Entorno da BR-163 no estado enfrenta grilagem, desmatamento, queimadas, além de impactos ligados a empreendimentos e à expansão do agronegócio. Documento inédito aponta que a soja já pressiona as terras dos indígenas Kayapó. Estudo identifica que 62% das florestas públicas não destinadas na área estão declaradas como propriedade particular no CAR.

por Guilherme Guerreiro Neto, de Belém (PA)

Ao longo do trecho paraense da BR-163, a Cuiabá-Santarém, enquanto toneladas de grãos são transportadas rumo a portos privados no rio Tapajós, uma rota de conflitos e degradação atinge o entorno da rodovia, no oeste do estado. Grilagem, desmatamento e queimadas acompanham a expansão do agronegócio nessa parte da Amazônia. A infraestrutura criada para atender a produção de commodities também pressiona povos locais e indica que os impactos de setores como o da soja não se restringem às áreas de cultivo.

“A soja é parte de um modelo chamado de neoextrativista, que demanda toda essa infraestrutura causadora de grandes impactos sociais, ambientais, econômicos: rodovia, porto, ferrovia, hidrelétrica. Aquilo que não está dentro da lógica de produção em larga escala, fica fora do investimento do Estado, acaba atropelado por esse corredor de grãos”, conta a pesquisadora Rosane Brito, do Grupo de Pesquisa Estado, Trabalho, Território e Mercados Globalizados, da Universidade Federal do Pará (GETTAM/UFPA).

Em fevereiro deste ano, o presidente Jair Bolsonaro entregou mais um trecho de 51 quilômetros de asfaltamento da BR-163, completando a pavimentação entre Cuiabá (MT) e o distrito de Miritituba, em Itaituba (PA), 44 anos depois da estrada ter sido inaugurada por Ernesto Geisel, durante a ditadura militar. Naquela época, a intenção era integrar o Brasil. Quando os planos de continuar o asfaltamento da rodovia são retomados, nos anos 2000, o interesse já era outro: ter um corredor para o transporte de soja e outros grãos, vindos principalmente do Mato Grosso.

Área queimada em propriedade em Altamira (PA), no entorno da BR-163 onde fazendeiros realizaram o “Dia do Fogo”. Foto: Christian Braga / Greenpeace, 2020

Nos municípios pelo caminho da estrada no Pará (Altamira, Novo Progresso, Trairão, Itaituba, Rurópolis, Belterra e Santarém), a transição de área de floresta para agropecuária, ao longo dos últimos 35 anos, chega a mais de 1,8 milhão de hectares. O crescimento de cobertura do solo pela soja, nos mesmos municípios, passou de 40 hectares, no ano 2000, para mais de 40 mil hectares, em 2019. Entre 2014 e 2019, a área de soja quase quadruplicou. Os dados são da plataforma MapBiomas.

Mesmo não sendo o principal polo de grãos no estado, nem tendo produção sequer comparável ao volume da que tem o Mato Grosso, o eixo paraense da BR-163 sente o avanço da soja e do agronegócio. Em 2018, mais de 50% da soja comercializada nos sete municípios citados acima ficou no mercado doméstico e 34% foi exportada para a União Europeia, segundo estima a iniciativa Trase, que mapeia cadeias de produção para commodities.

“Não é só a soja plantada que é importante analisar, mas todo o complexo do agronegócio. Na região da BR-163 paraense, o movimento em torno dos serviços e da logística é ainda muito maior do que se observa em termos de plantio. Mas, nos últimos dez anos, vêm sendo criados estoques de terras para expansão do agronegócio”, explica o professor Ricardo Folhes, do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido, vinculado ao Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da UFPA.

Grilagem em áreas públicas não destinadas

A criação de um estoque de terras envolve, entre outras coisas, alterações no marco institucional para favorecer ruralistas e práticas de grilagem. Um estudo divulgado este mês pelo Greenpeace identificou que 62% das áreas de florestas públicas não destinadas, no entorno da BR-163 (entre o mosaico de unidades de conservação e terras indígenas que ocupa parte de Altamira, Novo Progresso e Itaituba), têm registro no Cadastro Ambiental Rural (CAR), ou seja, são declaradas como se fossem propriedade privada.

A pesquisa mostra ainda que o desmatamento aumentou mais de 205% nas áreas analisadas, entre agosto de 2019 e julho de 2020, em comparação ao mesmo período de 2018/2019. O principal uso da terra nas áreas desmatadas envolve abertura de pastagens para pecuária. Já os focos de calor cresceram 24% este ano, até 16 de outubro, considerando o mesmo período do ano passado. Em 2019, a região foi atingida pelo ‘dia do fogo’, como ficou conhecida a articulação criminosa de produtores rurais para incendiar a floresta. Esse processo de destruição ameaça a biodiversidade.

No mapa, clique sobre as áreas para ver informações sobre os registros autodeclarados. Habilite a camada de desmatamento e de focos de calor na caixa de legenda e clique sobre cada um deles para informações de cada ocorrência.

Um dos casos levantados pelo Greenpeace é o da Fazenda Vale do Curuá, localizada em Altamira, com área declarada de 2.420 hectares e quase toda a cobertura de vegetação nativa, conforme registro no CAR de janeiro deste ano. Pouco tempo depois do cadastro, entre março e maio de 2020, o desmatamento atingia 87% da área. Está lá o segundo maior polígono desmatado este ano na Amazônia (até 16 de outubro). Segundo a investigação do Greenpeace, o registro foi feito em nome de Jeferson de Andrade Rodrigues, pelo técnico agrícola Odair José Costa, responsável por 991 cadastros na região da BR-163 entre 2015 e 2020.

Fazenda Vale do Curuá em imagem de satélite de 25/06/2020, com sobreposição dos alertas do Deter (em vermelho) somando 2.600 ha desmatados. Imagem: Sentinel 2 / Greenpeace

O cruzamento dos dados do CAR com os de desmatamento e queimadas mostra um indicativo de casos de grilagem. Esse tipo de crime pode ser ainda mais estimulado por instrumentos como o Projeto de Lei 2.633/2020, que tramita no Câmara dos Deputados, e permitiria, por exemplo, a titulação de terras desmatadas ilegalmente. O estudo da ONG também recomenda suspensão imediata, revisão e eventual cancelamento dos registros no CAR sobre essas terras públicas não destinadas.

“O CAR não é um documento de posse ou propriedade da terra, mas tem sido usado indevidamente para dar um ar de legalidade para ocupações irregulares, para a grilagem. E ele se junta a um contexto em que a fiscalização ambiental foi desmontada pelo governo atual, um governo que tem dado sinalizações quanto à titulação em massa na Amazônia. Tudo isso faz com que grileiros avancem sobre a floresta”, avalia a gestora ambiental Cristiane Mazzetti, porta-voz da campanha da Amazônia do Greenpeace.

Pressões sobre terras indígenas Kayapó

Nos limites de Altamira e próximas à sede de Novo Progresso, as terras indígenas (TIs) Baú e Menkragnoti, dos Kayapó Mekrãgnoti, sentiram os impactos da pavimentação da BR-163 e são cada vez mais pressionadas pelo garimpo ilegal e a exploração madeireira, respectivamente. Os indígenas bloquearam a rodovia, em agosto, reivindicando, entre outras coisas, a renovação do Componente Indígena do Plano Básico Ambiental (PBA) BR-163, criado para atenuar os impactos da estrada sobre os Kayapó.

Indígena Kayapó durante protesto que fechou a rodovia em agosto deste ano. Foto: Lucas Landau/Arquivo Instituto Kabu

“Agora, com o governo Bolsonaro, o nosso Plano Básico Ambiental tá parado. E a gente tá lutando pra que seja cumprido”, diz Doto Takak-Ire, relações públicas do Instituto Kabu, entidade que representa os Kayapó. Em nota técnica lançada este ano, o Instituto aponta o agravamento do assédio feito por agentes de atividades ilegais sobre as comunidades indígenas e seus territórios, além de aumento constante do desmatamento no entorno das TIs e maiores concentrações de queimadas em áreas sob influência da rodovia.

Outro documento, ainda inédito, da Rede Xingu+, pontua que a expansão da soja já afeta as terras dos Kayapó e também dos Panará, com efeitos associados à consolidação da BR-163 como eixo de circulação da commodity. Os impactos aparecem tanto na valorização da terra, quanto no padrão desse tipo de cultivo, que envolve grandes áreas de plantio e uso de agrotóxicos.

“A gente começa a ver, por exemplo, em Novo Progresso e Altamira, de 2015 pra 2019, um aumento significativo da soja. Só em Novo Progresso, aumentou mais de seis vezes a área de produção. Em Altamira, a gente viu um aumento de mais de dez vezes. A maior parte dessa produção, agora, é consumida pela mercado doméstico. Ou seja, essa soja, provavelmente, vai ser consumida por empresas menores, não signatárias da moratória da soja, que barra a soja de áreas desmatadas depois de 2008”, conta André Vasconcelos, pesquisador da iniciativa Trase.

O protesto dos Kayapó na BR-163 também alertava para o impacto que os povos indígenas teriam por conta de outro empreendimento: a EF-170, mais conhecida como Ferrogrão, que deve ter capacidade inicial de transportar 42 milhões de toneladas. A fase de consulta pública já foi considerada concluída, mas os Kayapó não foram ouvidos. “Eles não fizeram a consulta. Por causa disso a gente entrou com representação pra escutarem a gente”, relata Doto Takak-Ire.

Empilhamento de projetos em Miritituba

Estrada acima, no distrito de Miritituba, em Itaituba, a iminência da construção da ferrovia também gera alerta. Por um lado, pela obra em si e o contingente de trabalhadores que tende a chegar na região. “Num lugar onde tem tantos homens, começa um movimento diferente. Muita bebida, diversão, exploração sexual infanto-juvenil”, diz Ivaneide Lima, membro do Conselho Gestor de Investimentos e Empreendimentos no Distrito de Miritituba (Congefimi), lembrando do que ocorreu no período de instalação dos portos.

Por outro lado, o alerta diz respeito ao consequente aumento da capacidade de exportação dos portos privados instalados ali e à chegada de novas estações de transbordo de carga (ETCs).

“Não existe produção da soja em larga escala sem grandes estruturas portuárias, o que implica num impacto enorme nos rios, porque as barcaças impedem a atividade pesqueira, matam espécies, contaminam as águas. Essas estruturas derrubam floresta às margens dos rios e passam por cima de populações locais e sítios arqueológicos”, detalha a pesquisadora Rosane Brito.

Porto privado em Santarém, destino de parte da soja de Mato Grosso e Pará rumo a mercados da Europa e Ásia. Foto: Greenpeace / John Novis

Ivaneide conta que a ETC da Bunge/Unitapajós foi instalada em cima de onde o cardume de peixes costumava ficar e que o pescado retirado das margens do rio, hoje em dia, é contaminado. A moradora de Miritituba se queixa por, além dos impactos de tantos empreendimentos, não serem pensadas políticas públicas para o distrito. Há cinco anos, a comunidade reivindica uma delegacia de Polícia Civil. Por enquanto, conta apenas com um destacamento da Polícia Militar, com cinco policiais.

“Miritituba recebeu um empilhamento de grandes projetos. Ainda tem o complexo hidrelétrico do Tapajós, que é um dos piores impactos que teremos aqui. Porque represará cinco lugares e essa energia não será gerada pra nós. Comunidades tradicionais serão inundadas, submersas”, lembra a integrante do Congefimi. Em 2016, o Ibama arquivou o processo de licenciamento da hidrelétrica de São Luiz do Tapajós, uma das usinas do complexo. Mas o risco do projeto ser desengavetado preocupa. O estado do Amapá, mesmo abrigando quatro usinas, enfrenta um apagão desde o início do mês.

Estoque de terras no Planalto Santareno

Seguindo na BR-163, o Planalto Santareno representa uma das principais áreas de plantio de soja no oeste do Pará. O agronegócio, desde o início dos anos 2000, passou a incorporar uma quantidade considerável de terras nas proximidades desse trecho final da rodovia. Naquela época, eram muito visíveis os desmatamentos diretamente ligados ao grão, o que motivou a moratória da soja (um acordo entre cadeia de produção, ongs e governo para que a soja produzida em áreas recém desmatadas na Amazônia não fosse comprada). Para Ricardo Folhes, o pacto representado pela moratória acabou se mostrando insuficiente.

“Existem processos que não são tão visíveis, mas que levam à criação de um estoque de terras. A soja, na região, tem sido introduzida principalmente em áreas já abertas, algumas delas há pouco tempo, que foram abertas seja porque teve retirada de madeira, quase sempre madeira ilícita, seja pela introdução de pecuária ou de arroz, o que não era captável pela moratória da soja. Depois de um ou dois anos de pasto ou de arroz, entra a soja”, conta o professor da UFPA.

Pulverização em campo de soja, Belterra (PA). Foto: Greenpeace/Nilo D’Avila

Com preços de terras abaixo da média de mercado, por serem muitas vezes apropriadas ilegalmente, e possibilidade de expansão da produção, os sojeiros foram ocupando municípios como Belterra e Santarém. De acordo com o MapBiomas, em 2019, a cobertura de solo pela soja passava de 16 mil hectares tanto em Belterra quanto em Santarém. O avanço de áreas para o agronegócio acaba pressionando terras voltadas para a agricultura familiar, que precisou se reorganizar para manter o abastecimento das cidades.

Para o meio ambiente, a expansão de monoculturas é sinônimo de degradação. Para o ser humano, a possibilidade de novas doenças. “A homogeneização, por si só, representa uma degradação, uma eclosão genética da biodiversidade. Potencializa o surgimento de patógenos, de doenças como o novo coronavírus. Uma das coisas que vêm sendo colocadas nas explicações desse tipo de vírus é isso: a simplificação da biodiversidade, a homogeneização de sistemas pelo agronegócio”, explica Folhes.


Esta reportagem faz parte do Amazônia Sufocada, projeto especial do InfoAmazonia com o apoio do Rainforest Journalism Fund/Pulitzer Center.

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