Fotógrafa conta em seus ensaios, séries e reportagens fotográficas, histórias de uma Amazônia pouco aparente, a sua “Amazônia Negra”.

– Esta matéria foi originalmente publicada no Amazônia Real e é republicada através de um acordo para compartilhar conteúdo.

Marcela Bonfim é uma jovem fotógrafa nascida em Jaú, interior de São Paulo. Em 2010 ela foi morar em Porto Velho, Rondônia, quando começou a se dedicar à fotografia. E deu um tempo na carreira de economista, formada pela PUC–SP. Especialista em Segurança Pública e Direitos Humanos pela Universidade Federal de Rondônia (UNIR), ela diz em seu site que: “…foi na nova cidade que o instinto imagético ganhou forma”.

Seja em uma comunidade quilombola, seja em um espetáculo de dança, ou em um ensaio intimista de nu, Marcela Bonfim faz uso de sua sensibilidade sem esquecer sua própria história, na qual a alteridade está presente o tempo todo dialogando com os seus personagens e ao mesmo tempo deixando exposta uma identificação com a temática e a questão de que todo o retrato é na verdade um autorretrato.

Assim, ela convida a quem observa suas imagens a entrar e compartilhar desta incansável busca do eu. Seguindo além de seus instintos, à tradição dos retratistas, mas muito bem alicerçada por seu background nas ciências sociais, nos direitos humanos e em questão voltadas ao trabalho doméstico até os projetos com arte e cultura, assim como no teatro, além de sua experiência com inclusão social e reabilitação de apenados do sistema prisional, passando pela vida de acadêmica.

Hoje ela se divide entre os trabalhos autorais e as colaborações com algumas instituições e órgãos como o ICMBio (Instituto Chico Mendes para a Biodiversidade).

A coluna Olha Já! bateu um papo com Marcela Bonfim.

 

Olha Já! – Como a fotografia chegou até você? E quando ela se tornou primordial em sua vida?

Marcela Bonfim – Acredito que a fotografia chegou até mim pela falta de coragem de me enxergar. Minha baixa autoestima na adolescência despertou a vontade do outro, da observação daquilo que de certa forma existia em mim. A fotografia se tornou fundamental no momento em que descobri a importância do mundo lá fora como reflexo do mundo aqui de dentro. Foi onde reconheci outros olhos, ouvidos e tantos outros sentidos ocultos em mim.

Olha Já! – Por que a Amazônia?

Marcela Bonfim – É uma coisa que me pergunto até hoje. Mas acredito que é mais complexo que qualquer entendimento que eu venha ter. O que posso afirmar é que aqui em Rondônia permiti reconhecer a minha própria natureza. Desde o momento que implantei raízes aqui pude perceber o quanto carrego de subjetividades e contradições amazônicas. Não imaginava que a Amazônia também era negra, por exemplo. Enxergar a Amazônia igual a mim foi determinante pra me sentir parte desse chão, além de resgatar minha autoestima, minha negritude e possibilitar toda uma nova carga de conceitos de vida.

Olha Já! – A temática da presença negra na Amazônia, sempre foi negligenciada, ou esquecida. Você considera seu trabalho um resgate dessa história?

Marcela Bonfim – Sim, considero. E vejo esse resgate como uma possível forma de contribuir para o reconhecimento e autoestima da juventude negra. Até os 25 anos fui uma negra embranquecida. Hoje percebo que esse embranquecimento não foi algo exclusivo meu; trata-se de um processo global iniciado desde o nascimento do primeiro antepassado negro aqui no Brasil. Acredito que os livros de história têm um papel fundamental nisso. É o primeiro contato institucional da criança com a sua história. Recordo de um capítulo onde a imagem de um negro apanhando no tronco era maior que a de Zumbi, que ficava no canto inferior direito da página. O que quero dizer é que as referências negras parcialmente apresentadas às crianças e jovens sempre colocam a figura do negro em condição de subserviência, uma vez que ressaltam apenas aspectos da vitimização do negro, acima das resistências, contribuições e conquistas realizadas pelo nosso povo no processo histórico brasileiro. Retratam a questão do negro sem o movimento reflexivo da história. O que na minha opinião gera distorções e sentimento de inferioridade afetando toda uma geração. Enxergo esse resgate como parte de uma necessidade maior e de formas mais justas de reconhecimento da nossa própria natureza e legado.

OlhaJá – Como profissional da imagem na Amazônia, você sentiu preconceito, das pessoas da região pelo fato de ser mulher e negra? Como você enxerga o racismo na Amazônia? É maior do que em São Paulo?

Marcela Bonfim – Como profissional da imagem aqui na Amazônia, não senti um preconceito direto. Não que não exista. É que ele aparece de uma forma muito sutil, quase imperceptível.

Agora, como economista as pessoas se espantam mais. É até mais escancarada a reação. Senti muito preconceito no trabalho quando trabalhava na área – tanto na Amazônia quanto em São Paulo.

O mito da vocação do negro para o esporte e para as artes coloca o negro como se não tivesse alternativas fora essas duas áreas. Isso torna evidente o papel das instituições nessa questão racial.

Vejo o Governo federal implantando políticas de igualdade, mas vejo as organizações trabalhando em métodos e sistemas cada vez mais segregadores, rotulados de “Diversidade”.

Na minha opinião o Sul e o Sudeste estão no topo do racismo no Brasil. Um indicador eficaz são os salários pagos aos negros e aos brancos. Essa é a forma mais agressiva e evidente da manutenção do negro em condições sociais inferior, além de ser a prática mais atual e legitimada de racismo no Brasil.

Olha Já!- Quem influencia você?

Marcela Bonfim – As maiores influências que me respaldam como pessoa e militante na fotografia tem a marca da resistência como sobrenome. Uma das mais fortes é a escritora negra Carolina Maria de Jesus (1914-1977) que, desprovida de técnicas e pompas, criou importantes registros documentais sobre a realidade negra e das mulheres na favela, deixando bastante evidente que a própria academia não teria o alcance que ela teve, por não ter intimidade com aquele contexto. Tida como uma mulher à margem da sociedade ela contava com a genialidade, simplicidade e intuição. Não há dúvida que sua maior marca foi essa imersão “nua” num mundo tão institucional – onde o valor se encontra num diploma, num sobrenome e ainda na cor da pele branca. Influências como estas fazem a diferença. É uma ventania contra a corrente… (mais informações sobre a Carolina Maria de Jesus aqui.

Olha Já! – Quais são seus novos projetos?

Marcela Bonfim – Estou com dois projetos que são de vida mesmo. Um é no Sistema Prisional aqui de Rondônia acompanhando o processo dos meninos do Reabilitando pela Arte, o teatro como instrumento de reinserção social. Há 18 anos dirigido por outra figura que me influencia muito como pessoa, o teatrólogo Marcelo Felice. O outro é o “(Re) conhecendo a Amazônia Negra: povos, costumes e influências negras na floresta”. Um projeto bastante íntimo de pesquisa documental sobre a população negra amazônica. Acredito que um potencial estudo de reflexão da antropologia visual.

Olha Já! – Como financia seu trabalho?

Marcela Bonfim – Atualmente eu quem financio meus projetos, além de contar com a parceria do ICMbio e de alguns amigos e parceiros queridos.

Olha Já! – Como é a cena em Porto Velho?

Marcela Bonfim – Em relação à cena humana e material é fantástico! Aqui a gente tem vários mundos interagindo num mesmo espaço. É muita floresta. São muitos povos. É muita potência! Em relação a políticas regionais de estímulos é bastante difícil. Temos grandes fotógrafos na região e muitas memórias registradas desde a época dos primeiros povoamentos do território, mas poucos sabemos desse material pela falta de interesse na consolidação desses arquivos. Vejo que essa falta de interesse nasce da dificuldade de entendimento sobre a importância da linguagem artística da fotografia enquanto instrumento político de transformação e memória. Infelizmente, perdemos muito com isso. Mas continuamos resistindo!

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