Quase 70% dos municípios do estado tiveram poluição agravada pela temporada de queimadas, este ano. E as internações por doenças respiratórias quase triplicaram. “A fumaça das queimadas deixa o pulmão mais vulnerável a doenças. Com certeza, essa poluição deixou as populações da Amazônia ainda mais fragilizadas para lidar com a pandemia”, diz médico.

Por Leandro Chaves, de Rio Branco (AC)

As queimadas recorrentes na estação seca da Amazônia (com pico entre agosto e setembro) não prejudicam apenas a floresta e o clima, mas também afetam diretamente a saúde da população rural e urbana, contribuindo para níveis de poluição além do recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS).

Em 2020, quando o Acre teve 28% de aumento do número de focos de calor em comparação com o ano passado, o ar de 14 das 22 cidades do estado ficou mais de 30 dias com concentração de partículas acima do aceitável para a saúde humana, segundo dados da Rede de Monitoramento da Qualidade do Ar do Acre, liderada pela Universidade Federal do Acre (Ufac) e Ministério Público do Estado do Acre (MPAC). Em 2019, apenas três municípios formavam essa lista.

Os chamados materiais particulados são fragmentos muito finos de sólidos originados da queima de combustível, poeira, incêndios, entre outros. Para a OMS, concentração de partículas diárias com mais de 25 ug/m³ (microgramas por metro cúbico) de diâmetro já podem causar problemas de saúde, se a exposição for por período prolongado.

No mapa, clique sobre as áreas dos municípios para ver o número de dias com material particulado acima do recomendado pela OMS em 2020 e 2019.

Xapuri, a cidade onde o líder seringueiro e ambientalista Chico Mendes nasceu e foi assassinado, lidera o ranking por tempo de poluição, ficando 49 dias com a concentração de material particulado além do recomendado. Em seguida, aparecem Capixaba, com 48 dias, e Plácido de Castro e Brasiléia, ambas com 46 dias seguidos de índices preocupantes, capazes de reduzir a expectativa de vida da população.

A capital Rio Branco também figura entre as cidades mais poluídas do estado, ocupando a quarta posição, com 42 dias de exposição a níveis elevados de partículas nocivas. No dia 26 de outubro, já fora do pico das queimadas, um sensor localizado no Centro da cidade registrou, às 13h55, concentração de material particulado acima dos 120 ug/m³, quase cinco vezes o recomendado.

Em agosto, no auge dos incêndios, a máxima foi de 386,11 ug/m3, nível capaz de afetar a saúde de toda a população da cidade, segundo segundo padrão da Organização Mundial da Saúde (OMS).

Divulgação
William Flores, professor da Ufac

Para o professor Willian Flores, pesquisador da Ufac que integra a Rede de Monitoramento da Qualidade do Ar do Acre, a deterioração da qualidade do ar acontece justamente com o  aumento de queimadas oriundas do desmatamento e da limpeza de roçados, pastos e lixos urbanos.

“Nos demais períodos do ano, normalmente, nossos sensores registram a poluição oriunda da queima de combustíveis ou outras fontes. Mas, com a chegada do ‘verão’, a própria população percebe visualmente o quanto a qualidade do ar piora. Com base nos anos anteriores, a gente pode afirmar que, em novembro, já na época das chuvas, não teremos problemas com o ar. Isso prova que a poluição está relacionada à queima da floresta”, explica Flores.

Pulmão fragilizado

As queimadas pioram a qualidade do ar, que, por sua vez, piora a saúde da população, especialmente grupos de risco para doenças respiratórias, como idosos e crianças. Isso acontece porque a fumaça dos incêndios tem, além dos materiais particulados, gases tóxicos como monóxido de carbono e dióxido de nitrogênio.

De janeiro a outubro deste ano, foram 946 internações hospitalares por doenças respiratórias graves (a Síndrome Respiratória Aguda Grave – SRAG), em todo o estado. Esse número, sem contabilizar as internações de SRAG causadas pela Covid-19, é quase o triplo (265%) do registrado no ano passado inteiro (356 internações), segundo o DataSUS, do Ministério da Saúde.

De acordo com o médico de família e comunidade Luis Fernando Borja, também professor da Ufac, esse crescimento, definitivamente, pode ser explicado pela fumaça oriunda das queimadas.

“A seca na Amazônia tem seu ponto alto em agosto. Nesse período geralmente identificamos nas unidades de saúde aumento de 8% a 10% das internações por problemas respiratórios, especialmente em crianças e idosos, além de casos de asma, bronquite, conjuntivite, inflamação na garganta, tosse, falta de ar e até mesmo alergia na pele”, explica.

Segundo Borja, este ano as populações na Amazônia tiveram a infelicidade de contar com mais um agravante: a pandemia do novo coronavírus. Os casos de Covid-19 que comprometem o sistema respiratório também são classificados como causa da SRAG pelo Ministério da Saúde. Incluindo-se as causadas por Covid-19, foram 2.064 internações pela síndrome no Acre em 2020, contra as 356 internações de 2019 – quase seis vezes mais. A mortalidade por SRAG também cresceu: de 94 óbitos, em 2019, para 578 mortes, em 2020 (dessas, 96,8% causadas por Covid-19).

Arquivo Pessoal
O médico Luis Fernando Borja não tem dúvidas de que as queimadas agravam problemas respiratórios.

“Quando aspirada, a fumaça das queimadas deixa o pulmão mais vulnerável a doenças, entre elas a Covid-19, que maltrata especialmente o sistema respiratório. Com certeza, essa poluição deixou as populações da Amazônia ainda mais fragilizadas para lidar com a pandemia”, diz Borja.

“Ela colaborou para o aumento dos casos mais graves e até da mortalidade, contribuindo inclusive para o agravamento de problemas econômicos e sociais”, explica o médico.

Borja sentiu na pele o quão devastador pode ser o coronavírus no organismo. Em junho, ao ser infectado, o médico virou paciente. Ele desenvolveu a forma grave da doença e ficou duas semanas internado, respirando com a ajuda de aparelhos. “À noite, ouvia os carrinhos carregando os mortos pelos corredores do hospital. Pensei que também fosse morrer”.

Saúde indígena

Situada em Feijó, município acreano que mais queimou em 2020, a Terra Indígena Katukina Kaxinawá, separada da zona urbana da cidade por um rio, tem o fogo como ameaça constante, segundo uma das lideranças tradicionais mais importantes da região, a cacique Edna Shanenawa.

“As queimadas em torno do nosso território vêm trazendo vários prejuízos, como o ar que nós respiramos, que vem atingindo a nossa saúde de forma agressiva”, diz a líder Shanenawa.

Arquivo Pessoal
A cacique Edna Shanenawa

Ela cita outros problemas. “Quando estão queimando pensando só no recurso financeiro, eles estão prejudicando também a nossa segurança alimentar, porque a gente vive de caça e elas estão morrendo. A nossa farmácia viva, que é a medicina tradicional, está sendo queimada e destruída”.

Naiara Shanenawa atua como agente comunitária de saúde em outra aldeia do território. Ela lembra que, antes da pandemia, em 2019, houve uma explosão de problemas respiratórios no seu povo. “Muitos tiveram de sair da aldeia para procurar atendimento de maior complexidade”.

Neste ano, em meio à pandemia do novo coronavírus, para reduzir o impacto da fumaça na saúde dos Shanenawa os agentes agroflorestais indígenas limitaram as queimadas tradicionais de pequeno porte para o roçado. A estratégia deu resultados. “Conseguimos diminuir os casos de problemas respiratórios, sem contar Covid. Não fosse isso, certamente as pessoas acometidas pela pandemia teriam sentido a doença de forma ainda pior”.

COVID-19 entre indígenas no Acre (TIs e municípios)

Fonte: CPI-Acre.  No mapa, clique sobre as Terras Indígenas (em vermelho) para ver informações detalhadas sobre a TI e casos acumulados de Covid em cada uma delas; e sobre os municípios para número de casos oficiais de indígenas contaminados neles.



O monitoramento mais recente do avanço do coronavírus entre os povos indígenas no Acre aponta que 2.314 indígenas já foram infectados, 119 deles na TI Katukina Kaxinawá, terra de Edna e Naiara. Ao todo, 27 morreram. Dois anciãos de 93 e 90 anos, considerados memórias vivas do povo Shanenawa, estão entre as perdas. Treze das 15 etnias presentes no estado já foram atingidas pela pandemia, apenas os Ashaninka e Kuntanawa não tinham casos notificados, até 27 de outubro.


Esta reportagem faz parte do Amazônia Sufocada, projeto especial do InfoAmazonia com o apoio do Rainforest Journalism Fund/Pulitzer Center.

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