Segundo a Funai, um grupo de índios da etnia Matís ameaçou colaboradores e agrediu um médico da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde.

A Fundação Nacional do Índio (Funai), em Brasília, divulgou em seu site e nas redes sociais na quarta-feira (8) uma nota confirmando o acirramento do conflito interétnico entre índios Matís e Korubo na Terra Indígena do Vale do Javari, em Atalaia do Norte, no extremo oeste do Amazonas. Segundo a Funai, um grupo de índios da etnia Matís ameaçou colaboradores e agrediu um médico, funcionário do Distrito Sanitário Indígena (Dsei) Vale do Javari, da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde.

A Amazônia Real apurou que o primeiro nome do médico é Lucas e que ele foi ferido no rosto com uma flecha. Procurado pela reportagem, a liderança Baritsita Matís, que trabalha no Dsei, confirmou o ferimento, mas disse que “o grupo de lideranças indígenas não tinha a intenção de ferir o médico”. Segundo ele, há uma animosidade da etnia contra o conhecido “Dr. Lucas”, pois o mesmo se nega a atender os Matís nas aldeias.

A Funai diz na nota que um outro grupo de Matís entrou no acampamento onde estão os indígenas Korubo, recém-contatados em setembro de 2015, desrespeitando as regras epidemiológicas. E que também “vai tomar as providências legais para apurar os acontecimentos, punir os responsáveis e coibir atitudes como essa”. O Ministério Público Federal e a Polícia Federal estão monitorando a situação.

Em 2014, segundo a fundação, duas lideranças Matís foram mortas em ataque dos Korubo. Os Matís revidaram e mataram ao menos oito Korubo, iniciando o conflito na Terra Indígena Vale do Javari, que fica na fronteira do Amazonas com o Peru.

Conforme a nota da Funai, a agressão ao médico Lucas aconteceu no dia 6 (domingo) na Base de Proteção Etnoambiental, localizada na confluência dos rios Ituí e Itaquaí, distante a duas horas de viagem de lancha da cidade de Atalaia do Norte.

Em entrevista à Amazônia Real, o coordenador do Dsei Vale do Javari, Jean Heródoto disse que retirou o médico da terra indígena por medida de segurança, mas não informou o grau do ferimento e nem disse o sobrenome de Lucas.

Em outra nota, divulgada nesta quarta-feira (09), a Funai diz que um dia antes do incidente com o médico, o presidente João Pedro Gonçalves esteve na base, acompanhado do coordenador de Índios Isolados e de Recém Contatados, Carlos Travassos, onde se reuniu com os índios Korubo. Na sexta-feira (4), com escolta da Polícia Federal, Gonçalves se reuniu com lideranças Matís, Marubo, Mayoruna e Kanamari, índios que participaram de um protesto por 34 dias pedindo a exoneração do coordenador regional Bruno Pereira.

Na nota divulgada no dia 08, a Funai diz que “manifesta sua total indignação e repúdio à atitude de um grupo do povo indígena Matis, no último domingo (6), na Terra Indígena Vale do Javari”.

“Esse grupo voltava para suas aldeias após reunião com o presidente da Funai, em Atalaia do Norte (AM), e, ao chegar à Base de Proteção Etnoambiental da Funai, na confluência dos rios Ituí e Itaquaí, desceu da embarcação em atitude de intimidação, ameaçou colaboradores indígenas, que atuam nessa Base, e agrediu o médico da Sesai, que presta assistência aos Korubo, sendo esse um dos motivos da agressão”, diz trecho da nota.

Em outro trecho da nota, a Funai diz que “outro grupo de Matís seguiu em direção ao acampamento onde estão os indígenas Korubo, recém-contatados em setembro de 2015, desrespeitando as regras epidemiológicas e as instruções do coordenador da Frente de Proteção Etnoambiental Vale do Javari para que não seguissem até o local”. “Tal atitude demonstra desrespeito à instituição e uma ameaça ao grupo Korubo. Além de expô-los a eventuais doenças, contrariaram a autonomia do povo Korubo”, disse a fundação.

A Funai encerrou a nota afirmando que compreende que deve agir para garantir a integridade física, psicológica e cultural do povo Korubo, que “têm expressado sua vontade, dizendo não querer uma aproximação com os Matis”. “Sua autonomia, diante dessa situação, deve ser reconhecida, respeitada e garantida pelo Estado brasileiro, e pelo movimento indígena”, disse a fundação, anunciando que tomará providências. “Esta Fundação está tomando as providências legais para apurar os acontecimentos, punir os responsáveis e coibir atitudes como essa”, finalizou.

Matís contam sua versão

Indígenas Matís se preparando para ocupar a Funai. (Foto: Aima)

Indígenas Matís se preparando para ocupar a Funai. (Foto: Aima)

A reportagem da Amazônia Real procurou a principal liderança Matís, Marcelo Marke Turu Matís, mas ele não foi encontrado para falar sobre o incidente com o médico. Outra liderança contatada por telefone, Daritsita Matís contou a versão dos índios. Ele disse que quando as lideranças chegaram na Base de Proteção Etnoambiental da Funai no domingo (6), houve uma discussão com o médico Lucas.

“Eles chegaram perto do Dr. Lucas e disseram: ‘Dr. Lucas, o seguinte, o senhor não foi contratado pela Sesai só para atender os índios Korubo. O senhor tem que atender a população do Vale do Javari’. Só que nessa hora, eles estavam com flechas nas mãos. Uma flecha tocou no rosto dele [Dr. Lucas], machucou no rosto dele. Não tem como explicar como isso aconteceu”, afirmou Daritsita Matís, dizendo que não estava na base no momento do incidente.

Daritsita Matís disse que o grupo de índios alvo do repúdio da Funai não queria ferir o médico. “O Dr. Lucas disse que os Matís agrediram ele, ameaçou e brigou. Os Matís querem pedir desculpas ao médico. Essa nota da Funai é uma informação muito triste. Mas nós vamos responder dizendo tudo que aconteceu ao Ministério Público Federal”, afirmou.

À reportagem, o procurador Ramon Amaral, do Ministério Público Federal de Tabatinga (AM), disse que na segunda-feira (7) participou de reunião na sede Polícia Federal onde foi abordado o assunto de violência e violações aos direitos humanos na Terra Indígena Vale do Javari. Segundo ele, o MPF está atento à situação e os envolvidos no incidente serão intimados para esclarecerem os fatos. “Se houver indícios de crime, será instaurado um procedimento investigatório criminal”, afirmou o procurador Amaral.

Repercussão no Movimento Indígena

O presidente da Funai, João Pedro Gonçalves em Atalaia do Norte. (Foto: Mário Vilela/Funai)

O presidente da Funai, João Pedro Gonçalves em Atalaia do Norte. (Foto: Mário Vilela/Funai)

A nota da Funai repudiando a agressão do grupo de índios Matís contra o médico repercutiu negativamente no Movimento Indígena do Amazonas. Segundo as lideranças, esta é a primeira vez que a fundação publica um repúdio contra indígenas.

Clóvis Marubo, membro da União dos Povos do Vale do Javari (Univaja), disse que a manifestação da Funai pode provocar um outro conflito na terra indígena.

“Ao invés de proteger todos os povos indígenas, a Funai fica de um lado só dizendo que está protegendo os Korubo. Ela está causando divisão. Os Korubo precisam de proteção, mas a Funai precisa proteger todo o território do Vale do Javari. Há índios em todas as partes”, afirmou.

Para Clóvis Marubo, a nota da Funai “está mal-intencionada ao dizer que defende o povo Korubo”. “Os índios Korubo viraram mercado para a Funai ganhar muito dinheiro. Isso é uma forma de angariar mais fundo nacional e internacional e recursos para dizer que estão trabalhando nas áreas. É uma forma desses funcionários ganharem dinheiro. Dizem que estão defendendo, que estão chorando, que estão amando. Mas os Korubo não estão protegidos. Está cheio de madeireiros e de pescadores ilegais na área onde eles vivem. Ninguém sabe se estão matando os Korubo. A Funai não deixa a gente verificar isso in loco. É uma coisa que não tem transparência”, afirmou Clóvis Marubo.

Clóvis Marubo destacou também que o Vale do Javari tem indígenas isolados de outros povos e em toda a terra indígena e que também precisam de proteção. “Tem em toda parte. Os próprios Korubo não têm segurança. O que a Funai quer fazer com esta nota é causar mais conflito e aparecer na mídia”, afirmou.

Sobre o episódio citado na nota da Funai, Clóvis Marubo afirmou que o médico que atende os indígenas está se limitando a atender os Korubo e isto tem causado indignação nos Matís.

“Em vez de fazer um atendimento de uma forma geral, ele fica isolado na Base, fazendo papel de antropólogo também. Essa é a revolta dos Matís. Ele se mostra ser mais da Funai do que da Sesai no trabalho”, afirmou.

Segundo Clóvis Marubo, a revolta do grupo de Matís que chegou na Base da Frente Etnoambiental no domingo (6) foi por causa da presença de Carlos Travassos, Coordenador Geral de Índios Isolados e Recém-Contatados da Funai, no local. Travassos acompanhou João Pedro Gonçalves na viagem a Atalaia do Norte, mas não esteve presente na reunião do dia 4 (sexta-feira) com os indígenas, na Câmara Municipal.

“A revolta dos Matís não tem a ver com os Korubo. Mas é porque o Carlos Travassos foi para a Frente de Proteção. Os Matís não querem mais que o Travassos vá à Terra Indígena. Eles querem que o Carlos Travassos fique fora da Funai. Quando os Matís souberam que ele foi para a Frente de Proteção, isso revoltou eles”, disse Clóvis Marubo.

Quanto ao outro grupo Matís que teria se dirigido até os Korubo contatados em 2015, Clóvis disse desconhecer, mas destacou que este local onde eles vivem fica distante do trajeto dos Matís para suas aldeias.

A coordenadora-executiva da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Nara Baré, disse ter “estranhado” a nota da Fundação Nacional do Índio.

“Queríamos entender o que aconteceu. Pelo que temos conhecimento, é a primeira vez que a Funai lança uma nota de repúdio pública contra um povo indígena do país, no caso contra os Matís. Isso é estranho vindo de um órgão que deve proteger os indígenas. Não ficou claro se esta nota é para tentar defender o povo Korubo. Não está uma posição clara sobre o que aconteceu. Queremos saber, como Coiab, sobre o porquê da Funai ter este posicionamento. Estamos tentando falar com a presidência da Funai. Mas ainda não conseguimos falar com o João Pedro”, afirmou Nara Baré.

Ela disse que a nota apresenta apenas informações sobre o que aconteceu com o médico e com os funcionários da Funai, sem apresentar a versão dos Matís.

“Não sabemos se a Funai entrou em contato com alguma liderança Matís para saber o que de fato aconteceu. Isso nos pegou de surpresa. Por isso achamos estranho a Funai divulgar uma nota contra um povo indígena. A gente está tentando entrar em contato com os indígenas, saber o que aconteceu”, afirmou Nara.

O presidente da Fundação Estadual de Índio (FEI), do governo do Amazonas, Bonifácio Baniwa, também se mostrou surpreso com a nota de repúdio da Funai. Ele observou que o órgão foi criado para defender e proteger todos os povos indígenas.

“No meu ponto de vista, está errado ficar divulgando que está em favor de um ou de outro. A Funai foi criada para proteger todos os índios do Brasil. O certo era ir lá e averiguar para ver o que realmente aconteceu. Ouvir os dois lados. Tem que resolver com os índios e não ficar divulgando nota pública. O que interessa à opinião pública a Funai estar defendendo servidor ou um grupo indígena e criticando outro? Deveria ir lá e conversar com todos”, disse Bonifácio Baniwa.

A Amazônia Real tentou várias vezes falar com o médico que trabalha na Base da Frente Etnoambiental identificado apenas como Lucas, mas não conseguiu. Procurado, o coordenador do Dsei Vale do Javari, Jean Heródoto, disse que o médico saiu da base e que estava se dirigindo ainda nesta quarta-feira para Atalaia do Norte.

Jean Heródoto afirmou que desconhecia os detalhes do incidente e que somente quando conversasse com o médico iria se informar sobre o que de fato aconteceu.

Segundo Heródoto, o médico Lucas trabalha há dois anos na Terra Indígena Vale do Javari e atende, por escala, os diferentes polos de saúde existentes na reserva. Mas, segundo Heródoto, o médico permanecia nos últimos meses com mais frequência na Base de Frente Etnoambiental para atender os Korubo contatados ano passado, a pedido da Funai.

A saída do coordenador do Vale do Javari

Bruno Pereira (de blusa bege) e Carlos Travassos (de branco) em audiência com lideranças do Vale do Javari (Foto: Mário Vilela/Funai)

Bruno Pereira (de blusa bege) e Carlos Travassos (de branco) em audiência com lideranças do Vale do Javari (Foto: Mário Vilela/Funai)

Na última sexta-feira (05), o presidente da Funai, João Pedro Gonçalves, reuniu-se com mais de 200 lideranças indígenas do Vale do Javari, em Atalaia do Norte (leia aqui).

Em nota divulgada nesta quarta-feira (09), a Funai confirmou que após reunião entre o presidente da Funai, João Pedro Gonçalves, e as lideranças indígenas do Vale do Javari, o titular da Coordenação Regional Vale do Javari, Bruno Pereira, será substituído.

Na nota, a Funai diz que a reunião com representantes dos povos Marubo, Matis, Mayoruna e Kanamari foi “marcado por um clima tenso e pelo impedimento, por parte dos indígenas, da presença de servidores da Funai, alguns dos quais foram ameaçados publicamente”.

“Após uma longa e dura discussão, João Pedro respondeu que irá promover a mudança na coordenação até o fim do mês de março e também propôs a realização de uma agenda de trabalho, a ser realizada na região e em Brasília, entre diversos setores da Funai e os representantes indígenas, a fim de discutir a gestão e os trabalhos da Coordenação Regional”, diz a nota.

Depois da reunião, João Pedro Gonçalves seguiu para a Base de Proteção Etnoambiental, localizada na confluência dos rios Ituí e Itaquaí, para conversar com um grupo de Korubo.

Em sua nota, a Funai resgata a história de recente contato com os Korubo e cita o relato destes sobre os ataques sofridos pelos Matís, inclusive com mortes. A nota da Funai não cita as mortes sofridas pelos Matís por parte dos Korubo.

Segundo a Funai, os Korubo não querem ficar na área próxima à aldeia dos Matis, local onde foram acomodados após os contatados em setembro.

João Pedro entre uma liderança Matís e um policial federal. (Foto: Aima/2016)

(Foto: Aima/2016)

“Não temos que brigar entre nós. A Funai e os povos indígenas precisam estar fortalecidos, têm que trabalhar em parceria. Precisamos reestabelecer uma relação de confiança entre nós para enfrentarmos a PEC 215, a CPI da Funai e outros mecanismos que são contra os direitos dos povos indígenas. Por mais que tenhamos algumas divergências, precisamos ter respeito entre nós”, disse João Pedro, na nota.

– Esta matéria foi originalmente publicada no Amazônia Real e é republicada através de um acordo para compartilhar conteúdo.

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