Os Matís relatam que vivem em insegurança após as mortes de dois índios em ataque dos Korubo, no final de 2014, e que a Funai não está sabendo intermediar o caso.

O agravamento do conflito entre o povo Matís e grupos isolados da etnia Korubo, que vivem na Terra Indígena Vale do Javari, na fronteira do extremo oeste do Amazonas com o Peru, afetou a administração da Coordenação Regional da Fundação Nacional do Índio (Funai) em Atalaia do Norte. Nesta terça-feira (19), um grupo de 150 índios, sendo 62 Matís, ocupou a sede da fundação e retirou à força do prédio o coordenador regional, Bruno Pereira.

Em entrevista à agência Amazônia Real, os Matís afirmaram que estão insatisfeitos com a intermediação que o coordenador e os demais servidores da Funai fazem para evitar os conflitos por disputas territoriais registradas entre as duas etnias, acirradas há 13 meses. Esses servidores são subordinados à Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém Contatados (CGIIRC), organismo da Funai, cuja sede fica em Brasília.

A reportagem não conseguiu localizar Bruno Pereira. Procurada, a Presidência da Funai, em Brasília, não deu informações sobre a segurança e o paradeiro do coordenador. Também não respondeu, até o momento, as questões sobre a ocupação dos indígenas e sobre as providências a serem tomadas, incluindo se atenderia a reivindicação dos Matís.

No final de 2014 duas importantes lideranças Matís, Dame e Ivan, foram mortas por um grupo de Korubo durante um contato. O ataque aconteceu na aldeia Todowak, que fica às margens do rio Branco. Os Matís afirmam que não revidaram as mortes e acusam o coordenador Bruno Pereira e os demais servidores da Funai de despreparo para atuar em uma solução do conflito interétnico.

Conhecidos como “índios caceteiros” por usarem bordunas, os Korubo vivem isolados na região de confluência dos rios Ituí e Itaquaí, na Terra Indígena do Vale do Javari, no município de Atalaia do Norte, distante a 1.138 quilômetros de Manaus.

O primeiro contato dos índios Korubo foi estabelecido no ano de 1996 durante uma expedição ao Vale do Javari coordenada pelo sertanista Sydney Possuelo, que foi presidente da Funai entre os anos de 1991 e 1993. Na ocasião, o contato foi necessário por causa dos sucessivos conflitos com mortes de índios e não-indígenas na região, segundo a fundação. Os Matís participaram do encontro como intérpretes, pois falam a língua Pano, bastante semelhante à dos Korubo, que ainda não foi classificada.

Em 09 setembro de 2014, a Funai anunciou o segundo contato dos Korubo em 18 anos. Eles formalizaram um diálogo com indígenas da etnia Kanamari da aldeia Massapê, que fica na beira do rio Itaquaí, também na Terra Indígena Vale do Javari.

No entanto, três meses depois (em 05 dezembro de 2014), os Korubo mataram os índios Matís, Dame (a grafia do nome divulgada pela Funai é Damã) e Ivan. Segundo a Associação Indígena Matis, ao menos seis Korubo participaram do ataque.

No final de setembro de 2015 foi registrado outro contato entre as duas etnias. O novo encontro foi divulgado pela Funai somente no dia 19 de novembro e, segundo o órgão, os Matís empreenderam diálogos com os Korubo, mas se sentiram ameaçados (leia mais aqui).

Daí, é cada vez mais comum a presença dos índios isolados Korubo nas aldeias Matís. Mas, o clima é de permanente insegurança entre os dois povos, o que mudou até rotina das aldeias. Em informes divulgados a aliados e jornalistas, incluindo a reportagem da Amazônia Real, os Matís se dizem vulneráveis e afirmam que foram “usados” pela Funai para atuar como intérpretes na comunicação com os Korubo, sem se dar conta do perigo ao qual foram submetidos.

Segundo a Funai, em informações divulgadas anteriormente, antes do contato entre Matís e Korubo, os dois grupos eram inimigos entre si. Por causa das duas mortes ocorridas em dezembro de 2014, a rivalidade reacendeu entre as etnias. Na história dos povos indígenas do Vale do Javari, há relatos de raptos e destruição de casas de Korubo contra Matis, que passaram a nutrir certo medo pelo grupo isolado.

Logo após a morte dos dois Matís, a Funai informou que o caso foi comunicado ao Ministério Público Federal, ao Departamento da Polícia Federal, ao Ministério da Defesa e ao Ministério da Justiça. O objetivo foi buscar o apoio desses órgãos em caso de uma situação extrema.

“Mas, estabelecemos que a primeira estratégia era o diálogo da equipe da Funai com os Matis, o que de fato ocorreu, com o imediato deslocamento da equipe da Frente de Proteção Etnoambiental e da Coordenação Regional da Funai, somando com representante da Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém Contatados (CGIIRC), para a região da aldeia Matis”, disse a nota da Funai, concluindo: “a estratégia se mostrou eficiente, não havendo a necessidade de intervenção de outros órgãos de segurança pública”.

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Indígenas Matís fazem protesto nas ruas de Atalaia do Norte, em atividade não relacionada com a ocupação. (Foto: Divulgação Associação Indígena Matís).

 

Matís querem monitoramento dos isolados

Em entrevista exclusiva nesta terça-feira (19) à Amazônia Real, o indígena Matís, Marke Turu, de 30 anos, representante da Associação Indígena Matís (Amas), disse que ocupação na sede da Funai em Atalaia do Norte é um protesto por tempo indeterminado. Além da substituição de Pereira, eles reivindicam mais fiscalização das terras e explicou o que está acontecendo nas aldeias.

“O atual coordenador [Bruno Pereira] vem desrespeitando o povo Matís. Ele ameaçou até chamar a Polícia Federal para nós. Tem também a situação com os Korubo. Ninguém mais sai de casa para buscar macaxeira com o filho ou caçar sozinho. Os isolados (Korubo) estão muito próximos das comunidades. Estão direto lá. Matam nossos cachorros. Mas a gente não quer conflito. A Funai precisa pensar em nós também”, disse Marke Turu.

Ele afirmou que, em dezembro passado, a etnia Matís pediu ao presidente da Funai, João Pedro Gonçalves, a exoneração do coordenador. “Também solicitamos a instalação de postos de fiscalização na área próxima onde vivem os índios isolados, mas não fomos atendidos pelo presidente da Funai”, disse Turu.

O indígena Clóvis Rufino Marubo, da Associação Indígena Marubo, disse à reportagem que a ocupação da sede da Funai em Atalaia do Norte pelos Matís estava sendo planejada há uma semana. Segundo ele, além dos 62 Matís, participam do protesto índios das etnias Marubo e Kanamari. Há homens, mulheres e crianças no local.

Clóvis Marubo disse que os índios Matís querem também a criação uma Coordenação Regional Local, organismo subordinado à Coordenação Regional. A CLT poderia assim monitorar outros grupos de indígenas isolados, não apenas os Korubo. “Na Conferência Nacional Indígena, os Matís receberam a promessa de que a Funai criaria duas equipes para atuar na área, mas não aconteceu. Findou dando isso (a ocupação)”, disse a liderança.

Ocupação dos índios Matís da sede da Funai. (Foto: Divulgação/Associação Indígena Matís)

Ocupação dos índios Matís da sede da Funai. (Foto: Divulgação/Associação Indígena Matís)

 

Indígenas fizeram alertas sobre clima de tensão

Os alertas sobre a situação tensa com os índios Korubo estão sendo divulgadas pelos Matís desde o mês de novembro de 2015. Os documentos acusam os servidores da Funai de despreparo na política de contato com índios isolados que estão se aproximando das aldeias Matís.

Em carta datada de 30 de novembro, a qual a agência Amazônia Real teve acesso, os Matís afirmam que estão enfrentando “uma situação muito grave”. Eles pediram que equipes de servidores fossem atuar na aldeia Paraíso para acompanhar a presença de Korubo e evitar um conflito. Eles também pediram a remoção de outro grupo de Korubo que estão em tratamento de saúde pela equipe da Funai e da Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), vinculada ao Ministério da Saúde.

No entanto, segundo os Matís, a Funai enviou apenas um servidor, Fabrício Amorim (que inclusive já foi chefe da Frente Etnoambintal no Vale do Javari) para fazer a remoção dos Korubo contatados. A presença de uma equipe reduzida de funcionários tem incomodado os Matís, que se consideram vulneráveis aos possíveis ataques dos Korubo.

Um dos trechos da carta diz o seguinte: “Nós não entendemos porque o coordenador da Funai quer impedir que nós tenhamos contato com os Korubo. Porque os Korubo estão presente diariamente nas nossas aldeias pegando macaxeira, banana e batata. Nós entendemos a fala deles, somos intérpretes da língua Korubo. É melhor a Funai fazer um posto e permanecer com os Korubo no local para outros Korubo que viesse procurar seus parentes encontraria nesse lugar, e não ficar transportando para outras localidades, é isso que revoltou os Korubo e aconteceu a morte do Matís e não pode acontecer de novo. Mas Funai não quer falar. A Funai quer fazer os Korubo como se fosse animal, pegar de um lugar e colocar onde a Funai quer. Para nós Matís, os Korubo querem contato”.

Na mesma carta, os Matís dizem que quando tentaram explicar seu entendimento sobre o contato dos Korubo ao coordenador da Funai em Atalaia do Norte, este não quis ouvi-los e que teria chamado uma das lideranças de “burro” e que iria proibir os Matís de continuarem trabalhando na Frente Etnoambiental, “apesar de ele não entender a língua dos Kurubo, daqueles que são mais agressivo e daqueles que são menos agressivos”.

“O que vem acontecendo aqui no Vale do Javari é a omissão da Funai que não atende o nosso pedido, que não manda funcionário, que não manda equipe na aldeia. Foi como procuramos divulgar nossa carta porque não está bem, tá muito grave a situação e vai acontecer mais problema, mais morte e a Funai não está preparado para resolver uma situação dessa com os índios. A Funai está perdendo controle sobre seu trabalho com os Matís e Korubo porque não entende. Nós estamos em perigo de acontecer qualquer outro conflito. Enquanto isso, não estamos sendo ouvido pelos presidente da Funai. A Funai deve escutar nós. Matís não vão deixar Funai mais entrar na aldeia se presidente não receber nós”, continua a carta.

Em outra carta, com data do dia 15 de janeiro de 2016, os Matís relatam que decidiram em reunião realizada dois dias antes se retirar de uma de suas comunidades (são três no total) devido à insegurança em relação aos ataques dos Korubo. Eles afirmaram que um cachorro de uma das comunidades foi morto “como sinal de ataque” às suas comunidades.

Os Matís também decidiram deixar de trabalhar na Frente Etnoambiental do Vale do Javari. As “frentes” são departamentos da Funai para atuar junto aos indígenas isolados existentes no país. Uma elas está localizada na TI Vale do Javari e conta com poucos funcionários. Os Matís atuavam como intérpretes, pois sua língua é parecida com a dos Korubo, e como mateiros.

Eles também pedem apoio de instituições governamentais e não governamentais para a realização de um encontro extraordinário previsto para acontecer entre os próximos dias 25 e 29. Este encontro ainda não está confirmado. Na carta, eles afirmam que desejam convidar “antigos indigenistas”, entre eles Rieli Franciscato e Sydney Possuelo.

Além dos Matís e Korubo, a Terra Indígena Vale do Javari é habitada por mais de cinco mil indígenas das etnias Marubo, Mayoruna, Kanamari e Kulina. Há também pelo menos 16 referências de grupos isolados. “Referência” é o termo adotado pela Funai para grupos identificados, mas não contatados. O número é considerado o maior do país.

A população atual dos Matís é de 500 pessoas. Segundo a Funai, o contato dos índios Matís com a antiga Frente de Atração do órgão ocorreu na década de 1970.

A Terra Indígena Vale do Javari é uma das mais preservadas do país. No entanto, sua população indígena sofre com a precariedade de atendimento de saúde para tratamentos de doenças como malária e hepatite, enfermidades levadas por não-indígenas para a área no processo de contato.

Indígenas Korubo contatados recebem atendimento. (Foto: Funai)
Indígenas Korubo contatados recebem atendimento. (Foto: Funai)

 

Terceiro contato aconteceu em 2015

O grupo de indígenas isolados Korubo contatado em setembro de 2015 era composto por 21 pessoas, entre adultos e crianças. O contato foi estabelecido após indivíduos do povo Matís abordarem o grupo Korubo, enquanto este atravessava o rio Branco, em área próxima às aldeias.

Segundo nota da Funai divulgada dois meses depois do contato, os isolados Korubo recém-contatados foram, em um primeiro momento, acompanhados por equipes da Funai e Sesai, em acampamento montado no local do contato visando a segurança e a proteção epidemiológica do grupo. Diante da situação, foi colocado em curso um Plano de Contingência para situações de contato com grupos isolados, segundo informações divulgadas pela Funai.

A Funai diz que o Plano de Contingência consiste em minimizar os impactos negativos do processo inicial de contato por meio da implementação, de forma articulada, de ações de proteção à saúde e a promoção do diálogo intercultural. Nesse sentido, são mantidas, de forma permanente no local, equipes formadas por profissionais de saúde e indigenistas.

Após esse conflito, a Funai informou que atuou no sentido de apoiar o deslocamento dos Matís da aldeia Todowak, localizada no rio Coari, para outra aldeia Matís no rio Branco, a aldeia Tawaya, a fim de garantir a segurança de ambos os grupos e evitar novos confrontos.

“A relação entre os Matis e os Korubo é marcada historicamente por disputas territoriais e pelo registo de conflitos interétnicos. Para evitar futuros conflitos entre esses grupos, a Funai acredita na intermediação e no diálogo. A Funai vem trabalhando nesse sentido ao realizar o monitoramento do território dos isolados e atuar com todos os esforços para garantir um bom atendimento aos índios recém contatados”, explica Carlos Travassos, coordenador geral de Índios Isolados e Recém Contatados (CGIIRC) da Funai.

 

Leia mais sobre a situação dos índios do Vale do Javari aqui.

Veja galeria de fotos dos Matís e dos Korubo.

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Índios Matís em frente da sede da Funai em Atalaia do Norte. (Foto: Jader Franco Marubo).

 

Os índios Korubo fizeram contato em setembro de 2015 (Foto: CGIIRC/Funai)

Os índios Korubo fizeram contato em setembro de 2015 (Foto: CGIIRC/Funai)

Servidores da saúde atendem Korubo (Foto: CGIIRC/Funai)

Servidores da saúde atendem Korubo (Foto: CGIIRC/Funai)

Contato dos Korubo em setembro de 2015 (Foto: CGIIRC/Funai)

Contato dos Korubo em setembro de 2015 (Foto: CGIIRC/Funai)

Fotos do contato dos Korubo em setembro de 2015 (Foto: CGIIRC/Funai)

Fotos do contato dos Korubo em setembro de 2015 (Foto: CGIIRC/Funai)

Os índios Matís em Atalaia do Norte (Foto: AIMA)

Os índios Matís em Atalaia do Norte (Foto: AIMA)

– Esta matéria foi originalmente publicada no Amazônia Real e é republicada através de um acordo para compartilhar conteúdo.

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