Quando começaram a aparecer muitos óbitos no Brasil, especialmente, aqui no Amazonas, comecei pensar comigo mesmo. Se for um rei, porque tira a vida dos meus parentes.

Quando começaram a aparecer muitos óbitos no Brasil, especialmente, aqui no Amazonas, comecei pensar comigo mesmo. Se for um rei, porque tira a vida dos meus parentes.

Por Silvio S. Barreto

Licenciado em filosofia pela Faculdade Salesiana Dom Bosco/Manaus; Especialização em Gestão Escolar pela Faculdade Educacional da Lapa/Paraná; Mestre e Doutorando em Antropologia Social pela Universidade Federal do Amazonas/UFAM, membro do Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena/NEAI, Representante do Colegiado Indígena do PPGAS; Bolsista da CAPES; falante da língua indígena tukano e pertencente do Povo Indígena Bará do Grupo Tukano Oriental e para contato: [email protected].

Desde mês de abril e, ao início do mês de maio de 2020 perdi meu parente Apurinã (2), Baré (1), Baniwa (2), Borari (1), Kokama (9), Mura (1), Palikur (1), Satere-Mawe (1) Tariano (1), Ticuna (8), Tukano (2), Warao (2), Yanomami (1)*, recentemente em São Gabriel da Cachoeira: Tukano (2), Desano (1) também dos não-indígenas. Todos eles são meus parentes mais próximos, conhecidos e desconhecidos e, somos da mesma etnia e da mesma aldeia da
Amazônia.

A Corona é entendida como rei. Ele vem da China para reinar nas terras desconhecidas. Todo reino tem um rei. Na história da humanidade tivemos muitos reinos. E, ao mesmo tempo, formavam-se muitos guerreiros para dominar, avassalar e massacrar para quem opor do reino, outros morriam por defender pelo seu povo.

Quando começaram a aparecer muitos óbitos no Brasil, especialmente, aqui no Amazonas, comecei pensar comigo mesmo. Se for um rei, porque tira a vida dos meus parentes. O rei não é para dar segurança, o bem-estar de seu povo, mas não. Em altas horas da noite e muitas vezes não conseguia dormir direto pensando comigo mesmo, para minha família, para meus pais e para os membros da Comunidade Bayaroá, diante do avanço da pandemia do coronavírus,
Covid-19, parecia uma insônia.

Em outra noite veio outro pensamento, outra imaginação sobre corona. A corona é um sol maligno. O sol maligno que alcança em lugares distantes, independentemente dos países desenvolvidos afetando em diversas categorias sociais, políticos, econômicos e religiosos. O rei influencia para crescimento econômico, uma economia acima de tudo, acima de todos e fazendo-se de nós, os amantes da economia, ou melhor, o valor simbólico à custa de vidas das
pessoas. Uma corona cosmoeconômico fazendo um verdadeiro rei como herói. O rei da fúria e o rei da morte.

Essa pandemia avassala e massacra a vida de nossas famílias indígenas e dos não-indígenas.

O rei escolhe os melhores guerreiros de nossas famílias como lideranças, professores, padres, benzedores, pedreiros, médicos, enfermeiros e os técnicos de enfermagens; artistas, atores e atrizes; crianças, jovens, adultos e anciãos, levando as bibliotecas vivas de nossas mãos e nos deixam sem chão. Na vida muitos deles foram guerreiros e heróis para suas famílias e por isso choramos, jamais vão se cumprimentar e nunca mais vão se abraçar e jamais se encontrão e só nos resta boas lembranças das pessoas.

Uma filosofia da terra baixa sempre buscou a origem de qualquer epidemia. Mas também, nossos sábios da categoria de especialista conheciam as doenças do universo indígena, a relação do tempo, às origens, as causas e de curas. Essa pandemia ultrapassa limites etnoterritoriais do Rio Negro, do Rio Solimões, do Baixo Amazonas, etc., destruindo lares e construindo cemitérios.

Cada vez mais, o rei da fúria e, o rei da morte está avançando em nossos territórios tradicionais transformando nossas cidades, nossas aldeias, em lugares de lamentos e de sofrimentos. O rei não só mata as pessoas, mas também abala nosso psicológico.

Experiência da superação de covid 19

Bahseriko ahpose (Líquido para o bahsese). Ilustração por Jaime Diakara Desana.

Eu gostaria de trazer alguns relatos da superação de Covid-19 que ouvi de algumas pessoas da Comunidade Bayaroá. A comunidade está localizada na BR 174 km04, conhecido como Comunidade São João, Manaus, Amazonas.

Quando se ouvia falar de coronavírus, quando estava ainda longe. A minha sogra dizia do que se havia acontecido no passado com os parentes no rio Tiquié, na comunidade dos desana, um dos afluentes do rio Waupés, do rio Negro. Ela contava que, a véspera da festa da comunidade São João Batista, o dono do regatão passava vendendo tecido branco.  As pessoas estavam no clima de festa e de alegria, mas faltavam-lhes roupas. Eles compraram os tecidos brancos com muita alegria para fazer vestimentas. O dono do regatão estava com estado febril, então, assim houve contágio direto e, para eles tens sido última festa, no entanto, eles ficaram adoentados por três dias e muitas pessoas da comunidade vieram falecer dessa gripe (Dona Maria de Fátima, março, 2020).

Aqui em casa pedimos do Senhor Justino, que é meu sogro, uma proteção para nós e de toda nossa casa. Enquanto isto nossos parentes de nossa comunidade já estavam com os sintomas de Covid-19 e nós nem sabíamos disso.

A minha cunhada, Rosineide Lana Pena, 38 anos de idade, da etnia tukano, filha do Senhor Justino e de Dona Maria de Fátima, moradora do Bairro Ismail Aziz, na BR 174 km 02, Manaus. Eu e minha esposa soubemos de que ela havia adoentada por Covid-19 e junto com seu sogro Senhor Messias, não indígena. Pelos relatos soubemos que ficaram acamados, até então, a minha cunhada ficou acamada sem se alimentar por três dias de tanta febre, dor de
cabeça, dores de corpo, falta de ar e, perda de olfato e do paladar. Segundo a própria cunhada nem precisou ir ao hospital, porque cuidou bem de sua saúde dentro de casa mesmo tomando chás de plantas medicinais. Porém, o seu sogro senhor Messias parou no hospital, pois, ele teve asma na infância.

A Silas Maria Marinho Vasconcelos, da etnia tariano, 42 anos de idade, é moradora da Comunidade São João da BR 174  km 04, membro da comunidade Bayaroá. Antes ela já tinha reumatismo crônico, um dia desses da semana passada, quando estávamos indo ao mercadinho, aproveitamos de visitá-la. Nesta visita ouvimos relato da própria tariana: quase morreu desse coronavírus. Ela também se cuidou bem em casa.

Eu e minha esposa, senhora Rosiane Lana Pena**, 35 anos de idade, etnia tukano, somos moradores da Comunidade São João. Infelizmente, nós fomos infectados de Covid-19 pelos vizinhos. Os vizinhos nos ofereceram uma carona para ir pagar as contas na Loja Bemol. Torquato Tapajós, o nosso vizinho estava gripado e com febre, foi um contágio direto. O próprio vizinho havia feito teste de Covid-19, mas saiu negativo.

Só que fomos infectados pelo contato, pensávamos que era uma gripe comum, mas, não. Isto foi quase final do mês de março. Para Rosiane veio aparecer os sintomas um pouco de febre, dor de cabeça, o ar do nariz quente e, perda de olfato e do paladar e, isto ao começo do mês de abril, a fase inicial.

Já na segunda fase de sintomas….

Quando chegou à santa semana, quinta feira (dia 9) veio febre de 40 graus, dor de cabeça, dores dos olhos, dores do corpo, sentiu falta de ar, urina cítrico amarelo escuro de tanto febre.

Ela chegou tomar banho d’água morna esquentado numa panela alho esmagado, folhas seca de canela, casca de laranja e depois reforçou com o chá de folhas de jambu junto com flores, alho esmagado, casca de laranja e mel.

Para mim iniciou-se no dia 12 de abril de 2020 com sintomas completo, eu me joguei na cama e não sei mais nada e foram 03 dias de febre tanto que nem participei a reunião de nosso Núcleo de Estudos da Amazônia Indígenas – NEAI. A Rosiane preparou chá feito com alhos, limão, mel, folhas secas de canela, dois pingo de óleo de copaíba.

Quase perdi minha esposa. A gente nem imaginava que fosse Covid 19, mas acreditávamos que fosse gripe comum ou H1N1. Lá pra 19h00 por ai, porém, não sei exatamente, aqui em casa temos um chuveiro externo para as crianças. Ela estava com febre, e, eu também. Eu dizia para ela, estou sentindo frio d’água e ela mal molhou já veio calafrio, desesperado mandei para ela entrar no quarto, tentou cobrir com dois lençóis e nada. Depois liguei para senhor Justino para fazer basese/benzimento e ele veio e benzeu o cigarro para baforar na cabeça. Em outras ocasiões ela tinha sinusite e apareceu. Neste período de Covid nós nos alimentamos de frutas e, nada de alimentos remosos e assim melhoramos e estamos nos recuperando da saúde.

A Comunidade Bayaroá perdeu um dos membros dos associados, Senhor João Cavaleiro Alcântara, etnia Tariano, pai, avô, pedreiro e benzedor. Mas antes já tinha complicação pulmonar, sofria varicose, recentemente havia acidentado tirando bacaba no mato e quase perdeu o pé. Uma das netas foi pedir o basese do senhor João, porém, ela estava tossindo e com febre e, infelizmente, ele acabou sendo infectado, ele já estava com saúde debilitada e, até parou no hospital e depois teve uma recaída e chegou respirar com ajuda da máquina de oxigênio. No hospital Plantão Araújo, segundo informação do filho acompanhante deram cloroquina e depois nunca mais voltou para casa.

Até o próprio Justino quase foi vítima de Covid-19, ele teve pneumonia na infância até no momento sente dores no peito e tosse seca e, assim também sua esposa ficou adoentada. Por causa de certa teimosia quase foi uma fatalidade, porque ela pegou um chuvisco na puxada de casa e chegou ter dormência dos pés até nas alturas da cintura.

Estratégias tradicionais

Para pessoa que já é debilitada da saúde, por causa de certas doenças da infância é uma fatalidade total, requer todos os cuidados redobrados. Na fase final recorremos na prática de be’tise (dietas alimentares) evitando comer alimentos remosos. Um banho com plantas medicinais, água morna de alho esmagado, folhas de canela, casca de laranja ou do limão para eliminar, limpar e anemizar o mal estar do corpo e assim revigorar a saúde. A maioria das pessoas tomou chá de plantas medicinais sem ou acionado pelo basese. O be’tise, chá de plantas medicinais, basese/benzimento ajudam para recuperação da saúde.

Um começo de conversa dos baserã sem meio e sem fim

Neste retorno para casa e, o senhor Justino foi chamado para fazer basese. Nesta ida teve uma conversa entre senhor João e o Justino. Segundo relato do Justino, o senhor João contou do sonho do que ele havia visto sobre vírus. Então, ele ficava muito pensativo de toda esta questão do avanço e dos sintomas de covid e, sobretudo queria saber a origem desses vírus para basese.

De repente veio um sono e sonhou vendo a origem dos vírus da corona. É semelhante a um caldeirão de vírus revoando e espalhando por toda parte do universo. Ele queria ver mais a guardiã dos vírus, mas, não apareceu na vista dele, apenas caldeirão fermentando de vírus.

Ele avistou apenas o caldeirão aberto e cheio de vírus revoando e assim ficava difícil para criar fórmula específica de basese para reter a proliferação dos vírus no mundo. Segundo Senhor João (in memorian) os vírus eram bravos e, quando atacam uma pessoa estilhaçam organismo da pessoa e assim disse o senhor João para o Justino.

A construção de dados do senhor João nos remente pensar uma fórmula específica de basese e, até hoje, o senhor Justino pensa formular com os elementos amargos para matar os vírus, porém, quais e que elementos devem ser acionados? O problema, os vírus são mutantes conforme condição climática. Os dois baserã descartam o uso de timbó para tinguijar dos vírus, segundo Tukano não são Waî-masa/seres não-humanos para conhecimento indígena.

Enfim, um começo de conversa dos baserã sem meio e sem fim. Exatamente, essa busca a partir da ciência do concreto para eficiência simbólica de basese.

Almas retornam para casa

Quando saiu noticiário local sobre enterro coletivo pelas vítimas de Covid-19, o senhor Justino, tukano, assistindo enterro coletivo pela televisão, afirma dizer que, antigamente, os antepassados não enterravam assim sobre em cima de um.

Para tukano, os enterros dos velhos era metafisico mandavam de volta para o imîkoho wi’í, ĩtá wi’í niiparo, tií wi’ipi o’ôoparã, naâ masâ wehẽri karare. Masare wehẽrikarare yatikara niiwã bikirapia, mi’rôro me’ra o’osetisekarã niiwã naapia, a’tiró nii yiire werewã. Uma tradução aproximada e equivocada: Os velhos para os entes queridos mandavam de volta por meio de cigarro benzido para Casa do Universo. E assim ouvi dos velhos. É conhecido como “envio das almas” para Casa do Universo.

Então, o Kumú baforava sobre caixão do ente querido e, de repente o caixão sobe e flutua em direção da Casa do Universo e depois pelo leste ouvisse o estrondo do trovão. Os velhos falam que, a Casa do Universo se encontra em Bogotá, próximo de capital da Colômbia.

Portanto, os nossos filhos contarão essa história do coronavírus, Covid-19 no mundo, nas cidades e nas aldeias, nos rios e nas cabeceiras dos rios e igual à história de sarampo.

*INFORMATIVO COIAB Covid 19 e Povos Indígenas na Amazonas brasileira, 05 de maio de 2020.

** Nesse tempo tivemos uma ajuda da Dra. Carla Caroline M., sobrinha do professor Gilton. Um grande ayú!

*** Na língua tukano significa Xamãs

 

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