Começou a funcionar, em fase pré-operacional, a primeira turbina da hidrelétrica de Belo Monte. Aconteceu pouco mais de cinco anos após o início das obras da usina, projetada para ser a quarta maior do mundo.

No mesmo dia, o bispo – de origem austríaca – Erwin Kräutler deixou o comando da diocese do Xingu, depois de 50 anos no cargo, por ter atingido a idade limite para o seu exercício, aos 72 anos. Ele foi o mais ativo e destacado opositor do empreendimento.

A coincidência podia ser interpretada como um sinal de que dom Erwin acabou sendo derrotado na sua campanha para impedir a execução do projeto. Exatamente no dia do seu desligamento do bispado, em Altamira, no Pará, a enorme hidrelétrica, a maior obra de infraestrutura (e do PAC, o Programa de Aceleração do Crescimento, o principal do governo do PT), se tornava – literalmente – fato concreto?

A situação é mais complexa do que essa rústica interpretação. A fase executiva ds estudos para o barramento do rio Xingu se iniciou mal entrou em funcionamento, em 1984, a ainda quarta maior hidrelétrica do mundo, a de Tucuruí, no rio Tocantins, a leste do Xingu, em eixo paralelo. Foi uma das últimas grandes obras inauguradas pelo último dos generais, João Figueiredo, que ocuparam a presidência da república durante o regime militar (1964/1985).

Belo Monte devia ter seguido o mesmo caminho. Quatro barragens rio acima iriam reter água para que, no verão, quando a vazão do rio pode diminuir até 30 vezes em relação ao fluxo de água do pique do inverno, a usina pudesse continuar funcionando, graças à água estocada no período das cheias.

Só o reservatório de uma delas, a de Babaquara, com seis mil quilômetros quadrados, seria duas vezes maior do que o de Tucuruí e superaria o de Sobradinho, o maior lago artificial do Brasil (para se ter uma ideia de grandeza, o famoso lago Paranoá, em Brasília, tem menos de 50 km2).

A grita foi enorme, inclusive no exterior, em particular no Banco Mundial, que se negou a financiar novas hidrelétricas na Amazônia e a endossá-las junto à comunidade financeira internacional. Não por acaso, o BNDES, que garante 85% do custo da usina, com crédito subsidiado, se tornou maior do que o Bird, algo inimaginável pouco tempo atrás, graças à benevolente administração do PT no banco estatal de desenvolvimento, personificada no economista Luciano Coutinho, o intocável.

A Eletronorte, que conduzia Belo Monte depois de se manter à frente de Tucuruí, precisou recuar. Para mudar a fisionomia da nova hidrelétrica, cancelou as demais barragens, garantiu que apenas uma seria mantida no Xingu, justamente a de Belo Monte (ex-Kararaô), e apresentou um novo desenho do projeto, inédito e audacioso.

A empresa recorreu ao máximo de criatividade e audácia em matéria de engenharia para manter o propósito de aproveitar a excepcional condição geográfica de um trecho, conhecida por a Volta Grande, em que o rio faz uma grande curva e, em 100 quilômetros, desce 90 metros. É uma declividade natural superior – em 20 metros – aos 70 metros que foram alteados no Tocantins para dar-lhe volume e força constantes para acionar as imensas 23 turbinas da sua casa de força, cada uma delas precisando de 500 mil litros de água por segundo.

O problema é que, para atender a pressão de ambientalistas, antropólogos, ONGs e a comunidade mundial, o reservatório que sobreviveu seria pequeno demais (pouco mais de 10% do tamanho do lago de Tucuruí) para garantir que no verão houvesse água suficiente para mover as 18 turbinas (maiores do que as de Tucuruí) lá embaixo.

Também não podia ser usada a vazão natural do rio, por sua calha, porque a sucessão de curvas e a presença de ilhas no seu leito tiram a velocidade necessária das águas. Com ousada concepção, a solução foi desviar a água retida no vertedouro principal, distante 100 quilômetros da casa de força principal, por canais naturais e artificiais que agora levam a água pelo declive de 90 metros a uma velocidade compatível com o tamanho das unidades de geração.

Não há nada igual nos anais das hidrelétricas no Brasil e no mundo. Os engenheiros tiveram que recorrer a uma concepção de vanguarda para que não houvesse grande inundação a montante (acima) da barragem (submergindo área muito maior de Altamira), o rio a jusante (abaixo) não tivesse redução artificial de fluxo (a Norte Energia se comprometeu a manter vazão de 700 metros cúbicos de água por segundo no pique da estiagem, volume maior do que a descarga natural do Xingu nesse período), e fazer o desvio, saindo do leito do rio, para a adução de água em volume e velocidade de motorização no nível exigido.

O resultado de tudo isso é que o uso de concreto se multiplicou, a ponto de superar o volume utilizado no canal do Panamá, e o orçamento do empreendimento está caminhando para dobrar de valor: dos 19 bilhões de reais de início para os R$ 32 bilhões de hoje. Sabe-se que parte desse acréscimo foi provocada por superfaturamento para o pagamento de propinas a políticos, executivos e intermediários, conforme a apuração da Operação Lava-Jato.

A Construtora Andrade Gutierrez confessou que pagou propina para conseguir os contratos para a execução da obra. Para pagar as propinas, a Andrade, que é a segunda maior empreiteira do país, superfaturou essas obras. Uma vez entregue, o dinheiro se transformou em doações legais às campanhas de Dilma Rousseff (PT) e de seus aliados em 2010 e 2014.

A informação teve por origem o próprio ex-presidente da empreiteira, Otávio Marques de Azevedo, e foi sistematizada por ele em uma planilha apresentada à Procuradoria-Geral da República.

Segundo esses dados, em 2014, a Andrade Gutierrez doou 20 milhões de reais para o comitê da campanha de Dilma. Na tabela, que inclui também doações em 2010 e 2012, cerca de R$ 10 milhões doados às campanhas de Dilma estão vinculados à participação da empreiteira em contratos de obras públicas.

Corrupção à parte, o investimento na usina realmente foi onerado pela busca de um perfil de harmonia com o meio ambiente e a população nativa que fosse acatado pelos críticos. Nenhum projeto concebido para aproveitar o desnível turbinável do Xingu seria melhor do que o que foi apresentado, sob esse prisma.

Dom Erwin Kräutler, ex-bispo do Xingu. (Foto: Elaíze Farias)

Dom Erwin Kräutler, ex-bispo do Xingu. (Foto: Elaíze Farias)

Ainda assim, críticos, como o ex-bispo, continuaram se opondo à obra, por uma questão de princípio, não mais pela demonstração de que ela fora alterada (e se tornara um monstro da engenharia, ao mesmo tempo repelente e admirável) exatamente em função das restrições apresentadas. D. Erwin e a corrente que o segue ou divulga não querem o barramento – e ponto final. Por esse prisma, foram fragorosamente derrotados.

Dois dias depois que entrou em funcionamento a primeira turbina de grande potência, foi acionada a segunda máquina, de baixa potência. A primeira fica na casa de força principal, que abriga outras 17 turbinas, com geração de 650 megawatts cada, que começaram a irrigar o Sistema Interligado Nacional no dia 3.

Com apenas essa máquina, que representa 5% da potência final de Belo Monte, de 11,3 mil megawatts, a usina já está produzindo o dobro da energia necessária para atender todo o consumo de Belém, com seus 1,5 milhão de habitantes. A segunda máquina, ativada no dia 5, faz parte da casa de força secundária. Instalada no vertedouro principal (outro detalhe inovador do projeto), ela terá seis turbinas de menor potência, de pouco menos de 40 MW. Por serem do tipo bulbo, funcionam com água corrente, sem acumulação. Geram com queda de água de 12 metros, quatro vezes menos do que a altura exigida por uma turbina convencional, de maior potência.

A casa de força secundária concluirá sua motorização em janeiro do próximo ano. A última turbina da casa de força principal deverá começar a funcionar em janeiro de 2019.

Nesse momento, além de se consolidar como a quarta maior hidrelétrica do mundo, será a maior hidrelétrica integralmente nacional, já que apenas metade de Itaipu, com seus 14 mil MW, pertence ao Brasil. Os construtores dizem que os 11 mil (a outra metade é do Paraguai) MW de Belo Monte poderão suprir o consumo de 60 milhões de brasileiros. Ao custo, atual, quase 32 bilhões de reais.

Mas ainda será necessário aplicar outros bilhões de reais às duas linhas de transmissão, com mais de dois mil quilômetros de extensão, que levarão a energia até São Paulo, daí se espalhando pelo país. Por enquanto, há limitação para o acréscimo de energia nas linhas já em funcionamento. O problema é que o sistema de transmissão, da empresa chinesa State Gride com estatais de energia, está com seu cronograma atrasado e o orçamento inchado – artificialmente, segundo o Tribunal de Contas da União.

Tudo grande o suficiente para atrapalhar o controle mais rigoroso dos orçamentos, das suas execuções e do uso dessas obras – tipicamente coloniais.

 

– Esta matéria foi originalmente publicada no Amazônia Real e é republicada através de um acordo para compartilhar conteúdo.

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