Acompanhar uma operação contra o desmatamento no município que ocupa o 2º lugar na lista do Mato Grosso é se deparar com fumaça, degradação e pouca chance de achar os culpados

O Mato Grosso até agora é o maior desmatador de 2016, de acordo com dados do Sistema de Alerta do Desmatamento (SAD), da ONG Imazon. Dentro do estado, o 2º lugar em alertas é ocupado pelo município de Marcelândia, localidade de 12 mil habitantes ao norte do estado, próximo ao Parque indígena do Xingu. O Eco esteve em Marcelândia em maio acompanhando a rotina de um dia de fiscalização de campo do IBAMA na região, parte do 5o período da Onda Verde, operação que ao longo dos 365 dias do ano percorre a Amazônia com o intuito de conter o desmatamento.

O time do IBAMA escalado para a missão em Marcelândia tinha oito membros, a maioria paulista. Muitos eram biólogos, outros, gestores. Alguns da velha guarda, oriundos de instituições ambientais anteriores à existência do próprio IBAMA. Havia também recém-chegados, que pela primeira vez pisavam em solo amazônico. Traço comum a quase todos é o cigarro – fumam um atrás do outro. “O trabalho é estressante”, justificam o que parece ser um ritual de campo. Boa parte estava há semanas em Marcelândia, e havia quem tivesse chegado meses antes para a missão na Amazônia. Ao dar entrada no hotel que fazia de residência temporária para a turma, me perguntam no balcão se eu estou com o pessoal do IBAMA. Fico sem saber ao certo se dizer que sim é bom ou mau sinal.

“Antes o povo ficava nervoso quando eles chegavam. Hoje já não se preocupam tanto”, diz Denise, funcionária do bar onde o grupo se reúne para assistir ao futebol naquela noite. Tendo ou não medo, a chegada da fiscalização em cidade de desmatador é percebida e comentada. No dia seguinte, abastecendo o tanque das caminhonetes para sair em missão, um carro desconhecido é percebido rondando novamente a equipe. “Esse cara está todo dia atrás da gente”, comenta João Brito, um dos fiscais em ação, ao ver o automóvel junto ao posto. “Eles ficam de olho para ver a direção que vamos seguir e avisam aos outros”.

Em campo

Área recém desmatada ainda queima quando a equipe do IBAMA acha o local. Foto: Marcio Isensee e Sá

Área recém desmatada ainda queima quando a equipe do IBAMA chega ao local. Foto: Marcio Isensee e Sá

A caravana parte. Na mão do coordenador da operação, Thiago Bianconi, um mapa impresso do Google identifica os pontos a serem vistoriados naquele dia. São as coordenadas extraídas de imagens de satélite, origem dos alertas de desmatamento. Sinal de tempos modernos. Em um passado não tão distante, os fiscais em campo contavam com recursos bem menos tecnológicos. “Hoje a geolocalização nos diz onde estão desmatando. Antes era o dono da padaria, o seu Barriga da birosca, o povo do lugar mesmo que denunciava”, relembra Brito, testemunha de um tempo sem GPS, em que fiscal praticamente farejava o desmatamento com a intuição.

Apesar das facilidades tecnológicas, o trabalho em campo é de formiguinha. Primeiro, é bom um pouco de sorte, para chegar aos pontos identificados pelo satélite sem se deparar com um tronco bloqueando o caminho ou armadilha pior, usados para sabotar a operação. “Conhece jacaré?”, pergunta Brito, mostrando a foto de uma objeto em formato de boca dentada, similar a do animal, escondido estrategicamente sob troncos e pronto para estraçalhar o pneu dos carros. Depois, é preciso identificar e atualizar as coordenadas geográficas, pois é comum imagens de satélite antigas. “Muitas vezes chegamos no local e a situação já está bem diferente”, conta Thiago. Cada vistoria inclui um levantamento minucioso da realidade no campo, com fotos e descrição do estágio de degradação de cada área.

Thiago exemplifica o ciclo mais comum. “Tiram as árvores maiores, jogam o primeiro fogo. Depois vem o capim e soltam o gado para pisotear. Aí vem outro fogo”, explica. O processo, lento, acontece sucessivas vezes até que a mata despareça. Nem sempre o satélite capta o desmatamento acontecendo. Espertos, os criminosos começam retirando as árvores maiores e mais valiosas, sem deixar o campo aberto o suficiente para ser detectado do alto. É o caso do primeiro ponto que visitamos. Apesar da imagem que indica o desmatamento ser de março de 2016, o fiscal olha em volta e atesta: “Aqui deve ter levado uns dez anos para chegar na situação que está hoje. Ou não tínhamos imagem, ou ela estava ruim, com nuvem”, diz. Como é início da época da seca, Thiago conclui que o provavelmente quem estava degradando aquela área está só esperando o tempo firmar para atear mais fogo. “Esta já é quase a última etapa”.

Sozinha, fiscalização não dá conta

As áreas vistoriadas em um dia de operação apresentavam estágios diferentes de degradação. Foto: Marcio Isensee e Sá

As áreas vistoriadas em um dia de operação apresentavam estágios diferentes de degradação. Foto: Marcio Isensee e Sá

“Nós temos dificuldade em encontrar servidores dispostos a pegar a chefia em áreas de conflito”, conta Lívia Martins, Superintendente do IBAMA no Mato Grosso. “É o tipo de tarefa em que o cara se expõe, briga com a comunidade inteira, briga com a mulher, pois nunca tem horário para chegar em casa. Temos colegas com nível de estresse bem alto, chegamos a remover gente de áreas onde sofriam ameaças”, diz. Em operação, o trabalho dos fiscais vai de domingo a domingo, sem pausa para almoço. Para apreender maquinário, o jeito é sair de noite e passar a madrugada de tocaia. Lívia orgulha-se não só do trabalho das equipes, mas da eficiência da instituição em termos de inteligência ambiental. “O IBAMA melhorou muito em efetividade para julgar processos e direcionar a fiscalização. Nosso esforço em conter o desmatamento só aumentou”, garante. No Mato Grosso, no entanto, fiscalização sozinha não dá conta de conter o problema. “Chegamos no limite possível para operar em campo. São necessárias outras medidas do governo do estado para compor conosco”, diz.

Entre elas, Lívia ressalta a necessidade de políticas que diferenciem efetivamente o proprietário regularizado daquele que produz soja e gado sem estar em dia com a documentação exigida, ou mesmo envolvido em crime ambiental, e que ainda assim consegue vender a mercadoria. “O Mato Grosso é hoje o maior produtor de soja do Brasil porque parte desta soja é oriunda de área embargada”, garante Lívia. “Se você vai a campo, detecta isto claramente”. Apesar de não conseguir financiamento rural com sua propriedade em lista de embargo do IBAMA, muitos fazendeiros descumprem a lei e seguem produzindo. “E esta soja não se perde no campo, não. Ela inclusive é exportada. Em algum momento há falta de controle”.

Na pecuária, existe o Termo de Ajuste de Conduta (TAC) da Carne, firmado em 2010 entre frigoríficos operando na Amazônia e o Ministério Público Federal (MPF). Este acordo exige que os frigoríficos monitorem a origem do animal que estão adquirindo sob aspectos ambientais e sociais. Isso abrange rastrear seus fornecedores e excluir de seu cadastro de compras aqueles que figurem em listas de embargo do IBAMA, de trabalho escravo do Ministério do Trabalho e que estejam de alguma forma ligados a desmatamento ilegal, invasão de Terras Indígenas e Unidades de Conservação. No Pará, onde o TAC da Carne começou, 64% dos frigoríficos já aderiram ao pacto. No Mato Grosso, a adesão ainda não passa de 26%, com o agravante de o estado ser o detentor do maior rebanho bovino do país.

Perdido para sempre

O fiscal José Brito chega a passar meses na Amazônia, revezando de equipes, durante a operação Onda Verde. Foto: Marcio Isensee e Sá O fiscal José Brito chega a passar meses na Amazônia, revezando de equipes, durante a operação Onda Verde. Foto: Marcio Isensee e Sá

Em Marcelândia, o dia de fiscalização que acompanhamos percorreu sete pontos identificados por satélite. Em quase todos, a realidade confirmou se tratarem de áreas degradadas com dinâmicas similares: corte seletivo de árvores e fogo. Em alguns casos, a vegetação demonstrava potencial de um dia voltar a se regenerar, caso a agressão cesse. Em outros, nem tanto. A multa pela ilegalidade é contabilizada em hectares – são R$ 5 mil reais para cada hectare. Mas a média de pagamento é baixíssima: entre 1 e 3%.

Distante de onde se possa ver da estrada, clareiras são estrategicamente abertas. Mas o fiscal determinado encontra até o que não está procurando. Foi assim, de surpresa, que topamos com a cena mais desoladora, em um local que não aparecia na rota do dia: uma área aberta, cercada por densa floresta ao fundo e pasto ao redor, a visão triste de uma recente devastação. A fumaça ainda saindo do resto de troncos queimados, o solo cinza, revirado e coberto por marcas do pneu de tratores, uma cabana improvisada, abandonada às pressas.

Thiago dá o veredito: “Solo exposto, sinal de máquinas, indícios de que houve movimentação recente por conta das queimadas ainda com fumaça. O procedimento agora é identificar o proprietário, fazer a autuação e o embargo da área”, sentencia. “Este é o estágio final. Daqui já iriam preparar a área para o gado ou plantação de alguma cultura agrícola. Se não tiver nenhum projeto de recuperação desta área, dificilmente ela vai regenerar”, conta com certo desânimo. A cena parece baixar por instantes o bom humor da equipe. O grupo forma uma pequena roda para confabular e seguir para o próximo local suspeito de desmatamento. Antes, fumam um cigarro.

A equipe de oito fiscais viaja acompanhada de dois soldados da Força Nacional, para proteção. Foto: Marcio Isensee e Sá

A equipe de oito fiscais viaja acompanhada de três soldados da Força Nacional, para proteção. Foto: Marcio Isensee e Sá

– Esta matéria foi originalmente publicada no OEco e é republicada através de um acordo para compartilhar conteúdo.

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