Toda doença, dor de cabeça, dor de estômago, dor no osso, qualquer tipo de doença, de fraqueza, a gente chama de nissun.

Eu sou do povo Huni Kuin do estado do Acre, meu nome é Ibã Sales Huni Kuin. Moro na terra Huni Kuin do Alto Rio Jordão, aldeia Chico Curumim.*

Para transformar, surgir a medicina, em nosso mito, diz assim. Havia uma senhora chamada Isã Kuru (Yushã Kuru). Ela vivia com a sua família. Quando o genro e o filho matavam a caça, comiam a caça. O sangue que restava, guardavam no bambu. O sangue da anta guardavam no bambu. Matavam viado, comiam e guardavam o sangue no bambu, em uma taboca. Quando comiam carne de tatu faziam isso, jabuti faziam isso, macaco faziam isso, nambu faziam isso. E sempre guardavam o sangue. Um dia a família resolveu se transformar em ervas medicinais. Só ela que não quis se transformar, Isã Kuru (Yushã Kuru) . Ela quem cuidava as plantas, a família em que está surgindo essas ervas. Cada um falava: um fica só para cuidar dor de cabeça, um fica só para dor de barriga, um fica só para cuidar dor de dente. Ai vão todos mudando, na frente de Isã Kuru (Yushã Kuru) . A família toda, neto, genro, filho, todos viraram ervas. Não ficou ninguém. A senhora ficou sozinha, não tinha ninguém mais.

Só que uma pessoa ficou: “eu não quero tratar ninguém, não. Eu quero ficar contra todo mundo”. Ele ficou a remédio remoso, brabo, venenoso. Isã Kuru (Yushã Kuru) viu tudo. Ela estava sozinha, não tem como viver sozinha no kupixawa. Ai ele começou a abrir, ela com fome, ele começou a abrir os sangues dos bambus. Abriu o sangue de anta e virou huni kuin. Abriu sangue de viado e virou huni kuin. E abriu tudo que é sangue dos bambus e tudo virou huni kuin. Sangue dos animais, novas gerações. Outras gerações, né.

Viraram como nós, dou um exemplo assim. Você vive como pessoa e vem do sangue de viado. Quando você mata viado, mata do próprio sangue. Você come esse viado e isso se transforma em doença. Por isso ficaram as ervas para curar. A doença de viado no olho, no saco, ovos grandes, fica igual catarro um lado, fica feio, podre. Encher o braço sem motivo nenhum, vermelha. E a doença de anta vem do dente, txai. Com dor de dente, fica inchado demais, diz que é venta de anta.

Então por isso que ficou… não é vingança. É o que você está comendo, é teu sangue próprio, por isso que ficou erva para tratar. É isso, resumindo, das ervas medicinas. Por isso, o nome da doença chama nissun. É a doença que vem do sangue de novo. Você virou sangue, pessoa, matou a caça, comendo, já tem a doença. Aí por isso tem as ervas medicinas.

É a doença que vem no sangue. No outro tempo, o huni kuin surgiu do sangue. Abria (o bambu) com sangue de anta, virava gente huni kuin. Esse huni kuin matou anta, comeu próprio sangue, veio doença. Por isso ficou a cura com as ervas: tomar banho, exprimir alguma coisa do sumo da erva no machucado… O único tratamento que temos é isso, txai. É verdade. Não é vingança. É doença que surgiu. Você virou sangue de viado, virou gente. Ai você mata viado, você come do teu próprio sangue. Ai a doença volta. Como pode tratar? Tem erva. Tem cacau, tem todos os nomes dar ervas para tratar essas doenças. Chama kupia, txai. Kupia quer dizer doença desses animais na nossa língua. Não é vingança, chama kupia.

Só um exemplo, como você come do seu próprio sangue, a doença vem junto. E nossa geração não tem jeito mais. Nós comemos muita carne de viado, carne de porco, carne de anta, todas as coisas nós comemos muito. Por isso tem doença para tratar com ervas medicinais, o nissun. Não é só dos huni kuin. Acho que isso também o nawa (não indígena) tem, né. É isso mesmo, a doença que existe e que nós temos ervas para tratar.

Coronavírus não é do animal, não. É nissun geralmente. Senti nissun mesmo.

Toda doença, dor de cabeça, dor de estômago, dor no osso, qualquer tipo de doença, de fraqueza, a gente chama de nissun.

Tudo é nissun. Eu senti muito nissun com coronavírus. Não é dos animais, qualquer coisa, não. É nissun diferente, nissun pesado, nissun mesmo. Nissun dá fraqueza, que dá doença.

Nissun realidade, o coronavírus. Nesse momento dessa guerra silenciosa, de fim do mundo, está muito difícil o que estamos enfrentando no meio da guerra.

Não tem nenhuma estrutura certa, os aparelhos, como vocês têm. É isso que está difícil e que a gente estava vendo. Mas graças a deus a gente tá aqui no meio de briga, mas ainda está sendo muito atacado sobre isso. É muito difícil o que estamos passando, eu que estava sentindo isso de cura, eu que peguei, é muito difícil sobre isso a ajuda. Estamos na floresta, fronteira do Peru com o Brasil, então é muito difícil para chegar ajuda forte. Por isso que estamos com dificuldade, olhando isso, é muito longe. A dificuldade que estamos vendo é sobre isso, não tem nada de ajuda do governo federal e estadual para o povo inteiro.

Sobre o autor
Ibã Sales Huni Kuin é professor e txana, mestre dos cantos que conduzem os rituais com nixi pae (ayahuasca). A partir de suas pesquisas com pai e tios, organizou o Movimento dos Artistas Huni Kuin (MAHKU), destacado coletivo de artistas que possui obras no acervo do Museu de Arte de São Paulo (MASP) e da Fundação Cartier (Paris).

*Colaboração de Daniel Revillion Dinato e Luiza Dias Flores

Pandemias na Amazônia é um mapeamento colaborativo das narrativas e relatos sobre os modos de pensamentos e as estratégias dos povos indígenas e comunidades tradicionais em torno das crises epidêmicas e ambientais na Amazônia. O projeto desenvolvido pelo NEAI/UFAM (Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena) com o InfoAmazonia permite às comunidades e/ou seus mediadores inserir em uma plataforma digital conteúdo de texto, áudio e vídeo

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