Em uma ação desesperada as aves, muitas ameaçadas de extinção, buscaram refúgio na cidade de Caracaraí.

Os incêndios florestais e as queimadas que atingiram este ano o Parque Nacional do Viruá, que fica no município de Caracaraí, no sul de Roraima, provocaram um fato inédito na região. Uma quantidade infinita de pássaros silvestres da Amazônia, muitos ameaçados de extinção, fugiu da fumaça e do fogo da unidade de conservação e foi se refugiar em quintais de residências, telhados de comércios e sítios da zona urbana do município.

Caracaraí fica a 134 quilômetros de Boa Vista, capital de Roraima. O Parque Nacional do Viruá está distante a cerca de 32 km da sede do município de aproximadamente 20 mil habitantes. Morador da cidade e observador de pássaros Paulo Gois disse à Amazônia Real que as aves começaram a aparecer no mês de janeiro deste ano, mas foi em março que eles tomaram conta do lugar. Nenhuma apresentava ferimentos.

“Todo o dia eu recebia uma ligação de algum morador dizendo que tinha pássaro novo no quintal. Eles estavam estressados e cansados. Em muitos locais, coloquei vasilhas para eles beberem água”, disse Gois, que é turismólogo e servidor público do município de Caracaraí.

Paulo Góis e o fotógrafo Jorge Macêdo, também observador de pássaros, registraram em Caracaraí espécies como cabeça-branca, bacurau-de-cauda-barrada, alma-de-gato, rabo-de-arame, pretinho, saracura-três-potes e socó-boi. Essas aves eram encontradas antes apenas nas bordas de florestas e próximas a grandes rios do Parque do Viruá.

Fêmea de cabeça branca, Dixiphia pipra (Foto: Jorge Macêdo/AmReal)

Fêmea de cabeça branca, Dixiphia pipra (Foto: Jorge Macêdo/AmReal)

“Todo mundo na cidade ficou muito admirado com a beleza dos pássaros. Foi uma fuga desesperada. As queimadas tomaram conta das florestas e as aves procuram abrigo em qualquer lugar. Alguns pássaros foram capturados por moradores, depois identificamos a espécie e soltamos em locais seguros, longe dos focos de incêndios. Foi o caso bacurau-de-cauda-barrada e do cabeça branca”, disse Paulo Gois.

 

A devastação no santuário de aves

A queimada no Parque Nacional do Viruá em março de 2016 (Foto: Jorge Macêdo/AmReal)

A queimada no Parque Nacional do Viruá em março de 2016 (Foto: Jorge Macêdo/AmReal)

Com 227 mil hectares, o Parque Nacional do Viruá é uma Unidade de Conservação administrada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). É conhecido como um santuário de aves e animais que demarcam seu território na planície inundável cercada pela Floresta Amazônica, campinas e campinaranas.

Com as queimadas, o ICMBio estima que ao menos 60 mil hectares foram devastados por incêndios, que iniciaram do lado de fora do parque, em comunidades rurais, mas se propagaram para dentro da unidade.

De janeiro a março de 2016, o Monitoramento de Incêndios Florestais e Queimadas do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) registrou 3.006 focos em Roraima. Nesse período, incêndios de grande magnitude aconteceram apenas anos de 2003, com 4.216 focos, e em 2007, com 2.445.

Só no mês de março de 2016 o número de queimadas e incêndios florestais no Estado foi 1.081 focos, o maior dos últimos nove anos, segundo o Inpe, ficando atrás apenas dos registrados no ano de 2007 com 1.535 focos.

A previsão dos especialistas é de que as chuvas do mês de abril, que já começaram, cessem as queimadas. Nos últimos 20 dias foram registrados apenas 115 focos de fogo em Roraima, segundo o Inpe.

As intensas queimadas e incêndios florestas em Roraima são resultados de uma estiagem incomum, que segundo os cientistas foi causada pelo fenômeno El Niño mais intenso, chamado por eles de “Godzilla”, como publicou a agência Amazônia Real aqui.

 

Uma ação de desespero

Rabo-de-arame,  Pipra filicauda (Foto: Jorge Macêdo/AmReal)

Rabo-de-arame, Pipra filicauda (Foto: Jorge Macêdo/AmReal)

Segundo o biólogo, ecólogo e ornitólogo, Thiago Orsi, do ICMBio, o Parque Nacional do Viruá é o mais visitado por ornitólogos, que são os pesquisadores especialistas em aves. Ele diz também que esta Unidade de Conservação é a que tem maior número de espécies observadas em um só dia, no Brasil.

“São 530 espécies de aves encontradas. Em termos relativos, significa um terço das espécies de aves existentes no Brasil”, disse o pesquisador.

Para Thiago Orsi, a fuga dos pássaros das queimadas no Parque do Viruá “é uma atitude de desespero”.

“Parece que os pássaros perderam o rumo e não tem mais o ambiente, comida, lugar para fazer ninho, então encontram na cidade alguma alternativa para tentar sobreviver, seja se escondendo em baixo de um telhado ou buscando restos de comida no chão dos restaurantes. É um ato de desespero porque essas aves são adaptadas ao ambiente florestal”, afirmou Orsi.

O pesquisador do ICMBio disse que ainda não tem muitas informações sobre os impactos que o fogo pode causar a essas espécies e acredita que por voarem, as aves conseguem se deslocar e chegar a algum lugar que não esteja pegando fogo, porém algumas conseguem voltar para o habitat natural.

“Quando esse fogo cessa e o ambiente começa a se recuperar, essas aves podem retornar para o habitat natural ou não. A expectativa é que haja uma redução da população de todas as espécies, porém nada concreto, pois ainda não temos informação, porque não tem pesquisa sobre isso, mas sem dúvida, o fogo tem impactos profundos nos habitats das populações de aves”, afirmou Tiago Orsi.

 

A origem dos incêndios e queimadas

Brigadistas combatendo incêndio na zona rural de Caracaraí em março de 2016  (Foto: Paulo Gois/AmReal)

Brigadistas combatendo incêndio na zona rural de Caracaraí em março de 2016 (Foto: Paulo Gois/AmReal)

O coordenador de emergências ambientais do ICMBio, Christian Berlinck, disse à reportagem que os incêndios que atingiram o Parque Nacional do Viruá começaram fora da unidade. “Foi a comunidade usando fogo do lado de fora, indiscriminadamente e sem autorização, isso acabou atingindo o Parque Nacional”, afirmou.

Berlinck disse que o fogo está controlado no Parque do Viruá. “Vamos nos preocupar com o tamanho da área atingida, impactos, e como será a recuperação de 60 mil hectares que foram queimados”, estimou o coordenador.

Segundo Christian Berlinck, não é somente o fogo que tem provocado essa movimentação dos animais fora do Parque Nacional do Viruá. “A questão da falta de água também, pois foi possível observar várias espécies de animais dentro do Parque Nacional do Viruá se aproximando da sede em locais onde tínhamos água armazenada, como morcegos, aves e muitos insetos”, disse.

Berlink diz que o fenômeno El Niño agravou a situação dos incêndios florestais em Roraima e as secas (vazante) recorrentes do rio Branco.

“O solo estava mais seco, a vegetação mais seca e propícia a queimar, e com o El Niño secou ainda mais. Foi possível observar pelos rios que ficaram sem água e temperaturas mais elevadas do que o normal, além dos ventos muito fortes. Temos também, o problema de regularização fundiária e de ocupação de novas áreas onde os agricultores utilizam o fogo para abertura dessas áreas”, afirmou o coordenador do ICMBio.

Ele destaca que o fogo utilizado pelos agricultores começou a ficar mais próximo das Unidades de Conservação nos últimos três anos. “Com toda essa característica ambiental propícia a propagação desse fogo, ele acabou tomando grandes proporções e adentrando os limites das Unidades de Conservação”, disse.

Mesmo com primeiras chuvas que começaram a cair no mês de abril, em Roraima, Christian Berlinck afirmou que existe risco de o fogo retornar às florestas.

“Hoje o fogo está controlado, nós o cercamos, porém ainda tem alguns focos ativos dentro das áreas cercadas, mas não na sua borda. Estamos fazendo o monitoramento todos os dias e enquanto as chuvas estão acontecendo esses pequenos focos não se alastram, porém, a partir do momento que tiver uma seca de uma semana, há possibilidade desses focos tomarem mais força. A perspectiva é que agora tenha essa pequena entrada de chuvas, tem um veranico nessa primeira semana e depois retorna com chuvas no ritmo mais forte, o chamado período chuvoso em Roraima”, disse Christian Berlinck.

 

Chuvas são insuficientes

O nível do rio Branco é considerado abaixo do normal pelo CPRM (Foto: Jorge Macêdo/AmReal)

O nível do rio Branco é considerado abaixo do normal pelo CPRM (Foto: Jorge Macêdo/AmReal)

No último Monitoramento Hidrológico, divulgado pelo Serviço Geológico do Brasil (CPRM) em 18 de abril, o órgão diz que a vazante do rio Branco, que banha a maior parte do Estado de Roraima, ainda não foi concluído. Na primeira semana de abril foi registrado uma subida nos níveis do rio, mas insuficiente para normalização da hidrologia.

No dia 8 de abril o rio Branco chegou a sua marca mais baixa com -28 cm, segundo o CPRM. A maior vazante foi marcada em fevereiro de 2015 com 2 cm. A descida das águas foi classificada pelo órgão, que é ligado ao Ministério de Mina e Energia, como histórica devido à estiagem extrema.

No mesmo monitoramento, a Divisão de Meteorologia do Sipam (Sistema de Proteção da Amazônia) informou que durante o mês de abril, no centro e norte de Roraima apresenta valores mínimos de chuva. São observados valores variando entre 05 e 10 mm, volumes ainda inferiores ao esperado para este período do ano. Com a estiagem, a climatologia observa os padrões de tempo seco ou muito seco no estado. No entanto, a meteorologia observa uma gradual redução na magnitude e amplitude do fenômeno El Niño nesta região da Amazônia. Já no leste e nordeste do estado é previsto o aumento das chances de chuvas em relação ao período anterior, diz o Sipam.

 

“Nunca tínhamos vistos tantos pássaros”

Gralhão, Ibycter americanus (Foto: Paulo Gois/AmReal)

Gralhão, Ibycter americanus (Foto: Paulo Gois/AmReal)

A diversidade de espécies de aves que fugiram do Parque Nacional do Viruá e se refugiaram nas residências da cidade de Caracaraí chamou a atenção dos fotógrafos e observadores de pássaros Jorge Macêdo e Marcelo Camacho, ambos residentes em Boa Vista.

Nos dias 24 e 25 de março eles registraram inúmeras espécies, só encontradas antes em seu habitat natural. Lá encontraram pássaros, como o cabeça-branca, dentro de um supermercado.

“Fomos atrás de fotografar um pássaro conhecido pelo nome rabo-de-arame e outros pássaros que aparecem na região, porém, o que vimos foram outras espécies. Nunca tínhamos visto tantos pássaros juntos. Paramos em uma chácara e ficamos observando que muitas aves bebiam água em um lago que tinha um pouco de água e comiam nas fruteiras próximas. Foi muito fácil fotografá-los”, disse Jorge Macêdo.

Os observadores de aves afirmam que estão preocupados, pois as queimadas, muitas vezes, geram a extinção de espécies ou sua drástica redução, além da adaptação forçada a um novo habitat.

“Quando chegamos em Caracaraí a cidade estava tomada por fumaça. Pessoas não podiam sair na rua, pois ficavam com os olhos irritados. Acreditamos que os pássaros fugiram para cidade devido às queimadas e a fumaça. A situação foi preocupante. As aves ocupavam espaços como se estivessem perdidas”, destacou Camacho.

Caracaraí encoberta por fumaça das queimadas em março de 2016 (Foto: Jorge Macêdo/AmReal)

Caracaraí encoberta por fumaça das queimadas em março de 2016 (Foto: Jorge Macêdo/AmReal)

– Esta matéria foi originalmente publicada no Amazônia Real e é republicada através de um acordo para compartilhar conteúdo.

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