Vila secular construída por Ford no meio da Amazônia aguarda ser tombada há 32 anos
Fordlândia: Do ciclo da borracha ao esquecimento
MEMÓRIA
Em 1927, no auge do ciclo da borracha, o governo brasileiro cedeu uma área de quase um milhão e meio de hectares às indústrias Ford para a construção de uma vila operária focada na extração do látex para a produção dos pneus dos veículos da empresa.
Fordlândia foi criada no coração da floresta, às margens do Rio Tapajós, no Pará, completamente inspirada na arquitetura, no modelo de produção e no modo de vida dos Estados Unidos.
O filho de Henry Ford, Edsel Bryant Ford, chegou a se mudar para a vila, ocupando uma das casas de alto padrão da rua nomeada como "Palm Avenue", que é conhecida como "Vila Americana".
Em Fordlândia, os patrões eram gringos. Os seringueiros: amazônidas e nordestinos. Nela, vigorava a lei seca estadunidense que proibia o álcool.
A jornada de trabalho era organizada por sirenes e a dieta no refeitório era, principalmente, de enlatados importados.
As atividades de Ford na vila duraram apenas 18 anos. Além dos problemas com os trabalhadores, a floresta também se revoltou. O desmatamento para a monocultura de seringueiras levou a uma praga que impedia a produção da seiva.
Os estadunidenses abandonaram Fordlândia e fundaram outra vila próxima nas margens do Tapajós: Belterra. Desde então, o local estimula o imaginário de visitantes curiosos da historiografia, sendo descrita como uma cidade fantasma.
Atualmente, cerca de 2 mil pessoas vivem em Fordlândia. A vila se tornou um distrito do município de Aveiro, sem arrecadação própria e cujo único acesso se dá pelas águas do Tapajós.
Após 100 anos desde sua fundação, todas as casas da rua "vila americana" perecem com o tempo e a umidade amazônica, enquanto são ocupadas por pessoas de baixa renda.
Na casa onde funcionava o clube frequentado pela elite vive hoje o lavrador Eliseu Nogueira. A casa não tem energia elétrica. Suas paredes estão mofadas. Há um buraco enorme no teto e um cano estourado no banheiro com um vazamento barulhento.
Eliseu tem 76 anos e se mudou para Fordlândia com um mês de idade. Seu pai foi contratado em uma das fazendas de gado que sucederam a extração da borracha. Ele vive hoje da sua aposentadoria rural e mora sozinho na casa abandonada.
“No tempo do Ford aqui tinha tudo. Agora não tem nada.”
Eliseu Nogueira
Eliseu conta que quando se mudou para a casa na Palm Avenue, lá era, literalmente, tudo mato. "Eu limpei o mato, mas não tá muito bom ainda porque o trabalho de campo ganha muito pouco e pra consertar essa casa vai muito dinheiro."
O abandono e empobrecimento da vila construída para ser uma potência econômica é questionado na justiça. O IPHAN posterga há 32 anos o tombamento de Fordlândia. Segundo o órgão, a falta de recursos inviabiliza o processo.
Em 2015, o Ministério Público Federal (MPF) ingressou com uma ação civil pública para acelerar o tombamento de Fordlândia. Em dezembro de 2021, a Justiça determinou que o IPHAN concluísse a inscrição no livro de tombo até 31 de maio, mas o prazo não foi cumprido.
Na vila, diversas audiências públicas debateram a importância do tombamento para o turismo local, mas o IPHAN e a Prefeitura de Aveiro seguem ignorando as demandas.
“A economia norte-americana criou uma cidade privada, o empreendimento foi abandonado, o Estado brasileiro pagou onerosamente para ressarcir a empresa e readquirir terras que originalmente eram públicas.”
Procurador do MPF de Itaituba, Gabriel Dalla Favera de Oliveira
Enquanto isso, em abril de 2021, o Governo Federal publicou um decreto destinando 9 mil hectares de terras próximas à Fordlândia para projetos de extração de gipsita, que serve para a fabricação de gesso e fertilizante para o agronegócio.
Pesquisas acadêmicas apontam danos ambientais como desmatamento, queimadas e erosão do solo como consequências da mineração de gipsita.
Na decisão sobre o tombamento de Fordlândia, foi estabelecido que os recursos para a preservação dos imóveis históricos venham de obrigações previstas no licenciamento ambiental das mineradoras interessadas na região.
REPORTAGEM
Julia Dolce
EDIÇÃO
Cristiano Navarro
IMAGENS
Julia Dolce, Benson Ford Research Center, ASCOM MPF