados na periferia de Altamira. Lá estão sendo construídas casas padronizadas com 63 metros quadrados. Na semana passada, a empresa anunciou ter realizado 2.000 mudanças para esses loteamentos, aproximadamente metade do previsto. Ou seja, em dois meses, a meta da Norte Energia é transferir para seus loteamentos a mesma quantidade de famílias que levou um ano para mudar.
No final do ano passado, a concessionária Norte Energia anunciou a construção de um loteamento extra, para abrigar “pescadores e indígenas” e somar cerca de 500 lotes dos 4.100 previstos originalmente, distribuídos entre as áreas chamadas Jatobá, Casa Nova, Água Azul, São Joaquim e Laranjeiras.
O novo local, chamado “Pedral” foi bem recebido pelos movimentos sociais da região de Altamira. “Foi uma conquista nossa com muita briga, mas agora não podemos deixar acontecer como nos outros reassentamentos. Não queremos aquela casa de concreto que tem nos outros, queremos de tijolo, conforme foi prometido”, afirma o indígena Cláudio Kuruaia Cambuí, presidente da Associação Indígena Nativa Kuruaia de Altamira Inquiri.
A reportagem da agência Amazônia Real constatou que os novos loteamentos já registram problemas de estrutura, como infiltração nas casas (feitas em concreto injetado), ausência de iluminação pública em algumas ruas, falta de equipamentos públicos como posto de saúde, escola e área de lazer, e até mau cheiro do esgoto, que ainda não recebe tratamento. Apesar disso, ir para o reassentamento tem sido a principal opção das famílias mais pobres. No entanto, nem todas podem escolher.
Quem tem direito ao reassentamento
A concessionária Norte Energia realizou o levantamento e o cadastro socioeconômico de cada uma das famílias que serão atingidas pela barragem de Belo Monte. Um total de 7.790 famílias moradoras na área alagada da cidade de Altamira devem ser removidas, entre essas, 654 famílias indígenas, principalmente das etnias Xipaia, Kuruaia e Juruna.
Nem todas as famílias têm direito a uma casa no reassentamento, devido aos “critérios de elegibilidade” elencados pela própria concessionária de Belo Monte para dizer quem tem direito ao quê. De acordo com esses critérios aprovados pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), parcela dos atingidos fica sujeito apenas à indenização, calculada de acordo com o preço de mercado de suas propriedades.
Uma reclamação comum das famílias é que o volumoso caderno de preços, onde são tabelados todos os itens possíveis das propriedades, desconsidera o aumento no custo de vida em Altamira, causado pelo mesmo processo de construção da barragem. Daí a insatisfação com a oferta de indenização. A população de Altamira saltou de 99 mil em 2010 para mais de 150 mil habitantes com a construção de Belo Monte, em 2013.
Tais critérios de classificação dos atingidos criados pela Norte Energia já foram contestados pelo Ministério Público Federal em audiência pública realizada em novembro do ano passado. O órgão observa que eles não correspondem à realidade da região e citou o exemplo das chamadas “casas de apoio”, residências de pessoas que passam muito tempo fora da cidade devido a suas atividades econômicas, mas precisam desses locais urbanos para ter acesso a políticas públicas e serviços em geral. É o caso de indígenas, ribeirinhos, pescadores, agricultores, extrativistas e até lavadeiras de roupa. Para a Norte Energia, essas pessoas têm direito apenas à indenização.
Há também casos de famílias que já negociaram com o consórcio, e inclusive chegaram a ter a casa derrubada, mas ainda não receberam a indenização. Essas reclamações estão entre as mais frequentes no escritório da Norte Energia.
Foi o que aconteceu com a feirante Mônica de Mesquita.
O que eles falam é que depois do reconhecimento em cartório, demora de 30 a 40 dias para cair o dinheiro, só que o meu já faz três meses que negociei. Já comprei outro terreno, dei R$ 10 mil de entrada, coloquei cerca e nada, o dono já está querendo desfazer o negócio. O dinheiro nunca cai, e cada vez que a gente vem no escritório é uma história diferente”, disse a feirante Mônica de Mesquita
O gerente de realocação urbana da Norte Energia, Amauri Daros, reconheceu durante reunião realizada com os atingidos e o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), no dia 23 de janeiro, que é possível haver esses casos em meio aos milhares de processos, mas afirmou que a situação deve ser normalizada logo.
A procuradora federal Thaís Santi, do Ministério Público Federal em Altamira, questionou a normalidade com que a Norte Energia vem tratando a questão e busca articular fazer um contraponto à empresa.
A gente vai fazer o possível para que tudo aconteça da melhor maneira possível. Nossa ideia é criar um grupo permanente de apoio, na forma de ouvidoria, para acompanhar isso, senão a Norte Energia vai apresentar tudo como estando correto”, afirmou a procuradora Thaís Santi à agência Amazônia Real.
O medo dos que ficaram para trás
Em Altamira, a rua São Francisco, no bairro Boa Esperança, é um dos locais onde as mudanças das famílias já estão mais avançadas. Espaços vazios e pilhas de entulho onde antes havia casas de madeira dominam o cenário da rua de terra.
A casa de Osmarino Ribeiro é uma das poucas que restaram. Ele conta que atrasou a negociação porque o cadastro não considerou seu ponto de comércio, uma pequena venda em frente da casa. Ficar na rua cada vez mais deserta, diz ele, o angustia. O bairro já não conta mais com iluminação pública. Conforme os moradores vão sendo retirados, o local vai caindo na escuridão.
Só sobraram dois pontos de luz na rua, um ali, outro acolá. Tenho muito medo de roubo à noite. Na casa da frente, antes de desmontarem, já levaram até a bomba do poço. Está muito perigoso para nós que ficamos para trás”, diz Osmarino Ribeiro.
A reportagem ouviu diversos relatos similares a este, em especial de mulheres, que chegam a abandonar os estudos no período noturno devido ao aumento da criminalidade nessas áreas.
A empresa Diagonal, contratada pela Norte Energia para lidar com os cadastros das famílias, afirma que em muitos casos não consegue encontrar as pessoas para negociar, nem ao vivo, nem por telefone. Uma lista com alguns desses casos mostra erros de endereço (bairros e ruas que não coincidem), ausência de telefones de contato, mas também há alguns pontos comerciais e institucionais de acesso relativamente fácil, como uma escola municipal no bairro Aparecida.
Os atingidos invisíveis
Mesmo morando na área alagada, muitas famílias não foram sequer cadastradas. “O cadastro socioeconômico feito pela Norte Energia é o primeiro passo para a família atingida ter seu direito reconhecido, pois sem ele, a pessoa é invisível perante os olhos da empresa” afirma Edizângela Barros, coordenadora do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e já removida para um dos loteamentos, o Jatobá.
Durante alguns meses, a Norte Energia se recusou a reconhecer a existência de famílias atingidas não cadastradas. O superintendente de assuntos fundiários da Norte Energia, Luiz Zoccal, já chegou a se referir a essas pessoas como “telhas brancas” (oportunistas). É possível ver construções bem recentes em áreas que se sabe que vão alagar, no entanto, há muitos casos de famílias residentes há muitos anos no local que não foram cadastradas.
Ruas inteiras foram excluídas do cadastro, como a Bonfim, e que está no meio de um dos bairros mais atingidos, o Boa Esperança, próximo do igarapé Ambé. Após muita reclamação e denúncia, em especial do Movimento dos Atingidos por Barragens, que coordenou uma campanha pela reabertura do cadastramento no ano passado, a empresa admitiu cadastrar essas famílias.
A Norte Energia, no entanto, ainda não divulgou se esses atingidos terão garantidos os mesmos direitos daqueles cadastrados primeiro. Segundo Amauri Daros, a empresa vai começar a trabalhar com os “novos cadastros” a partir de fevereiro.
Há também muitas regiões na cidade de Altamira dentro da área prevista para o alagamento permanente, a chamada cota 97, e que nunca foram sequer identificadas pela Norte Energia. Uma delas é um trecho do bairro Independente II, do outro lado da cidade. Na quarta-feira da semana passada (29 de janeiro), um grupo de cerca de 80 moradores desse local foi protestar em frente ao escritório da Norte Energia, carregando bandeiras do MAB, para exigir o direito ao cadastro. Há cerca de 200 famílias morando na área, segundo as lideranças.
A Norte Energia não se compromete a cadastrar essas áreas. Afirma que há locais em Altamira, mesmo abaixo da cota de alagamento, dos quais as famílias não serão removidas. Para esses casos, afirma Amauri Daros, será preciso dar alguma “solução de engenharia” para evitar os alagamentos, em parceria com a prefeitura.
A prefeitura de Altamira, porém, busca se eximir dessa responsabilidade. “Belo Monte não é uma obra da prefeitura, e se vocês querem saber, eu pessoalmente fui contra, preferia Altamira como era antes”, afirmou o prefeito Domingos Juvenil (PMDB) em audiência com esses moradores do bairro Independente II na quarta-feira passada, após o protesto.
Precedentes perigosos de Belo Monte
Para o cientista Philip Fearnside, colunista da agência Amazônia Real, a hidrelétrica de Belo Monte, sozinha, é inviável economicamente porque o fluxo de água altamente sazonal no rio Xingu deixaria a principal casa de força, de 11.000 MW, essencialmente inativa por três ou quatro meses do ano.
“Em quatro meses do ano os mínimos de vazão são inferiores ao engolimento de 695 metros cúbicos por segundo de uma única turbina da casa de força principal, mesmo sem deduzir a vazão que teria que passar pela Volta Grande do rio Xingu”, disse o cientista.
Segundo Fearnside, uma análise econômica estima que há apenas 28% de chance de Belo Monte ter lucro. Os dados são baseados em uma estimativa oficial, de junho de 2001, indicando um custo de R$ 9,6 bilhões (US$ 4 bilhões na época).
Desde então, aumentou-se o orçamento oficial para R$ 19 bilhões, e as estimativas das empresas de construção são de R$ 30 bilhões. “Já que ninguém iria investir essas quantias com a intenção de perder dinheiro, isso sugere que o governo e os investidores estão, na verdade, contando com as barragens a montante, inundando vastas áreas de floresta e terras indígenas”, disse Fearnside em artigo publicado aqui.
Atualizado em 04/02/2015 às 16h.
– Esta matéria foi originalmente publicada no Amazônia Real e é republicada através de um acordo para compartilhar conteúdo.